Os fantasmas de Norman Mailer | Sonia Nolasco

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Segunda-feira, 31/3/2003
Os fantasmas de Norman Mailer
Sonia Nolasco
+ de 13100 Acessos
+ 2 Comentário(s)

Norman Mailer resolveu festejar a chegada aos 80 anos de idade com livro novo, mas como não tinha um, resumiu suas grandes façanhas literárias do passado em 320 páginas e as dedicou a escritores debutantes. "The Spooky Art: Some Thoughts About Writing" (Random House, US$25.95), seu 32º livro, é uma obra típica de Mailer - arrogante, empolada, e, acima de tudo, provocante. Dá vontade de largar tudo e sair compondo livros. Dá impressão que se pode vir a ser Norman Mailer, basta passar pelas experiências dramáticas que o curtiram, pelos altos e baixos da vida de escritor profissional, incluindo o medo de fracassar, as paixões fulminantes e fugazes, o desafio, a política, e as bebedeiras. Ele ensina algumas regras do jogo, tais como driblar os perigos da fama, enfrentar inimigos e invejosos, esfaquear a própria mulher e se safar, roubar histórias alheias e publicá-las, e chegar aos 80 anos com 55 anos de carreira e entre as figuras máximas da literatura americana.

O livro é apresentado como coletânea muito bem imaginada de pensées aperçus, remorsos, proezas de discernimento, afirmações, algumas justificações e subterfúgios, e vários insultos. São trechos de livros e ensaios famosos de Mailer, e de suas palestras e entrevistas igualmente famigeradas. Seria mais uma compilação de autor célebre com preguiça de escrever, se ele não tivesse costurado sua seleção com novas e refrescantes observações pessoais. Embora Mailer conceda louros a sobreviventes contemporâneos de gabarito indiscutível como John Updike, Saul Bellow e Phillip Roth, e a gigantes de reputação estabelecida como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, e Thomas Wolfe, não economiza desqualificativos ao falar de Toni Morrison e outros menos votados.

No prefácio, ele diz que concebeu o livro pensando "nos jovens romancistas que desejam aperfeiçoar suas habilidades e seu compromisso com as dificuldades sutis e os mistérios inexplorados da arte de escrever romance a sério". Para ilustrar os conselhos, Mailer usa exemplos de seus próprios livros, apontado-lhes também as fraquezas. Numa entrevista recente, ele confessa não mais ter certeza da durabilidade de sua obra, que começou em 1948 com a publicação de "Os Nus e os Mortos" e inclui dois Premio Pulitzer de literatura. Mailer, cujo egocentrismo sempre irritou outros autores, diz que há escritores grandiosos que nunca passarão, "Mas eu não estou nessa categoria".

Em "The Spooky Art", Mailer admite que sua ficção está centrada nele mesmo, e mantém como sugestão fundamental ao romancista debutante - "escrever apenas o que o interessar pessoalmente". Ainda assim, faz uma autocrítica surpreendente: "Escritores não mais são levados a sério, em grande parte por culpa dos de minha geração, e certamente incluindo eu mesmo. Nós não escrevemos os livros que deveríamos ter escrito. Gastamos muito tempo explorando nossa própria vida. Não produzimos o trabalho criativo que poderia ter ajudado a definir a América". Outra observação pertinente zomba dos cursos de auto-ajuda que pretendem formar romancistas: "O que destrói a maioria dos escritores de talento é eles não adquirirem experiência pessoal suficiente; seus livros tendem a desenvolver uma certa paranóia de perfeição". Traduzindo em ditado popular, "inspiração não se aprende no colégio". Mas como a cultura americana insiste em que é possível transformar o pobre em rico, há no mercado milhares de autores medíocres fabricados em cursos.

Mailer frisa que não é contra a perícia, a habilidade extrema de certos autores novos, mas acha que o excesso de cuidado com a literatura, como se fosse um produto manufaturado, aleija a arte, que deve ser acima de tudo espontânea, uma explosão de criação. Cita como exemplo o muito elogiado best-seller "The Corrections" (2002), de Jonathan Franzen. Em seu livro e em entrevistas, Mailer considera Franzen um autor de enorme talento que não ousou voar mais alto, que se limitou a escrever um romance gramaticamente correto. Ao mesmo tempo, Mailer examina a versatilidade e a originalidade das obras de Leon Tosltoi, Saul Bellow, Dostoiévski, e Mark Twain (um de seus maiores prazeres na vida é reler "Huckleberry Finn", que considera "uma mina de ouro, prosa estimulante, sem excesso de erudição"). Entretanto, Mailer não acha que Twain o influenciou: "O artista do século 20 que mais influenciou meu trabalho não foi um escritor, mas Picasso. Ele insistia em mudar constantemente a natureza de seu ataque à realidade. É como se Picasso sentisse que existe uma realidade a ser encontrada mas ela não é um objeto palpável, como uma pedra. Ao contrário, a realidade é uma criatura que está sempre mudando de forma".

Admiradores e estudiosos de Mailer vão gostar de rever páginas conhecidas, como as de "The Deer Park" (1955), terceiro romance do autor, e as imensas dificuldades que ele enfrentou para publicá-lo; de "The Armies of the Night" ("Os Exércitos da Noite"), "The Naked and the Dead" ("Os Nus e Os Mortos"), "Of a Fire on the Moon", "Why Are We in Vietnam?" (1967),"The Executioner's Song", "Though Guys Don't Dance", "Ancient Evenings", "Harlot's Ghost", etc., e o que considera obras menores, como o livro sobre Marilyn Monroe e outro sobre Lee Harvey Oswald. Nenhum deles causa tanto impacto no leitor quanto à análise de "Advertisements for Myself" (1959), momento em que Mailer encontrou sua "voz" de escritor. É capaz de transformar a cabeça de qualquer romancista iniciante. É até hoje vista como a "prosa que liberou os autores americanos na segunda metade do século 20". Os trechos de livros, seus prefácios, entrevistas (algumas delas reunidas em "Pieces and Pontifications" [1982], sendo a mais contundente a de 1963, no The Paris Review), artigos, e ensaios, estão distribuídos em capítulos chamados Estilo, Gênero, Pesquisa Jornalística, Visão Moral, etc. O final de "Spooky" é dedicado à avaliação (e ocasional depredação) de consagrados autores modernos vivos e mortos: Truman Capote, Joseph Heller, Saul Bellow, William Burroughs, Kurt Vonnegut Jr, etc.

Questão de opinião. O que deve ser respeitado é cada conselho de Mailer, gerado por sua longa experiência. Sobre honestidade: Autor que se preocupa com a possibilidade de ferir alguém com seu trabalho é tão escritor quanto um cirurgião que se questiona: "Vou fazer a incisão; vou dar a essa jovem uma cicatriz na barriga que pode prejudicar sua vida sexual nos próximos 30 anos".

Mailer admite que acha difícil inventar tramas, e que se sente mais à vontade em jornalismo "porque a trama já existe". Admite também que seu forte é escrever sobre Norman Mailer. Isso se confirma no capítulo em que comenta a publicação de "The Deer Park". A editora, Rinehart & Co., resolveu suspender o lançamento alguns dias antes do livro ser impresso, sob pressão da censura, que declarou o conteúdo sexual do romance ousado demais para a década de 50. Sorte de Mailer (e da editora, que faturou alto o escândalo), que os anúncios nas revistas já tivessem saído; seria absurdo perder tamanha publicidade. A presença constante de Mailer em "The Armies of the Night" (Prêmio Pulitzer) também pode ser um dos motivos do sucesso dessa reportagem dramatizada sobre a passeata de protesto no Pentágono contra a guerra do Vietnã. Foi escrevendo o livro que Mailer decidiu se colocar na história, ignorando a objetividade tradicional do jornalismo. Mudou para sempre a forma do jornalismo nos EUA. Criou um estilo literário até hoje imitado.

Mas que os autores em potencial não esperem aulas de estilo de Mailer. Ele está mais preocupado com o trabalho em si do que em explicar minúcias de estilo literário. No computo final, o conselho definitivo de "Spooky" nem ao menos surpreende quem quer escrever seriamente: "Nesses anos todos, encontrei uma regra simples - diga a você mesmo que amanhã cedo você vai sentar e escrever. Peça a seu inconsciente para preparar o material. Se você acorda de manhã de ressaca, seu inconsciente, depois de alguns fracassos desse tipo, acaba se recolhendo".

Matisse versus Picasso: duelo de titãs
Certa vez, Picasso comentou: "Ninguém jamais olhou as pinturas de Matisse mais atentamente que eu; e ninguém jamais olhou minhas pinturas mais atentamente que ele".

Desde o momento em que se conheceram, em 1906, em Paris, os dois começaram a medir forças, a se desafiarem, se incentivarem, e até a se copiaram. Foram amigos, rivais, e gigantes da arte do século 20. Desde que morreram, Matisse em 1954, com 78 anos, e Picasso em 1973, com 91 anos, suas respectivas obras têm sido constantemente examinadas em exposições de temas diversos em todos os museus do mundo. Agora os dois se confrontam mais uma vez em grande estilo, no anexo do Museu de Arte Moderna de Nova York (no Queens), em cerca de 140 obras selecionadas em vários museus internacionais e ilustres coleções particulares, até o dia 30 de maio de 2003. É um verdadeiro duelo de titãs.

Mas outra vez Matisse e Picasso? Só que agora é diferente. Quem pensa que já viu tudo e sabe tudo sobre os dois, vai ter uma baita surpresa. Os quadros são bastante conhecidos, como "Les Demoiselles d'Avignon" e "Harlequin", de Picasso, e "The Pink Nude" e "Goldfish and Palette", de Matisse. Mas nessa mostra eles não estão separados em paredes diferentes, nem distribuídos por tema ou período. As obras de um e de outro estão lado a lado, uma reagindo à outra, Matisse respondendo a Picasso e vice-versa, Picasso pintando odaliscas e Matisse tentando Cubismo. É uma espécie de diálogo que mostra, acima da rivalidade, a profunda afeição e admiração que uniram os dois artistas.

O Cubismo de Picasso existe há quase um século e já foi usado de todas as maneiras pela indústria e pelos designers comerciais. Seus desenhos tornaram-se parte do vocabulário visual de cartunistas e ilustradores. Quanto a Matisse, suas formas de cores deslumbrantes já foram vistas em filmes, cenários de teatro, e salões de decoração. Mas no MoMA estão os originais. Um duelo de titãs.

Quem é o vencedor? Gosto não se discute. O critico André Salmon escreveu que é quase impossível um verdadeiro amante da arte admirar igualmente Matisse e Picasso, pois são totalmente diferentes, e provocam uma preferência: Matisse, o mestre consumado da cor, capaz de criar imagens sensuais a partir das cores, apenas, e assim alterou nossa idéia de realidade, o pintor da simplicidade absoluta, que acreditava numa arte de equilíbrio, pureza e serenidade, e retratava espaços reais de maneira totalmente abstrata; Picasso,o feroz destruidor das formas, engenheiro do Cubismo, boêmio impetuoso e erótico, o pintor da sexualidade, que retratava suas fantasias eróticas e as tornava críveis, que embelezava suas musas enquanto apaixonado e depois as coisificava cruelmente.

"Matisse e Picasso eram tão diferentes quanto o Pólo Norte e o Pólo Sul", escreveu Fernande Olivier, primeira amante de Picasso. Era natural que se tornassem antagonistas e parceiros necessários. Começaram em pólos opostos mas, depois de se encontrarem, se tornaram, juntos, protagonistas da revolução artística do século 20, imbuídos em possibilitar o diálogo que deu a forma à narrativa da pintura moderna. Por causa desse passado, os dois emergem vencedores na exposição do MoMA.

Enquanto a sede do museu está fechada, em obras, até 2005, é preciso pegar um metrô (longe demais do centro da cidade) para chegar ao Queens. Vale a pena qualquer sacrifício para ver as cores deslumbrantes (sol alaranjado, oceano turquesa) de Matisse no Marrocos e no Sul da Franca, e suas mulheres langorosas; para ver os traços arrojados de Picasso expressarem cruamente suas fúrias, medos e paixões. Ou, como bem colocou um crítico, "o suculento e o truculento".

Pode-se observar, pela primeira vez num museu, o relacionamento dos dois artistas, seu desespero, sua pujança visual e sua persistência na medida em que um instiga o outro a ousar, a ultrapassar os limites da tradição estabelecida. Vê-se Picasso, autor de tantos nus explícitos se inspirando nos nus de Matisse, e Matisse septuagenário se inspirando nas idéias de Picasso sobre forma e figura, para retornar a projetos inacabados de sua fase Fauvista e também reduzir tudo ao mais básico da forma e da cor, criando as famosas figuras gigantes recortadas em cartolina azul real.

Vale a viagem esse momento em que se compara a pintura "Odalisque With Tambourine", 1926, de Matisse, com a de Picasso, "Large Nude in a Red Armchair",de 1929, lado a lado, e se conclui que um artista inspirou-se no outro. Os dois foram radicais e revolucionários.

Rivalidade ou influência? O crítico e historiador de arte Yve-Alain Bois, que reuniu obras de Matisse e Picasso numa exposição semelhante, no Museu Kimbell, em Fort Worth, Texas, em 1999, acha que "não é inteligente dizer que Picasso foi influenciado por Matisse, ou o reverso. Acredito que em certos momentos cruciais ambos se sentiram num ringue de boxe, ou parceiros numa espécie de jogo. Mas o que estava em jogo era exatamente o exercício de pintar. Algo como: Qual a possibilidade de pintura hoje? Eles recusavam a pura abstração, o que os russos estavam fazendo. Os dois queriam permanecer dentro dos parâmetros de uma certa tradição. Organizando a minha mostra, literalmente senti que ambos tinham uma determinação missionária de provar que ainda existiam possibilidades de trabalhar dentro desses parâmetros".

Bois conta que tentou e não conseguiu descobrir no próprio trabalho deles a lógica que atraia um ao outro, "A situação torna-se mais dramatizada quando tentamos entender o tipo de estranha relação dialética entre os dois, por que eles de repente se sentiam mais conscientes e receptivos ao que o outro estava propondo. No final dos anos 30, em especial, é sensacional a maneira como cada um tenta introduzir, em seu próprio idioma, alguma inovação do outro. Era como um diálogo: Você faz isso, eu faço aquilo; você faz aquilo, eu faço isso. A noção de dialogo, de Bakhtin, é basicamente a idéia de que toda vez que você exprime alguma coisa, tem um interlocutor em mente. Quando você fala, quando pinta, pinta de uma certa maneira porque, em grande parte, já antecipou a resposta. E essa resposta já é parte do banco de dados com o qual você trabalha quando fala ou pinta. Em se tratando de indivíduos de forte determinação como Matisse e Picasso, os dados tomam um aspecto dramático e poderoso, que leva a mudanças drásticas. Nas telas, pode-se 'ver' o processo em ação."

Os pólos opostos se convergem na arte
Henri Matisse nasceu em 1869 numa família de classe média alta na Picardia, região no norte da França de céu sempre cinzento e chuvinha constante. Talvez explique porque ele passou tanto tempo a beira do Mediterrâneo, em busca de sol, e se sentiu tão realizado no Marrocos. O pai queria que ele fosse advogado. O rapaz obedeceu e, nos primeiros 20 anos de vida, nunca pegou um pincel. Vestia-se como um banqueiro, totalmente convencional, terno impecável de colete todo abotoado, e vasta barba bem cuidada. Comecou a pintar por brincadeira, quando se recuperava de uma operação de apendicite, e só entrou para a escola de belas artes aos 26 anos.

Pablo Picasso Ruiz nasceu de família paupérrima na ensolarada Málaga, Espanha, em 1881. Seu pai era pintor acadêmico, e o menino se viu muito cedo entre telas e tubos de tinta. Adolescente, na Galícia, já era excelente aprendiz do estilo acadêmico que o pai lhe ensinara, e produzia desenhos extraordinários. Tinha 14 anos quando sua família mudou-se para Barcelona. Amadureceu rapidamente como pintor; tornou-se boêmio, irrequieto e irreverente. Em Paris, aos 19 anos, sua pintura explorava cenas exuberantes da Andaluzia e formas cheias de arabescos da Espanha moura.

Quando os dois artistas se conheceram em Paris, no apartamento dos irmãos Gertrude e Leo Stein, americanos, que mantinham um salão cultural, Matisse já era famoso como o líder dos Fauvistas, grupo de pintores que se inspiraram no trabalho do Impressionista Paul Cézanne para se expressarem apenas em cores puras, especialmente as cores ardentes, vibrantes, do outono, e em pinceladas bruscas exuberantes. Matisse tinha acabado de pintar "Le Bonheur de Vivre", uma paisagem Arcadiana repleta de figuras que sintetizavam Ingres, Gauguin, Cézanne, gravuras japonesas e arte muçulmana. Continha elementos que ele pintaria para o resto da vida: dançarinas, músicos e nus. Segundo comentários da maliciosa Gertrude Stein, desde o primeiro encontro os dois artistas sentiram que eram rivais e passaram a se estudar, cuidadosamente, um rodeando o outro, como duas feras, um observando as reações do outro diante de seus respectivos trabalhos em galerias. Cada um escolheu uma tela do outro, e pendurou em casa: Matisse escolheu uma natureza-morta medíocre, e Picasso levou um portrait também ordinário. Quando recebiam visitas, esnobavam as telas, "Ah, isso aí? É aquele espanhol, Picasso". "Ah, isso aí? É o que anda fazendo Matisse".

Na exposição, o auto-retrato de cada artista, em 1906, é uma espantosa revelação: Matisse, em cores fortes, de barba respeitável e olhar inquisitivo, parece seguro de sua posição; Picasso, 12 anos mais novo, mas em tons sombrios, e de palette na mão, como que pronto para a briga, parece confiante na vitória. Matisse passou a visitá-lo em seu estúdio. Picasso começava o portrait de Gertrude Stein quando Matisse mostrou-lhe máscaras do Congo. A revolução que os objetos provocaram na cabeça do jovem está expressa na ferocidade e distorção radical das formas de "Les Demoiselles d'Avignon" (1907), espécie de marco do início do Modernismo. Matisse teria ficado em estado de choque, disse um crítico da época, "Picasso foi o primeiro a agir; mas Matisse foi o primeiro a entender o que Picasso queria realizar". E respondeu à altura. Alguns meses depois Matisse apresentou uma composição bem diferente de seu background, "Bathers With a Turtle" (1908).

Daí em diante o espectador da mostra mergulha no dialogo dos dois e se surpreende descobrindo o quanto eles se incentivaram mutuamente em realizações pioneiras. Matisse, sempre sereno e fiel às suas raízes; Picasso, audacioso e quebrador de moldes. Um nunca se sentia satisfeito enquanto não alcançasse o que o outro tinha feito. É difícil imaginar o trabalho de Picasso se não tivesse existido a rivalidade com Matisse, e vice-versa.

O portrait de Gertrude Stein fica ao lado do portrait de Matisse do colecionador Auguste Pellerin. As telas cubistas se confrontam - "Guitarre", "Man Leaning on a Table" (1915-16) e "Harlequin" (1915) , de Picasso, enfrentam a profusão de cores típica de Matisse, mas sua tendência já claramente Cubista (depois de duas viagens ao Marrocos) em "Goldfish and Palette" (1914) e "The Piano Lesson"(1916). Mais adiante, nota-se que "The Maroccans" (1915-16) de Matisse teria provocado Picasso a realizar de "The Three Musicians" (1921). A mostra termina com "Violinista na Janela" (1918), de Matisse, então com 50 anos, e "A Sombra" (1953), de Picasso aos 72 anos.

Segundo Yve-Alain Bois, Matisse se empenhou, em vão, em entender o Cubismo, "O que entendeu foi uma espécie de ambigüidade das coisas. Por alguma razão, quando ele tentava pintar à maneira cubista, a idéia se acelerava muito rapidamente em abstração, e o deixava nervoso." Enquanto isso, o Cubismo de Picasso avançava, explorando formas fragmentadas complexas, e beirava a arquitetura. Conceitualista, ele aceitava mudanças aparentemente irracionais. Mas Matisse, prático e sempre apoiado em sua própria experiência, não tolerava formas ambíguas. Gostava de retratá-las corretamente, planas, e espalhadas pela tela, em vastas superfícies coloridas. Insistia em ocupar um espaço racional. Mas ousou espraiar-se em telas colossais. Com ele Picasso aprendeu a monumentalizar suas telas cubistas, até então pequenas. Além dessas, a maior contribuição de Matisse ao Cubismo foi uma nova austeridade, uma certa aspereza de formas, e o contraste dramático de cores.

Depois da II Guerra Mundial, Matisse mudou-se definitivamente para fora de Paris, e Picasso acabou indo morar próximo, para visitá-lo com freqüência. Os dois se tornaram realmente amigos. Embora discutindo e se criticando mutuamente. Anos mais tarde, Picasso diria: "Considerando tudo, existe apenas um Matisse" . E o velho artista comentava: "Uma única pessoa tem o direito de me criticar... Picasso". Depois da morte do amigo, Picasso declarou, "Ele me deixou suas odaliscas", alegando que eram sua herança, e passou a pintá-las com todo gosto e erotismo. A mais impressionante da exposição é "Mulheres de Algiers" (1955). Picasso tinha em casa 7 telas de Matisse, algumas compradas de marchands. Nos últimos anos de vida, com as mãos aleijadas pela artrite, e o organismo arruinado pela idade e uma série de doenças, Matisse se dedicou a mais uma revolução da imagem visual, os "cut-outs" de cartolina azul, e mantinha junto à cama uma tela de Picasso.

Nota do Editor
Os textos aqui reproduzidos são inéditos. Foram especialmente compostos pela autora para o Digestivo Cultural. (Saiba mais sobre a participação de Sonia Nolasco na seção Ensaios, clicando aqui.)


Sonia Nolasco
Nova York, 31/3/2003
Quem leu este, também leu esse(s):
01. Sermão ao cadáver de Amy de João Pereira Coutinho


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* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
31/3/2003
18h56min
Cara Sonia, parabéns pelo seu belo texto. é um prazer ler seus comentários. se eu fosse forçado a escolher entre Picasso e Matisse, escolheria Picasso. Acho que todos escolheriam ele. Mas, mesmo assim, ficaria um gosto terrível de perda nessa escolha. Melhor é não escolher e abraçar logo os dois. O seu texto, de uma percepção incrível do universo destes artistas, colabora para que fiquemos com os dois. parabéns!!! jardel
[Leia outros Comentários de jardel]
24/4/2003
12h37min
Sônia, parabéns pela incrível sensibilidade com a qual escreve. Me sinto motivada pelos seus comentários a ler mais e a conhecer mais. Parabéns, orgulho Juliana
[Leia outros Comentários de Juliana]
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