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Segunda-feira, 11/4/2005 Tenho duas vidas no Digestivo Daniela Sandler Tenho duas vidas no Digestivo. A primeira, quando o colunismo começou no site, em fevereiro de 2001. Durou pouco mais de um ano. A segunda vida começou em janeiro de 2004, depois de um ano e meio hibernando. Mas talvez todo escritor tenha mesmo tantas vidas quantos textos ele ou ela escreva: as diversas encarnações de nossas idéias, desdobradas na face inédita de novas palavras e novos títulos. Mario de Andrade chamou seu primeiro livro de poesia de Há uma Gota de Sangue em cada Poema. Cada texto nosso, se honesto, leva um pouco de nossa vida e a transforma em vida própria. O leitor ouve, claro, a mesma voz animando textos diferentes. E, nesse sentido, cada escritor tem apenas uma vida, espalhada em sua prole: poemas, colunas, contos, declarações. Mas, depois de posta no mundo, cada obra segue por si, definida pelo modo como a compomos e pelos modos do leitor. Assim, em cada texto meu eu me recrio como autora. A minha primeira coluna para o Digestivo era mais uma matéria de jornal, influenciada pela minha experiência ainda fresca na Folha de S. Paulo. O título, “Novo filme de George Romero é terror sutil”, segue as regras da manchete noticiosa: tem verbo, o verbo está no presente, tem informação e novidade. Com o tempo, virei "outras colunistas": pessoal e memorialística em meus relatos da vida cotidiana num país estrangeiro; resenhista em minhas críticas de livros e de filmes; ensaísta em meus argumentos sobre arte, cultura e idéias; e opinativa em meus textos sobre conflitos políticos e sociais. Nunca teria me transformado se não fosse o impacto do Julio, o editor, e dos colunistas. Não apenas nos comentários que fazem sobre meus textos, sempre iluminadores; mas também, principalmente, na leitura do que eles e elas escrevem. Na produção do Julio eu vi a imensa gama de temas, coisas e eventos sobre as quais podemos nos debruçar, e ampliei minha mirada. Com ele, aprendi a inserir minha voz sem prejuízo da informação. Isso dá ao leitor, de um lado, a utilidade de reportagens onde se encontram fatos, e, de outro lado, o estímulo de críticas opinativas. E continuo me inspirando no modo respeitoso e atento com que o Julio considera os interesses e o feedback dos leitores e mantém, ao mesmo tempo, sua autonomia criativa. Lendo os colunistas, eu me tornei menos rígida. Percebi que podia me despir do estilo pasteurizado e da carapaça de objetividade do jornalismo. E que podia também abandonar as ansiedades de sistematização, documentação e argumentação da escrita acadêmica, que é o meu outro mundo (depois de jornalista, virei doutoranda). Cada colunista me mostrou um caminho diferente: humor, polêmica, ironia, ficção; palavras tesas e buriladas, ou textos espontâneos e relaxados; argumentos com começo, meio e fim, ou notas curtas, listas e comentários pontuais. Não falo de imitação nem plágio. Não sigo as pegadas de meus colegas. É mais um abrir de olhos; ler uma coluna e pensar, “Ah, uau! Então uma coluna também pode ser assim! E assado! E eu posso fazê-la cozida! Ou frita!” E então mudo meus passos, dentro do meu caminho, modificada pelos encontros com essas outras vozes ao meu redor. Com os leitores a relação é mais complexa. Há um dilema insolúvel: eu escrevo, sempre, com o leitor em mente; é a você que eu me dirijo com as palavras, imagens, links e subtítulos que coloco na coluna. A coluna é sempre um ato de comunicação pública – senão, eu faria um diário. No entanto, você é desconhecido, múltiplo, abstrato. E não pode ser diferente. Eu não posso, ao escrever, assumir nada sobre você: o quanto você já sabe sobre meus temas, o quanto deseja saber; o que interessa, o que entedia. E, mesmo que soubesse tudo isso, eu não poderia nunca moldar meus textos aos seus desejos. Se eu fizesse isso, minhas colunas seriam apenas a reflexão da audiência, e eu, uma espécie de ghost-writer de meu público. Mas você não lê o Digestivo para se ver refletido. Você lê para encontrar o conhecimento novo, a opinião surpreendente, a provocação, ou a formulação que dá corpo a idéias até então ainda vagas e etéreas. É porque mantemos nossa autonomia um pouco teimosa que, em cada uma de nossas colunas, há uma gota de sangue. E é assim que todos nós, leitores, colunistas e editor, continuaremos a ter uma, duas, cinco, muitas vidas no Digestivo. Daniela Sandler |
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