Qual é o maior intelectual brasileiro de todos os tempos? Quem disse Otto Maria Carpeaux (1900-1978) só estará errando a nacionalidade. Carpeaux era austríaco, mas passou no Brasil os últimos 37 anos de sua vida. Impossível imaginar alguém mais culto, mais humanista. Mesmo numa geração da qual faziam parte figuras de notável saber, como Agripino Grieco, Alceu Amoroso Lima e Álvaro Lins, Carpeaux sobrava. Entendia de praticamente tudo, exceto esportes e música popular. Era uma enciclopédia ambulante, sem se sujeitar, porém, aos efeitos colaterais do eruditismo. Talvez nem na Europa tenha havido alguém com tamanha amplitude de conhecimentos.
Sua História da Literatura Ocidental, ainda que forçosamente fragmentária e, aqui e ali, idiossincrática, é uma obra sem paralelos no Ocidente. O crítico Mauro Gama não foi o único a considerá-la "a maior e melhor que já se escreveu em qualquer língua e em qualquer país". Além dessa e outras duas histórias (da música erudita e da literatura alemã), produziu centenas de artigos e ensaios, para jornais e revistas, enfeixados em coletâneas há décadas desaparecidas das livrarias, mas em breve estarão de volta ao mercado, graças ao empenho do professor Olavo de Carvalho, admirador de Carpeaux desde a adolescência.
"Estou pagando parte da dupla dívida intelectual e moral que contraí com Carpeaux", disse Carvalho, quando juntou todos os ensaios do mestre num único volume de mil páginas, editado, em conjunto, pela Faculdade da Cidade Editora e a Topbooks. Aproveitando a Bienal do Livro no Rio, as duas editoras – que também relançarão, em três volumes, a História da Literatura Ocidental – promoveram, na ocasião do lançamento, uma homenagem a Carpeaux, com duas palestras (a segunda de Carlos Heitor Cony) e a projeção do curta O Velho e o Novo, dirigido por Maurico Gomes Leite em 1966.
Faz pelo menos 20 anos que um livro de Carpeaux não chega às boas casas do ramo. O último, Reflexo e Realidade (Fontana), planejado e prefaciado por Sebastião Uchoa Leite, reunia ensaios originalmente publicados nos suplementos literários do Correio da Manhã, do Estado de S.Paulo e em jornais de Santos, Porto Alegre, Belo Horizonte e antes coligidos em Retratos e Leituras (1953) e Livros na Mesa (1960). Carpeaux teve a sorte de aqui se estabelecer no auge da imprensa cultural brasileira. Fez carreira no Correio da Manhã onde sua principal função era escrever editoriais e artigos políticos. Foram de sua autoria alguns dos mais furibundos ataques à ditadura militar e à política externa norte-americana. Tive o prazer de ler vários deles em primeira mão, pois praticamente debutei no velho Correio, no início da década de 60.
Minha mesa ficava a poucos metros do Petit Trianon, a sala dos editorialistas, onde, além dele, Cony, Antônio Houaiss, José Lino Grünewald, Luiz Alberto Bahia e outros do mesmo coturno cuidavam da opinião do jornal, por uns tempos comandado por Antônio Callado, um luxo. Não perdia uma oportunidade de conversar com ele e, para cunhar uma frase original, beber seus ensinamentos. Carpeaux conhecia a fundo todos os clássicos, todos os pensadores, todos os compositores eruditos, todos os pintores e ainda se dava ao luxo de analisar refinadamente criadores ditos menores, como Georges Simenon. Compartilhávamos um intenso amor pelos animais. "Eh-eh-eu nã-nã-não tenho a me-me-menor dú-vida de que-que-que eh-eh-eles sã-sã-são me-me-melhores do-do que-que os se-se-seres hu-hu-humanos", confessou mais de uma vez, empacando, como de hábito, em todas as sílabas. Carpeaux tinha enorme dificuldade para falar. Expressava-se em staccato, sacolejando as mandíbulas, que mais pareciam imensas e descontroladas castanholas vocais e muito desconcertavam seus interlocutores.
Era generoso, paciente com jovens ignaros como eu e divertidamente intransigente e irascível quando provocado por fatos e juízos que julgasse equivocados, insultuosos ou apenas absurdos. Adorava uma frase atribuída a Samuel Johnson – "Ortodoxia, senhor, é a minha 'doxia'. Heterodoxia é a 'doxia' de outro homem" –, que por uns tempos julguei ser de sua autoria, tanto a usava para, obliquamente, se autodefinir. Na verdade, não era ortodoxo nem heterodoxo, preferindo uma relação dialética entre esses dois extremos.
Edmund Wilson orgulhava-se de ser um "jornalista cultural". Carpeaux também. Escrevia sem grilhões metodológicos (o que o indispôs com a aristocracia acadêmica) e, embora fosse de esquerda, sem parti pris ideológicos (motivo de algumas brigas com alguns intelectuais comunistas). Terçou armas com a confraria estruturalista e dizimou um livro pseudomarxista de Octávio Brandão sobre Machado de Assis, no qual o autor acusava o bruxo do Cosme Velho de ser demasiado niilista e desprezar a classe operária. Curiosamente, seus amigos mais íntimos ou eram socialistas ou assumidamente comunistas, como o editor Ênio Silveira e Antônio Houaiss, seu parceiro na confecção de duas enciclopédias.
Carpeaux chegou ao Brasil foragido do nazismo e com seu nome de batismo, Otto Maria Karpfen. Não era judeu, mas havia sido secretário do primeiro-ministro austríaco Engelbert Dollfuss, assassinado pelos nazistas em 1934. Optou pelo novo sobrenome por conhecer o prestígio de que o francês desfrutava entre nós naquela época. Karpfen quer dizer carpa em alemão. Alguns de seus desafetos o apelidaram de "Crapaud", sapo em francês. Se considerarmos seu aspecto simiesco (Paulo Francis, que muito o admirava, comparou-o a "um símio recém-descido da árvore e submetido a um rigoroso processo de depilação") e sua admiração por animais em geral e cachorros em particular, chegaremos a um contraste marcante: um homem com jeito e alma de bicho e uma das mentes mais ilustradas e sofisticadas do planeta.
No curta de Gomes Leite, cujo título é um preito ao Eisenstein de A Linha Geral, Carpeaux é o fio condutor de uma reflexão sobre o Brasil dos militares, tendo ao fundo a frustrada Copa do Mundo de 1966. Fotografado por José Carlos Avellar, abrigava na assistência de direção o jornalista Geraldo Mayrink e o locutor que vos fala. Cabia a mim descontrair Carpeaux antes de a câmera entrar em ação. As tomadas externas, no centro do Rio, foram feitas a bordo do valente Simca Chambord do Cony, conduzido por ele mesmo. Não saiu uma obra-prima, mas tornou-se uma relíquia iconográfica. Do Rio de 30 anos atrás e, sobretudo, do velho e sábio Otto Maria Carpeaux.
Encontros com Kafka
A primeira das muitas histórias que Otto Maria Carpeaux me contou, quando trabalhávamos juntos no legendário Correio da Manhã, no início dos anos 60, foi a de seu encontro com Kafka. Um encontro quase relâmpago, na Berlim de 1921, onde o austríaco Otto Maria Kerpfen, então um jovem com a idade do século, fora estudar e conviver, ainda que à distância, com a elite boêmia do Café Românico: Alfred Döblin, Franz Werfel, Arnold Zweig e outros bambas. Numa das raras vezes em que foi convidado a um reunião dominical daquela turma, em Bayrischer Plaz, lá encontrou um rapaz muito magro e de fala rouca, cujo nome, ao lhe ser apresentado, entendeu ser Kauka. Um dos presentes depois lhe explicou: "Ele é de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem importância".
Ter estado com Kafka e não estabelecido com ele uma amizade, ainda que fadada a ser curta, pois Kafka morreria três anos depois, foi uma das grandes frustrações de Carpeaux, compensada da melhor maneira possível através da leitura, em primeira mão, de todos os livros do escritor tcheco. O Processo, o primeiro deles, lhe foi dado de presente, em 1926, pelo dono da editora alemã Die Brücke, para a qual fazia traduções, quase sempre a leite de pato. "Pagar não posso, querido", disse-lhe então o editor, "mas se você quiser, pode levar, em vez de pagamento, esse exemplar e, se quiser, a tiragem toda. O Max Brod, que teima em considerar gênio um amigo dele, já falecido, me forçou a editar esse romance danado. Estamos falidos. Nunca vendi três exemplares". Carpeaux também se arrependia de não ter levado toda para casa toda a edição de O Processo.
Nota do Editor
O Ensaio acima se compõe de dois textos gentilmente cedidos pelo autor: o primeiro vai até "Encontros com Kafka"; e o segundo, intitulado "Nosso mestre austríaco, agora completo" (de onde foram extraídos apenas dois parágrafos), refere-se a "Encontros com Kafka". Ambos originalmente publicados no "Caderno2", do jornal O Estado de S.Paulo, em 1997, ano do lançamento dos Ensaios Reunidos, de Otto Maria Carpeaux, pela Topbooks.
Sergio Augusto escrevendo sobre Otto Maria Carpeaux - um grande jornalista sobre um centauro. Realmente, nem tudo está perdido. Só para constar: o primeiro volume dos Ensaios Reunidos, da Topbooks, foi um empreendimento do prof. Olavo de Carvalho que não é só aquele polemista formidável, mas como também um dos filósofos mais corajosos do nosso tempo e que tem um autêntico carinho pela obra esparsa de Carpeaux. E, para quem sabe, Carpeaux foi o primeiro a falar sobre um filósofo que todo mundo devia ler para o bem de nossa sanidade mental: Eugen Rosenstock-Huessy. Seu livro "A Origem da Linguagem" foi recentemente publicado pela Editora Record. Não percam.
Nada mais justo que este erudito e simpático texto sobre o austro-brasileiro Carpeaux. A idade traz problemas, mas freqüentemente é sinônimo de privilégios. Um destes é o ter acompanhado 'ao vivo' as maravilhosas crônicas do Carpeaux no Correio da Manhã, sem dúvida um marco que dificilmente será ultrapassado no jornalismo brasileiro. Ótimo, também, o comentário de Martim Vasques.O Olavo está fazendo um trabalho digno dos caçadores de tesouros do fundo do mar que só trará benefícios a quantos se interessam por verdadeira cultura.
Todos nós, estudantes geração 68, temos uma impagável dívida de gratidão com Otto Maria Carpeaux. Ele sempre esteve do nosso lado. Era comovente vê-lo, já adoentado, participando das nossas passeatas e atos contra a ditadura. Era nosso amigo. Estive com ele algumas vezes. Numa delas, pedi um artigo para uma revista semi-clandestina que publicávamos na velha FNFi. Ele topou no ato; dias depois nos entregou o artigo "Esplendor e miséria da sociologia", um texto manuscrito, que - glória minha! - eu tenho comigo desde então. Sinto saudades do Carpeaux. Considero-o o maior intelectual "brasileiro" do nosso século!
Ronaldo Conde Aguiar