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Terça-feira, 26/6/2001
50 Anos de Preguiça e Insubmissão
Rafael Lima

Provavelmente a grande injustiça pela qual Charles Schulz passou em vida foi não ter completado 50 anos fazendo sua daily strip. Peanuts foi a tira humorística mais importante de todos os tempos; basta dizer que o próprio módulo espacial que pousou na Lua foi batizado pela NASA como Snoopy. Quando parou de fazer sua tira, por causa do agravamento de seus problemas de saúde (há anos o traço já estava tremido), Schulz ganhou homenagens de tudo quanto era cartunista editorial americano.

Sua morte fez pensar nos sobreviventes, naqueles poucos que atravessaram décadas com um mesmo personagem. O primeiro nome que vem à mente é Lee Falk, 60 anos de Mandrake e Fantasma. Mas Falk "apenas" escrevia as tiras. Tinha que existir alguém prestes a completar 50 anos contínuos carregando nas costas o fardo de criar uma piada por dia, mesmo que com assistentes. Esse nome era Mort Walker.

Pouca gente sabe que, quando começou, Beetle Bailey (O Recruta Zero) nem recruta era: a história girava em torno do cotidiano na high school de um personagem cujos olhos nunca apareciam, sempre cobertos por um chapéu desbado que só aumentava-lhe o ar de desleixo. Mort, aos 27 anos, já tinha algum nome quando resolveu fazer um ganho extra com a tira. Depois de 6 meses sem cair na boca do povo - apenas 5% da população tinha ido para a high school -, e com o início da Guerra da Coréia, um editor sugeriu que Beetle se alistasse. Mort não deu uma de artista e ainda aproveitou o gancho para fazer graça. No primeiro quadro da tirinha, Zero está numa esquina quando vê duas ex-namoradas se aproximando, uma de cada canto. Fugindo do pior, corre para dentro da primeira loja que vê - um posto de alistamento militar... Já nessa época o mote humorístico era o desrespeito pela ordem estabelecida, e a preguiça crônica que fazia Zero dormir nos lugares mais incomuns. O que ninguém imaginava era o quanto esse engraçado vício iria fazer as patentes militares rodarem a baiana...

Os coadjuvantes que Mort Walker inventa para Zero tem a funcionalidade de uma tranca de carro, e a maneira como ele decide quais teriam vida curta e quais seriam mais explorados tem o pragmatismo de um dono de rancho selecionando ovos na granja. Eles são estilizados e caricaturais como convém ao humor: Cosmo, o empreendedor, vindo de New York; Platão, o intelectual no meio de xucros; Dentinho, o caipira inocente e burro; Quindim, o terror das mulheres, com bigodinho à la Quequé. Walker mostra aquele talento que Renato Aragão tinha quando era engraçado, de preparar toda uma situação, envolvendo o leitor até a surpresa, em geral uma piada visual, no último quadro da tira. Desenhista brilhante, já sabia todos os truques para fazer rir com seu desenho, mas simplificou o traço até que o ponto do minimalismo, aquele em que você olha uma bolinha com hachuras diagonais e acredita estar vendo uma almôndega, tal a força de seu universo icônico.

O que torna o humor o Recruta Zero genuinamente engraçado, e universal, é o fato de estarmos lidando com uma característica humana - a preguiça. Mort Walker não faz comentários-cabeça nem aposta na alta inteligência de seus leitores, porque sabe da transitoriedade da vida de uma tira diária. E é exatamente aqui que reside sua capacidade subversiva, ao expôr o ridículo da condição humana em situações extraordinárias, ao desmoralizar a autoridade, tematizada no eterno conflito Zero-Tainha, opressão/desobediência, gato-e-rato. A partir da década de 60 os leitores crescem, assim como os protestos formais do Exército, sem se dar conta do teatro de absurdo que iria protagonizar. A primeira providência foi banir a tira do Star and Stripes, o jornal oficial das forças armadas. A argumentação era a de amante traído: a Aeronáutica tinha Terry e os Piratas, um exemplo de patriotismo que chegou a merecer citação no Congresso; a Marinha tinha o Capitão César, outro herói militar, e o que tinha o exército? Um recruta vagabundo...

O aparecimento do cachorro Oto, com nome e tipo físico inspirados no cartunista Otto Soglow, tipifica exemplarmente o modo Walker de fazer humor. Não era preciso nem texto para achar graça na figura do rotundo Sgto. Tainha andando ao lado daquele cachorro igualzinho a ele, só que uniformizado, pelo quartel. Em tira antológica, após levar uma descompostura do Tainha por uma besteira que havia feito ("Pense, Oto, pense!"), Oto comenta, tristonho: "we can't all be snoopy". Trocadilho do nome do cão mais intelectual que os quadrinhos já viram com xereta, esperto. Em outra historieta, os recrutas se banham em um rio quando Platão dá pela falta das roupas, que eles haviam deixado na margem. No quadro seguinte, uma trinca de ursos uniformizados estende a bandeija para receber o rancho, enquanto o Cuca sussurra para o Tainha: "Eu avisei que essa idéia de vestir o cachorro não ia dar certo". O que os militares poderiam fazer contra um humor como esse, que já na década de 60 ultrapassava a barreira dos 1000 jornais?

Porque Walker nunca foi, de jeito nenhum, o tipo de cartunista revolucionário, provocador, que entra na lista negra de Nixon, que, enfim, enxerga antes as tendências, capturando o zeitgeist, como Jules Feiffer foi para a Manhattan do fim dos anos 50, Gary Trudeau (Doonesbury) para o meio político dos anos 70, Scott Adams (Dilbert) para o mundo corporativo dos anos 90, ou Quino (Mafalda) para a América Latina depois da II Guerra. Ele se alinha com temas mais universais em seus temas, menos contextualizados; não é o catalizador das mudanças, mas tem o papel importantíssimo de sintetizar e disseminar as novidades entre o mainstream, que o lê sem ficar ofendido. Assim, o papel do recruta na década de 70 é enorme. Logo nos primeiros anos é introduzido o tenente Durindana, um personagem negro de cabelo black power, bigode e cavanhaque, que já chega dizendo: "Não tem nenhum criolo nesse quartel?" Em cima dele vários comentários sobre o movimento negro são feitos, conquistando a simpatia dos leitores mais liberais. Quando Tainha e o Cuca resolveram entrar numa dieta, os Vigilantes do Peso (Weight Watchers) enviaram um abaixo assinado enorme aos jornais, dando força para eles não desistirem. Também é dessa época o aparecimento da Dona Tetê, a secretária boazuda que veio cobrir as férias da Srta. Blips, e talvez a pior das dores de cabeça de Mort Walker.

Dona Tetê era exatamente o tipo de alvo que o crescente movimento feminista queria. A tira foi acusada de sexismo para baixo, enchendo a caixa postal de Walker com cartas de protesto. Sempre ligado nos anseios de seu público, Mort vai aos poucos suavizando as piadas e diminuindo as investidas do General Dureza, e já em 1986 é possível ver a Srta Blips falando em "assédio sexual". Mort confessaria: "Tudo que eu quero é escrever uma história em quadrinhos cômica e se as pessoas começarem a reagir dessa maneira eu vou acabar desenhando sobre isso". Realmente acaba, mas não do jeito que esperava: em 1999, o General Dureza é enviado para um sensitivity program, tal a força do patrulhamento politicamente correto nos anos Clinton.

Em 2000, foi lançada uma seleção comemorativa com o melhor de 50 anos, feita pelo próprio Walker, que fecha com uma marco veradeiramente histórico: pela primeira vez, os olhos do Beetle Bailey foram mostrados. Fazia graça consigo mesmo, a marca do grande humorista. Aquele cujas questões são universais, clássicas, e cujo trabalho sobrevive 50 anos, ultrapassando os limites de saturação dos jornais, e envelhecendo muito menos do que as queixas dos seus detratores.

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 26/6/2001

 

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