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Quarta-feira, 13/2/2013
Sergio Britto & eu
Michelle Strzoda
+ de 22900 Acessos

Quando fui avisada da morte de Sergio Britto no sábado, 17 de dezembro, de manhã cedo, não imaginava o baque que a notícia abateria sobre mim. Já estávamos tentando nos preparar para a sua perda com as consequentes internações do Sergio devido a consequentes complicações de saúde. A "máquina" Sergio Britto começava a dar sinais de falha, sobretudo após a morte do Italo Rossi, grande amigo e companheiro de palco décadas afora, em meados de 2011. Sim, alguns diriam, a idade começava a pesar. Mas era o Sergio Britto, um homem que tinha planos, muitos planos e projetos aos 85, 86, 87, 88 anos.

Em junho de 2009, mês em que Sergio completou 86, começamos um livro de memórias. E a partir daí eu me tornei, para ele, a "danadinha e teimosa inventora" de O teatro & eu, no vocabulário à la Britto.

Desde o começo, esse livro foi uma "sincronicidade" só, assim o Sergio diria. Nossa diferença de idade e de vivência era imensa, o que não se notava em termos de gosto (teatro+livros+cinema), ansiedade (o livro é para daqui a quantos meses mesmo, hein?), personalidade (somos cancerianos, ora), e a paixão pelo Fluminense.

No Programa do Jô, o Sergio chegou a afirmar que "a menina bateu lá em casa com o contrato na mão". Ri até dizer chega ao assistir à entrevista e pensei: só o Sergio mesmo para dizer uma coisa dessas. Mas essa era a forma de ele ver a coisa.

Nos momentos em que nos sentávamos para dar vida ao nosso livro, na redonda mesa da sala ― onde ficamos por dias, noites e fins de semana a fio ―, eu tinha sempre a impressão de estar em cena com o Sergio, assistindo a sua atuação de camarote. A maneira de o Sergio se expressar, se comunicar, era muito própria. O texto do Sergio reflete isso, é o Sergio se doando o tempo todo, como num monólogo em cena com a plateia de ouvidos voltados para ele.

Assim foram os 11 intensos meses que levamos criando O teatro & eu. Uma novidade, um aprendizado a cada semana ― sim, o livro foi feito de domingo a domingo, com conversas quase que diárias, necessárias para o desenvolvimento psicanalítico que um livro como esse exige. Ligações aos domingos, à meia-noite, de manhãzinha, por que não? No começo: "Menina, aqui é o Sergio Britto". Ao longo: "Alou", Sergio Britto. Produção já avançada: "Sou eu, Sergio!"

Minha vida se divide hoje em antes e depois de Sergio Britto. Não imaginava editar uma biografia no ritmo e na intensidade que foi. Já fiz de tudo um pouco em editoras ― pequenas, médias e grandes. Sou daquele tipo de profissional "bombril", que topa tudo, que cai dentro, que está aí para aprender, contribuir, tocar o barco ― e carrego um ônus por isso. Só que tem que ser com tesão. Mas editar Sergio Britto foi muito melhor do que tudo que imaginei e vivi nesses dez anos de mercado editorial. Deve ser por isso ― Sergio era tesão puro, um homem decidido, elegante, firme, crítico, sem papas, mas que não perdia a humildade, a autoexigência. Um modelo de autor.

O projeto, que foi laureado com o primeiro lugar na categoria biografia no prêmio Jabuti 2011, existia havia alguns anos, com título e roteiro prontos. Mas onde tocá-lo, como concretizá-lo? Foi só quando idealizei e criei a Tinta Negra Bazar Editorial ― com o devido aval dos meus diretores financeiros, em que pese as ressalvas de investimento, viabilidade comercial, entre outros impecilhos ― que ele pôde ganhar vida. A cada peça, a cada zapeada no "Arte com Sergio Britto", a cada prêmio, aquilo me martelava e me dava uma fisgada. Eu tinha que ir a ele para contar do livro. Mas houve o momento certo, e Sergio abraçou sem pudores o combinado. Sergio, você tem que se doar mesmo, falar tudo. Vamos nessa? Sergio não se cansava de dizer que, àquela altura da vida, ele podia dizer tudo. E eu pensava, cá com meus botões: mas ele sempre disse tudo. Sergio, o que você fala terá consequências, então vamos ver como falamos isso.

Acho que Sergio levou tão a sério a proposta que foi abrindo o verbo de cara no primeiro capítulo, como ele afirmou em entrevistas, o mais importante do livro ― em que declara sua opção homossexual, o não à medicina, o sim ao teatro. E também o mais difícil de editar. Coisa de dez versões, até chegarmos à definitiva.

Papeizinhos, tesoura e cola. Computador pra quê? O livro foi escrito à mão: 416 páginas fechado, com diagramação pronta, mas os arquivos à mão, ih. muito mais que isso. Mãos do Sergio ― com letra firme, caligrafia exemplar ― e minha. A certa altura, eu parava e olhava fixamente para o Sergio, de quem, já delirando nas suas descrições e causos, eu nem mais acompanhava o raciocínio.

Sergio, peraí, isso já contamos. Não, Sergio, isso foi em 19., a gente tá no Grande Teatro. Sergio, mas isso é sério, aconteceu mesmo? Como você tem certeza?, você era muito pequeno. Mas a memória de elefante do Britto não se enganava, não. As fotos com datas, descrições anotadas nos cadernos marrons, espécie de diários que o acompanharam durante boa parte da vida, os relatos de familiares, amigos íntimos ― tudo vinha a confirmar. Coisa ou outra descobríamos que não tinha sido bem daquela maneira, e corrigíamos.

Sergio era uma loucura com nomes ― ai de você se escrever errado grafia de atores, atrizes, diretores, peças, óperas, filmes. Datas, tem que saber!

Ai, ai, que trabalho. Sergio, vamos fazer um índice geral, pois isso aqui é a história cultural do século XX, sob seu olhar e atuação. Sim, o Sergio foi um dos protagonistas dessa história. Não sou eu quem digo, é a memória do teatro e da cultura brasileira que registram.

Fotos, um capítulo à parte. Sergio tinha quase um cômodo inteiro em sua casa só para abrigar os inúmeros recortes e fotografias de toda uma vida ― foram 66 anos de carreira ― nos palcos (e bastidores). Se dependesse do Sergio, o livro teria cerca de mil páginas, pois coisa à beça entraria. Sergio, não temos esse espaço, preciso selecionar ainda mais essas que já selecionamos. Não dá, sua teimosa, são essas as fotos que vão entrar. E saio eu de Santa Teresa com caixas e mais caixas de fotos do Acervo Sergio Britto. Penso que o Sergio é louco em me deixar levar aquela quantidade de imagens ― aquilo era a vida dele. Mas ao mesmo tempo o Sergio era isso; a quem ele delegava confiança, em quem ele acreditava, não poupava nem um pouco que adentrasse sua vida, sua intimidade.

A tarefa não era pouca para o fim de semana que começava, mas não cabia em mim de felicidade. Eu viajaria naquelas imagens, durante o hercúleo trabalho de alocá-las e descrevê-las na prova, e cortar e cortar mais.

Xica, a escudeira fiel do Sergio, estava na "coxia" sempre. A parceria deles durara para mais de três décadas. Xica sabia cada detalhe, cada cueca lavada do Sergio. Sergio, cadê a tesoura para retirarmos esse trecho daqui e colarmos ali? Sergio, onde está aquele livro? Aquele libreto da peça do Delfim? O caderno da viagem tal? Ô, Xiiiica!, Sergio conclamava.

Brigavam um pouco, coisa de quem ama. A Xica conhece cada bastidor deste livro. Ela era a responsável pelos nossos saborosos intervalos, com cafés e bolos, além dos almoços que promovia. A salada que a Xica fazia para o Sergio ― com figos, morangos, balsâmico, alface, rúcula, queijo, entre outros itens ― virou habitué na minha casa.

Em meio à produção do livro ficava claro que remexíamos em territórios quase que inexplorados, sem muita documentação, acervo, especialistas. Foi um árduo trabalho de edição e pesquisa traçar as linhas da história do teleteatro brasileiro, que com o Grande Teatro alcançou seu auge. Creio que isso será um dos legados de O teatro & tu. O trabalho encabeçado pelo quarteto Sergio Britto, Italo Rossi, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, com a participação de ilustres companheiros de elenco, marcou o início da teledramaturgia brasileira com peças memoráveis.

A boa memória do Sergio combinada a esse nosso trabalho de edição e pesquisa, feito com a colaboração da Clarice Magalhães, poderá contribuir de alguma maneira para a perpetuação da memória da arte dramática no Brasil.

O amor, respeito e admiração que Sergio nutria pela Fernanda era coisa de louco. Uma obsessão admirável. Chegamos a conversar e a editar algumas vezes a questão que foi para ele, Sergio, a peça que desenvolvia em parceria com Fernanda sobre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que depois se resumiu no monólogo Viver sem tempos mortos, encenado por Fernanda. Sergio não queria magoar a Fernanda, mas tampouco queria deixar esse assunto sem registro no livro. Sergio nunca se cansou de repetir que Italo era o maior ator que o Brasil já teve, e Fernanda, a maior atriz. Mas não poupava críticas a ambos. De novo, coisa de quem ama.

Sergio não abria mão de opiniões e críticas de alguns amigos, como Fernanda Montenegro, Barbara Heliodora, Luiz Geraldo Dolino do Nascimento, Isabel Cavalcanti. Isabel, que dirigiu o Sergio no seu útimo Beckett, premiadíssimo, está preparando um documentário sobre o Sergio, com estreia prevista para este ano. No filme, ele lê e escreve trechos de O teatro & eu, e dorme com o "travesseiro Farnese", cena com a qual encerra o livro.

Samuel Beckett, aliás, era uma das paixões de Sergio. Ele e o dramaturgo irlandês tinham em comum o olhar sobre a vida. "Beckett dizia que o homem só vive de teimoso que é", afirma. "É nessa gravação ['A última gravação de Krapp'] que Beckett se excede e consegue falar de Krapp com imagens que completam a figura desse velho que repassa suas memórias, um traçado psicológico mais profundo, onde fixações reaparecem marcantes. Ele nunca se cansa de repetir que aquele homem que foi há trinta anos era um cretino", descreve Sergio, em O teatro & eu.

Em 2010, na semana de lançamento do livro, Sergio liga: Cadê esse livro, estou de p. duro (sic), preciso vê-lo já! Calma, Sergio, o portador já foi levar para você.

A ansiedade perduraria até a noite escolhida para os autógrafos. Menina, se eu quiser ir ao banheiro, você vai ter que me levar. Mas Sergio, eu não posso entrar no banheiro dos homens.

O lançamento foi sucesso de crítica e público. No Rio, a Travessa de Ipanema lotou, com filas das 18h30 a quase 1h da manhã. Fechamos a livraria, com brinde dos gerentes, que cumprimentaram o Sergio pela valentia de ficar sentado irradiante todo aquele tempo. Ainda seguiríamos para São Paulo ― Livraria Cultura do Conjunto Nacional ― na mesma semana. Fizemos mais alguns eventos para promover o livro, como o do CCBB do Rio.

Ao abrir o exemplar que Sergio dedicou a mim, leio e me emociono. "Minha amada, a inventora teimosa deste livro de memórias. A convivência desse tempo virou uma amizade para durar. Beijos, Sergio, 26 maio 2010"

"A vida continua. O que mais? A vida." É esse sentimento de recomeço registrado por Sergio no fim do livro que senti ao vê-lo, sereno, sob a bandeira do Fluminense no velório na Assembleia Legislativa do Rio.

Bravo, Sergio Britto. Obrigada, obrigada, obrigada.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Michelle Strzoda é editora da Tinta Negra Bazar Editorial e autora de O Rio de Joaquim Manuel de Macedo: Jornalismo e literatura no século XIX (Casa da Palavra).

Para ir além






Michelle Strzoda
Rio de Janeiro, 13/2/2013
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