ENSAIOS
Segunda-feira,
29/12/2003
Os solitários anônimos de Fusco
Luís Antônio Giron
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Figuras extravagantes de um submundo perdido se infiltram de mansinho nas
estantes das livrarias: o balconista paranóico bate em todo mundo; o
espectro faz convites obscenos aos integrantes da sessão espírita;
dona-de-casa se apaixona pela empregada e a mantém presa; uma minhoca
filósofa divulga a epístola definitiva sobre a origem do universo. O
esquisito e hilariante universo do mineiro Rosário Fusco ganha recarga
póstuma.
Fusco reloaded: acaba de sair em livro uma das obras inéditas desse que foi
um dos principais ficcionistas do Modernismo, o incrível romance a.s.a -
associação dos solitários anônimos. Outros títulos seus jamais publicados
estão prontos para conquistar os leitores pelo estranhamento das situações e
a absoluta ausência de moral. Como não bastasse, os 11 livros que publicou
em vida em muitos gêneros, da poesia ao ensaio, demorando-se na ficção,
esperam que a corrente principal da literatura brasileira seja desviada até
eles. Segundo os especialistas, a obra de Fusco desafia os historiadores a
reavaliar o cânone literário. O "nosso Kafka", na definição do crítico
Antonio Olinto, ainda não encontrou um nicho entre os grandes mestres. "Ele
foi um dos maiores do século XX", diz o crítico Sábato Magaldi. "Fico feliz
porque sua obra está sendo redimida."
Redenção lenta. Há três anos, o selo Bluhm reeditou o romance O Agressor,
marco inaugural da narrativa fantástica no Brasil. Escrita em 1939 e
publicada cinco anos depois, as desventuras do jovem lunático David foram
precursoras de exemplos semelhantes por outros autores mineiros, como o
romance O ex-mágico, de Murilo Rubião, de 1947, e as novelas supra-realistas
de Campos de Carvalho, dos anos 50 e 60. Se estes obtiveram repercussão em
vida, Fusco amargou o desprezo, pois contrariava as modas. Mesmo assim, o
cineasta Orson Welles gostou tanto do livro ao lê-lo na tradução italiana
que comprou os direitos de filmagem, mas nunca o produziu. Caiu sobre Fusco
a maldição de indecifrável.
Em de 1954, um resenhista do Correio da Manhã tentou uma definição ao seu
segundo romance, Carta à Noiva, que pode se aplicar a toda a sua obra: "um
vasto pornorama". O livro descrevia o cotidiano anárquico de um bordel,
imagem do mundo que só resolve os conflitos no sexo. Este é o tema
recorrente em Fusco. Seus relatos giram em torno da nulidade da vida e foram
produzidos durante a voga realista do ciclo nordestino. O padrão desses
romances não combinava com a narrativa de Fusco - desconexa, recheada de
personagens disfuncionais, rastejando em pensões, lupanares, delegacias.
Na poesia, Fusco praticou o poema-piada no início do Modernismo, movimento
do qual se tornou o menino-prodígio. Aos 17 anos, fundou em Cataguases,
cidade mineira da Zona da Mata, o Grupo Verde e a revista homônima que
circulou entre 1927 e 1929. Num dos manifestos da Verde, propunha que
ninguém era de ninguém no movimento modernista. "Na Arte Moderna não há
escolas, nem nada. Portanto, cada um pra si (...) Nada de política. Nada de
partidos. Nada de polêmicas. Nada. Nada. Nada!" Seguiu à risca tal princípio
- que, na realidade, nada tinha de modernista; sem querer, lançou o
pós-modernismo.
Foi também sujeito fora de ordem. Muito pobre, filho de uma lavadeira mulata
e de um italiano que também se chamava Rosário Fusco, ele tentou conciliar a
boêmia com o cargo de funcionário público, a origem humilde com a sede de
cosmopolitismo. Casou-se cinco vezes, a última com a francesa Annie,
colecionou casos amorosos e esbanjou a vida a fumar, beber e reunir os
amigos. Morou no Rio dos anos 30 aos 60, onde trabalhou no Departamento de
Imprensa e Propaganda da ditadura Vargas, viajou para a Europa e,
cinqüentão, regressou a Cataguases. Ali, abriu sua casa para noitadas
etílico-literárias. Tido como maluco pelos concidadãos, saía à rua de
pijama, desgrenhado e gritando palavrões, tudo potencializado pela voz de
trovão e 1,87 metro de altura. "Escreveu os últimos livros de madrugada,
entornando um uísque atrás do outro", conta seu filho, Rogério François. Ao
morrer - sorrindo, com uma dose de morfina aplicada para aplacar as dores do
câncer na próstata -, em 17 de agosto de 1977, ele não publicava havia 16
anos.
O último livro que escreveu foi a.s.a., no final dos anos 60. Ali, descreve
magistralmente um ambiente caótico, com personagens sem nome, moral ou
objetivo, que caem de borco nos próprios dejetos, refestelam-se no sangue em
decomposição, usufruem da promiscuidade e riem de si próprios. A impressão é
de um carnaval no inferno, com os foliões a arder nas chamas da libido.
Além de a.s.a., Fusco deixou um livro de poemas eróticos, Creme de Pérolas,
diários, um relato de viagens (Um Jaburu na Torre Eiffel), peças de teatro
e mais um romance de estranho título: vacachuvamor, três histórias unidas e
destituídas de outra lógica que a do desejo. François planeja lançá-lo em
breve, assim como os títulos restantes, em edições que façam jus ao tumulto
do artista que tinha por divisa um provérbio mineiro: "O que tem de ser, tem
força".
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Época.
Para ir além
Luís Antônio Giron
São Paulo,
29/12/2003
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