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ENSAIOS

Segunda-feira, 26/8/2002
Palavras, Palavras, Palavras
Paulo Francis
+ de 4600 Acessos

Nós vimos a descida da lua. Descrever o acontecimento por escrito é supérfluo. As próprias explicações técnicas ganhariam em inteligibilidade se acompanhadas de filmes. A reportagem escrita está morta. Nem toda a bestilharia de locutores de TV (em países subdesenvolvidos) pode esconder esse fato, a longo prazo.

O comentário é outra coisa. A imagem em si se expressa até certo ponto, depois vira palácio para burro. Precisa de mapas e roteiros verbais. E a síntese escrita de pensamento contém mais do que a falada. Quando nos limitamos a dizer isso e aquilo, temos de ser entendidos de pronto, ou jamais, sob pena de cairmos num didaticismo repeticioso e chato.

Pauline Kael acha que o cinema pode dar tudo que há nos romances, com as imagens reproduzindo o processo interno da mente. Comete dois erros. Sensações & emoções cabem em esquemas visuais. Na década de 1960, Resnais e Cia. copiaram o método descoberto por Edouard Dujardin em 1886, que James Joyce desenvolveu ao ápice a partir de 1916, reunindo os chamados "fluxo de consciência" e "monólogo interior". Foram considerados, comicamente, inovadores, ao transportarem para a tela essas invenções literárias. E nem ao menos a transcrição é perfeita, sendo aí que Pauline Kael se estrepa.

O cinema dá vida claríssima a imagens mentais, à sua arritmia e desconexão na ordem de aparecimento, à sua existência sem conceituações, ou seja, destituída de sentido ou objetivos específicos. Mas nossa cabeça não fica nisso. Faz também pausas de câmera em que se expressa abstratamente, cega a qualquer reprodução factual. Nossa cabeça analisa, em suma. E como se visualiza uma análise? Trata-se de um processo irreprodutível – ninguém sabe, exatamente, como pensamos. Palavras e símbolos matemáticos são capazes de preservar o raciocínio criador, em parte. Imagens cinematografáveis, nunca.

Pauline Kael também não se dá conta das relações especiais do homem com a palavra. Quando deixamos de ficar de quatro, o salto foi grande. Ao sonorizarmos, porém, a nossa identidade e as coisas em torno de nós, ameaçamos a hegemonia dos deuses no universo. Antes disso, já víamos o diabo, a nós mesmos e a outros macacos. A palavra veio depois da percepção de imagens, deu-nos um avanço evolutivo.

Os poetas até hoje celebram esse acontecimento histórico. Não vejo como se possa melhorar as imagens verbais, as cadências e ritmos de Shakespeare. Exprimem uma intimidade intangível do ser humano consigo próprio. Dispensam-se os cartões postais.

Pauline Kael é um (uma, no caso) dos raros críticos de cinema legíveis em nosso tempo, mas não escapou da falácia do visualismo obsessivo, um dos subprodutos da Guerra Fria. Os analfabetos que participam desse culto podem ser ignorados, mas é curioso que tantos intelectuais se contentem com a condição de paqueras da realidade e ainda se vangloriem disso, brandindo a verborragia desconexa de McLuhan como o novo Evangelho.

Porque, meu caro Watson, o problema é no fundo, na superfície e por todos os lados, político. As palavras levadas às suas conseqüências lógicas exprimem pensamentos, conceitos, propósitos e soluções. E a Guerra Fria, que todos nós sofremos, até em terras de samba e pandeiro, é um breve contra essas coisas. Quem quer pensar mesmo no que vai acontecer? Não há nada de bom à vista. Daí ser menos doloroso explorar aspectos antiintelectuais de nossa sensibilidade. Naturalmente as artes visuais também nos aumentam a consciência do mundo e expressam o princípio do prazer, mas quando se transformam em dogma elitista é porque houve uma atrofia do instinto de sobrevivência, que, não raro, exige raciocínio rápido e firme.

No período sibérico da Guerra Fria, quando Stálin e Dulles chocalhavam foguetes, os próprios inventores de palavras caíram em chilique. Sartre tinha a "náusea", encontrando, depois, o Alka-Seltzer na capacidade revolucionária das massas. Beckett, Pinter e Ionesco não podiam dizer "bom dia", sem demonstrarem que entre o "bom" e o "dia" estava um insondável abismo de incomunicabilidade. É uma alegria para nós, "coroas", que boa parte da juventude moderna tenha reapreendido o desejo de falar claro.

Os jornalistas, os mais humildes usuários de palavras, vinham tentando há muito tempo competir com as imagens. Os mitos da notícia e da "objetividade" visavam a dar uma impressão visual dos acontecimentos. Nada de opiniões. Só os fatos. As palavras, lembremo-nos, não apenas dominaram os objetos e a própria natureza do homem, mas, via associações, o chamado "uma coisa puxa a outra", começaram a explicar nossa ambiência e a nós mesmos. O jornalismo dito moderno, porém, fazia a palavra regredir em alcance, tornando-a meramente descritiva.

Há várias justificações plausíveis dessa atitude. O grande público, sendo "grande", continha tão diversos pontos de vista que era impossível sintetizá-los num denominador comum aceitável. O homem moderno não tem tempo para ler, logo, reduzam-se as excrescências na exposição de acontecimentos. Eu poderia encher páginas de motivos. Nenhum, entretanto, contradiz a superioridade da imagem nesse tipo de economia verbal. Vemos "o que, quem, quando, onde, como", etc., consumidores de alguns parágrafos, num único take e poucas frases.

E a objetividade da notícia, como esta própria, sempre foram falsas. Ao selecionarmos o que vai ser escrito, em estado bruto, já opinamos. Uma manchetinha que diga "Israel abre fogo contra a Jordânia", ou vice-versa, é editorial. Sem falar de sutilezas maiores. O Time insinuou coisas hediondas sobre o comportamento de Ted Kennedy, sem afirmá-las, apresentando-as disfarçadas de possibilidades. Esse e outros truques são conhecidos de qualquer estagiário atento.

Seja como for, tudo isso está acabando. A palavra sozinha, escrava de fatos, ainda que distorcidos, serve apenas de obituário da notícia, vista viva na televisão. Sempre haverá lugar para (ao menos) um grande jornal de cobertura nos centros principais, enquanto o telespectador não puder comprar o tipo de espetáculo de seu interesse. Sim, pois chegará a época em que, na nossa casa, sintonizaremos a TV com, digamos, Biafra, ou Mogi das Cruzes.

Resta a interpretação. O Life contratou Norman Mailer para escrever sobre a descida na Lua. O que ele tem a declarar, nenhuma imagem animada jamais conseguirá reproduzir, ou seja, a expressão plena de uma inteligência e sensibilidade individualizadas. Quem pode pedir mais, de si próprio ou dos outros?

Claro, os burros diante dos palácios continuarão mais numerosos do que os seres cientes. E pastando no jardim, até a hora de recolhê-los definitivamente à estrebaria.

Nota do Editor
Texto originalmente publicado no livro Certezas da Dúvida, de 1970. A transcrição deste Ensaio remete a um dos principais objetivos desta seção: republicar escritos fundamentais no âmbito da cultura, de autores importantes para o País. Entendemos, portanto, que, mais de 30 anos depois, "Palavras, Palavras, Palavras", de Paulo Francis, mantém a mesma atualidade e relevância, por isso, vem novamente à luz. Esperamos fazer jus ao nome e aos Leitores de um dos maiores jornalistas brasileiros de todos os tempos.


Paulo Francis
Nova York, 26/8/2002
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