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Terça-feira, 18/3/2003 Ingmar Bergman Maurício Dias Ernst Ingmar Bergman nasceu em em Uppsala em 14 de julho de 1918, filho de um pastor luterano. Começou sua carreira com um teatro de marionetes onde comandava uma trupe formada por sua irmã e amigos (ver a coluna sobre Coppola. Esse negócio de marionete deve ser uma baita escola). Seu pai, homem excessivamente rígido, o trancava num quarto escuro por infrações cometidas na infância. O que nos faz lembrar que Hitchcock, quando criança, chegou a passar alguns instantes numa cela de prisão, por ordem de seu pai. Gente legal esses pais, hein? A paixão por cinema começou ainda na infância, e Bergman economizou dinheiro para comprar um projetor. Mais tarde estudou na Escola Superior de Estocolmo, formando-se em 1940. Tornou-se diretor-assistente do Teatro Dramaten. Lembrar que a Guerra comia solta na Europa... Ao contrário da Noruega, a Suécia não foi invadida, podendo permanecer neutra. Em 1941 foi produzida uma peça que ele havia escrito, chamada 'Kaspers död' (algo como "A Morte de Kasper"). Foi a sua porta de entrada na SF (Swedish Filmindustry). Seu primeiro trabalho era consertar e melhorar trabalhos de roteiristas mais famosos. Em 1942 largou o emprego no Teatro. Então adaptou uma peça sua, "Hets", para roteiro. Em 1944 Hets foi filmado por Alf Sjöberg. Por aqui, o filme ganhou o título de "Tortura do Desejo" (ou, simplesmente, "Tormento"). Foi neste filme também que Bergman dirigiu pela primeira vez para cinema. Alf Sjöberg estava ocupado com alguma outra tarefa - era também diretor teatral - e Bergman, sem levar créditos, dirigiu a seqüência final. Em 1996 o Circuito Estação - importante rede de cinemas do Rio de Janeiro - exibiu uma mostra com quase todos os filmes do diretor. Nos sete primeiros filmes de Bergman, pode-se contabilizar: quatro suicídios (mais duas tentativas fracassadas), dois abortos, um infanticídio, e um bebê natimorto. Bergman é um indivíduo doente. Poético, sensível, e inegavelmente doente. Se na década de 40 os antidepressivos já estivessem tão desenvolvidos quanto hoje, creio que estes filmes não teriam sido feitos da mesma forma. A revelação ao mundo dos horrores então recentes do holocausto nazista, e o fato de anualmente na Suécia nevar por sete meses também devem contribuir para esta aura depressiva. Inicialmente, Bergman era influenciado pelos filmes de Marcel Carné e pelo neo-realismo italiano. Seu apogeu como diretor começaria a se anunciar em 1953, com "Monika e o Desejo" (que algumas fontes listam como sendo de 52) e "Noites de Circo". Omitirei os títulos originais para poupar o meu sueco. A consagração internacional veio através da obra-prima "O Sétimo Selo" (1957), um dos filmes mais importantes que já se fez, prêmio do Júri em Cannes. A ele se seguiu o belo e mais levinho "Morangos Silvestres" (1958) - um dos seus poucos filmes que crianças poderiam ver sem se horrorizar. Urso de Ouro em Berlim. O veterano cineasta Victor Sjöstrom interpreta magnificamente o professor prestes a ser laureado. Em "A Fonte Da Donzela" (1960), tem-se um filme belíssimo, que mostra toda a face do horror. E tem um dos finais mais violentos de todos os tempos, com uma carga dramática que a difere completamente daquela violência que Hollywood iria oferecer ao olhar cúmplice e sedento do espectador a partir da década seguinte. Se Bergman tivesse ao longo da carreira mantido a qualidade destes últimos três filmes, seria inquestionavelmente o maior diretor de todos os tempos (O que também não diz muito, o cinema só tem cem anos de idade, não é nada perto dos milênios de pintura e teatro, as artes das quais ele é uma cria bastarda. Rembrandt ou Shakespeare, individualmente, são artisticamente mais importantes que qualquer realizador do século cinematográfico. Um cineasta só pode superá-los em influência comportamental.) Mas de qualquer maneira, Bergman não manteve o padrão. Ainda em 1960, fez "O Olho do Diabo", um filme ordinário baseado numa peça radiofônica. O cara que interpreta o Don Juan devia ter desistido de ser ator, para ir trabalhar de garçom em algum lugar. Ainda teríamos um momento de excelência com Persona (sabe-se lá porque, aqui chamado de "Quando duas mulheres pecam"). Uma relação esquisita entre duas mulheres de grande semelhança física, uma atriz que teve um ataque dos nervos e sua enfermeira, ambas confinadas num lugar isolado. Suas personalidades começam a se misturar à medida que relatam suas experiências. Antes de realizar este filme, Bergman contraiu uma pneumonia e teve que ficar internado num hospital. Por conta disso abandonou um projeto de um filme de quatro horas de duração, "Os Canibais" - o qual ele jamais realizaria. Bergman ficou conhecido como um diretor de mulheres, quase sempre os personagens principais de suas histórias (em contrapartida poderíamos citar Kubrick como um diretor de homens). Na autobiografia de Liv Ullmann, atriz assídua de muitos de seus filmes e uma de suas muitas ex-esposas, ela revelou que Bergman batia nela. E mais recentemente, soube-se que ele se recusou a pagar os estudos de qualquer um de seus oito filhos. Custear a educação de tanta gente realmente é complicado, e a educação pública na Suécia deve ter o seu valor; mas o fato é que ele "se recusa". Estas informações nos falam algo sobre seu caráter. Curioso que alguém que pareça achar a vida um tormento tenha uma manada de filhos. Creio que Paulo Francis, com seu deboche destituído de piedade, diria que Liv Ullmann provavelmente merecia apanhar. Em "Gritos e Sussurros" (1973), uma personagem mutila seu sexo com uma faca para não ter que comparecer perante o marido. Vemos outra personagem morrer sufocada, ao longo de quatro ou cinco minutos, enquanto somos obrigados a ouvir por todo este tempo a sua respiração ofegante, que evidentemente não está dando conta do ar à ela necessário. Agradável, não? O mundo certamente precisa de filmes como este, a dor que já existe não é o suficiente. E além disso não leva a nada, é a dor pela dor, totalmente diferente do já citado "A Fonte da Donzela", também chocante porém repleto de significado e razão, e que ainda nos dá direito à uma semi-redenção milagrosa ao final. A angústia de Bergman passa a extrapolar o patológico. Mas ao invés de morrer, como se espera de um doente terminal, ele prefere ficar vivo para contagiar aos outros. Van Gogh, Maiakovski, Tchaikovsky, Charlie Parker e muitos outros, consciente ou inconscientemente, preferiram morrer. Embora não concorde com a saída, acho isto mais honesto. Quando lemos que Renoir e Matisse, em seus últimos anos de vida, confinados em cadeiras de rodas e sofrendo de inúmeros males, se esforçavam para tentar em pinturas ou pochoirs passar ao público algo de positivo sobre a vida, mais fica clara a fraqueza moral de Bergman. "Da Vida das Marionetes" (1980) é um claustrofóbico e agoniante ensaio sobre a psicopatia. "Fanny e Alexander" (1982) foi o último filme para cinema do diretor, e ganhou o Oscar de filme estrangeiro. Saudado por muitos como uma obra-prima, o filme na verdade é um breve reencontro de Bergman com a vida, representada nas ornamentadas e fartas mesas da família burguesa, possuidoras de uma beleza pagã comparável às naturezas mortas de Chardin; nas relações sexuais ilícitas entre o patrão e a criada; nas brincadeiras das crianças; na embriaguez divertida dos mais velhos. Fora isso, o filme vale por uma cenografia bem estudada, com três cenários bem distintos: a alegre e colorida casa da avó, a austera capela do padrasto e o mágico e misterioso teatro de marionetes. No mais, é superestimado. O personagem do padrasto severo (visivelmente autobiográfico) parece vilão de novela mexicana, de tão exagerado. Até depois de morto vem assombrar as criancinhas. E como é um filme de Bergman, não há fada-madrinha para salvá-las. De qualquer forma, para o melhor e o pior, Bergman é poderoso. Maurício Dias |
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