Vou logo de saída dizendo que há bons pintores no mundo todo. A fase recente de um Cy Twombly (As Quatro Estações, 1993-94), por exemplo, é a melhor de sua história, embora ele seja – e provavelmente sempre vá ser – lembrado por seus garranchos propositalmente infantis dos anos 60. Lucian Freud, Frank Auerbach, David Hockney, Antoni Tàpies, Francesco Clemente – há vários outros veteranos em forma. Há gente mais jovem, na faixa dos 40-50 anos, como Anselm Kiefer e Manolo Valdés, que já assegurou lugar na história. Há gente que ainda merece maior reconhecimento internacional, como a americana Susan Rothenberg e a sul-africana Marlene Dumas. No Brasil, os talentos de Daniel Senise e Paulo Pasta são estabelecidos, Beatriz Milhases faz sucesso internacional e nomes como Gianguido Bonfanti aguardam um mínimo de atenção.
Mas é muito pouco, em qualidade e quantidade. Se você pensar que há cem anos o cenário era disputado por gente como Picasso, Matisse, Kandinsky, Mondrian, Klimt, Kokoschka, Klee, Munch, Bonnard e tantos, tantos mais... É claro que da literatura se pode dizer coisa semelhante, citando apenas o quarteto Proust, Joyce, Mann e Kafka. Mas onde estão o Philip Roth, o Ian McEwan, o Coetzee e o Vargas Llosa da pintura atual? Ou, para voltar ao Brasil, quem faz na pintura o que Milton Hatoum faz no romance e Fabrício Carpinejar na poesia? Os nomes que citei não têm seu frescor, sua densidade, sua ligação peculiar com uma tradição (Hatoum com Machado e Euclides; Carpinejar com Drummond e Cabral). Cadê os filhos ou netos de Volpi, Segall, Tarsila, Goeldi, Guignard?
Além disso, o que poderíamos batizar de Sistema Internacional das Artes Plásticas (SIAP) – o conjunto de professores, curadores e artistas formados em universidades que, ingênua ou mafiosamente, ditam as regras globais do que é contemporâneo e do que não é – só dá destaque para os autores de instalações, especialmente vídeo-instalações, para não falar dos happenings como os de Christo; é um domínio da arte conceitual que, embora iniciado com Duchamp e multiplicado nos anos 60 com Beuys, impera desde o final dos anos 80, logo depois de os últimos movimentos pela volta da pintura – como a Transvanguarda italiana ou a Geração 80 brasileira – terem dado seu suspiro. Quando entramos no território de duas dimensões, as bienais organizadas pelo SIAP dedicam muito mais espaço à fotografia. As pinturas, enfim, já não ocupam o mainstream. Regina Silveira, Amélia Toledo, Tunga, Nuno Ramos – nossos artistas mais importantes perdem muito pouco tempo com a pintura.
Os pintores têm sua culpa, claro. A maioria das telas que vejo nas bienais mundo afora, como na última de São Paulo, são tímidas, discretas demais, preocupadas em texturas que significam camadas de memória, passagens do tempo (o tema mais freqüente), presas a poéticas de sugestão que terminam vagas demais para se fixar em nossa memória visual. Exemplos: Marco Giannotti, Sergio Fingermann, Paulo Monteiro. Ou então temos os seguidores da arte concretista ou construtivista, que dizem não tratar de nada além do que de “arranjos de cores e formas”, num grau de representação zero. Exemplos: Cássio Michalany, Eduardo Sued, Carlito Carvalhosa. Mesmo Paulo Pasta tem ido a um extremo de “depuração” do qual sua estética em breve não terá como sair a não ser pela ruptura.
Não que a pintura tenha de ser figurativa, no sentido tradicional do termo; mas pense em grandes abstracionistas como o citado Mondrian ou Pollock, cujas linguagens foram gradualmente construídas a partir da observação meticulosa da natureza, da paisagem, e dialogam com a realidade urbana, com sua topografia (Mondrian) ou ritmo (Pollock). A música, em especial, é seu campo simbólico, do qual emerge sua personalidade. O autor se afirma na superfície; jamais se esconde.
Para tirar o pintor contemporâneo do seu esconderijo, do seu ensimesmamento, é preciso começar a contestar a ideologia vigente na crítica, segundo a qual o lugar da pintura num mundo midiático é a incomunicabilidade, o silêncio, a sutileza que quase se esvai no vazio. Isso já foi superado nas outras artes; Beckett e o nouveau roman, por exemplo, já passaram, e no cinema a vanguarda já não está com Antonioni e Godard. Mas no mundo das artes visuais o vanguardismo como doença infantil persiste, criando um hiato com o público não-iniciado (embora muitas vezes bem-informado e formado) e pregando uma pintura que, na comparação com a arte conceitual e escandalosa de um Damien Hirst, está mais marginal que nunca. É como se fosse um gênero démodé.
No Brasil, por exemplo, curadores como Nelson Aguilar e Paulo Herkenhoff, responsáveis por bienais e outras exposições com forte discurso sobre a arte brasileira como relevante para a cena internacional (muito mais relevante do que ela realmente foi e é), dizem que as instalações têm um poder de seduzir o espectador desde o aspecto sensorial até o intelectual. Logo, a pintura não teria esse mesmo poder, pelo simples fato de não ser tridimensional e não “exigir a participação física do público”, ou seja, não se prestar ao playground ideológico que costumam ser esses grandes eventos, essa ONU que o SIAP monta periodicamente.
Não espanta, assim, que a crítica brasileira considere que a melhor fase de Iberê Camargo, como os scribblings de Twombly, é a dos carretéis, em sintaxe expressionista abstrata; jamais dão a importância devida à sua última fase, dos seus últimos dez anos (1984-94), em que houve um “retorno à figura” – ou seja, o gesto considerado de supremo conservadorismo pelo SIAP. Ou que prefira Pollock a De Kooning. Ou Basquiat a Lucian Freud. Ou que ignore o trabalho de Bonfanti, que mistura a influência de Iberê e Flávio de Carvalho com a de Auerbach e Francis Bacon. Ou que simplesmente não reconheça que Di e Portinari eram grandes desenhistas. E não espanta que grandes nomes brasileiros da visualidade sejam hoje fotógrafos como Miguel Rio Branco, que por sinal vem prometendo retomar mais e mais a pintura.
Mas, ah, que saudades da grande pintura. E que sei que não só eu sinto, mas toda a multidão que vai a retrospectivas de – ou lê livros sobre – Rembrandt, Velásquez, Goya, Manet, Cézanne, Van Gogh, Balthus, Hopper, para não falar de renascentistas e não repetir modernistas. A pintura é um congelamento quente de uma imagem, a superfície que retém e conduz os olhos para um imaginário distinto, pessoal, ao mesmo tempo tão nosso que nos vemos ali. Em tempos de bombardeio audiovisual por TV e cinema, que mesmo na cena mais pictórica parece ter pressa de desviar o olhar para a cena seguinte, a pintura é sim um gênero com vocação para a demora, a concentração, a elaboração sutil. E é disso que o homem atual precisa mais do que nunca, desde que chegue até ele na forma como sempre chegou, corajosa e bela, assumidamente expressiva, e não sussurrando como se pouco tivesse a dizer sobre a vasta realidade.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente composto para um guia de exposições no Rio de Janeiro.
Por fim, continuando, após ser interrompida pelas tarefas próprias da minha vidinha prosaica de mãe: é preciso diagnosticar do que exatamente sentimos saudades. De uma arte que se realiza em espaço bidimensional? Das cores? Da pintura como técnica artística manual ou artesanal? Da pintura como janela? Deixo estas questões em aberto, mas levanto a seguinte proposição: todas esses aspectos são e continuam sendo tratados em arte contemporãnea. As abordagens mudam, é verdade, mas estamos falando de nossa época, e não da de nossos antepassados. Querer repetir temáticas e experiências anteriores não justificariam o ato de criação. Um olhar e uma atitude inovadores, é isso que justifica e propõe a nova pintura contemporânea. Que continua sendo feita de texturas, cores e formas, sim, ainda que os suportes e as técnicas não sejam os mesmos. Outro abraço, com desculpas pela prolixidade
Paula
A mão do artista que pinta está hoje mais evidente do que nunca, e ela fala ao olhar contemporãneo, sem nostalgias, mas também sem abrir mão da criação da imagem pictórica nem de suas qualidades representativa. Ela está até mais popular (sob a forma de arte mural urbana -- os grafites). Ela se imiscui nos meios digitais (e o pincelzinho maravilhoso do photoshop, a variedade de cores e texturas que ele proprociona?). Pra mim tudo isso é pintura. é isso, novo abraço. Paula
Caros Daniel e Paula. Acredito que a pintura continue presente e de uma forma bem representativa de nosso tempo: rápida, sem paciência, dando maior valor às dimensões do que ao detalhe, pois tudo deve ser visualizado por uma grande massa de pessoas e se destacar de imediato. Se a pintura é composta pelo ofício, a técnica e a forma, como afirmam muitos autores, acredito que estamos hoje, priorizando a forma e quem sabe seja a falta das duas primeiras o que sentimos. Grande abraço, Rosana
Muito oportuno nomear (e denunciar) o SIAP como o grande promotor dos parques temáticos das bienais. Ora, no escurinho dos trens fantasmas das instalações as pinturas não cabem. Mas nenhuma delas até hoje foi capaz de provocar tantos efeitos sensoriais como, por exemplo, "Nighthawks" de Hopper. O ambiente da sedução que a esterilidade midiática não nos concede. A paisagem da nostalgia como consolo. Por que não?
"E é disso que o homem atual precisa mais do que nunca, desde que chegue até ele na forma como sempre chegou, corajosa e bela, assumidamente expressiva, e não sussurrando como se pouco tivesse a dizer sobre a vasta realidade", afirmação oportuna quando eu olho para o quadro, de Portinari, intitulado "Os Retirantes". É algo gritante, um momento de denúncia e, muito além, uma cumplicidade.
Sempre tenho a impressão que hoje o sucesso, ou aceitação, é esperada com tanta rapidez, que raramente o indivíduo tem tempo para desenvolver sua técnica uma voz própria. E a coisa é mais séria no universo das artes porque o dinheiro que se gasta com artes hoje é muito maior que no passado. As pessoas com dinheiro tem sede para ter um grande nome na sua sala... Mesmo quando estes grandes nomes não existam. Aí colocam e aceitam qualquer coisa. Quem sabe, por aí, escondido, aprendendo, não estão alguns artistas jovens que iremos descobrir. Talvez do interior do país, e acho que no cenário do mundo, imagino muitos artistas novos da Ásia esperando para serem descobertos.
Hoje existe uma ordem que é a extinção da pintura. Estudo arte e o que vejo é só instalação, ready made e os demais ensinamentos do mestre Duchamp, "repetição da repetição". Os que ainda insistem em pintar só se for a tela sem o chassis, pintada no chão como Pollock, ou a pintura hibrida de Buri ou Basquiat.
Querer pintar pintura de cavalete, moldura só para marginal, assinar nem pensar, só a obra vale o artista, não. Existe uma explicação óbvia: se arte for para artista, como se sustentarão os aparelhos burocratas da arte? Todo mundo tem de ser artista, e quem for artista de fato deve ficar escondido para não desestimular os artistas contemporâneos. Mas quem deu esse poder para os que controlam esses aparelhos de dizer que arte contemporânea é que é arte? A cultura não é patrimonio da humanidade? Não aguento ver nas Bienais e salões mais esse tipo de mentira. Que volte a pintura.
É tudo o que penso, Daniel Piza, precisamos de pintura. Os nomes citados, realmente, fazem pintura. Pintura por ela mesma sem ser necessáriqw explicações, falas, folhas de papel para dixer o que representam, para que possamos entender e saber o que o artista está contando. A pintura pela pintura. Parabéns. Cleusa.
Já faz mais de 1 ano que o texto foi publicado e somente hoje, em busca pela internet, tomei conhecimento dele. Iniciei na pintura aos 16 anos. Hoje com 61, tenho orgulho de nunca ter tido outra atividade profissional a não ser a pintura e a escultura. O que me deixa perplexo, é o fato de conhecidos marchands afirmarem que a pintura, em si, tendo como suporte a tela, já não mais existe. O que fazer com os pintores que passaram anos e anos desenvolvendo técnicas e temáticas? Meus trabalhos apesar de terem uma conotação figurativa, têm como único objetivo fazer com que o espectador relembre momentos! A maior parte das cenas parece real, mas são quase todas criadas no imaginario. Fiquei emocionado com o texto, por ter lido exatamente num momento de crise artistica, provocado pela anti-arte imposta hoje. Desejo que nos próximos, seja tão feliz quanto neste! Fernando Leitão
Daniel Piza e leitores afins, "Saudades da pintura" é um texto que, para mim, é a bandeira que empunho todos os dias. O isolamento da pintura é o caminho mais fácil! O olhar contemporâneo é o da superficialidade, mesmo que paire sobre o movimento das imagens tecnológicas ou a tridimensionalidade das instalações. Me parece que o olhar vem se tornando preguiçoso, ansioso nas práticas artísticas. Isso só espelha um comportamento cultural de nossa era. A era mais que pós-histórica, uma era a-histórica. Esse descaso é uma consequência lógica. Um salto quântico para o esquecimento das imperfeições do ser humano nas produções poéticas. O problema é a supervalorização por uma filosofia cultural baseada no avanço tecnológico e científico. Onde está a simplicidade da emoção humana nas criações artísticas? Eu acredito na pintura. O conceito de pintura vai além das tintas e dos pincéis. Temos a liberdade de fazer história, ou somente produtos do ego enfraquecido.