Joseph Beuys (1921-1986) foi o único artista que estruturou o seu projeto contra a obra de Duchamp. A “banheira” de Beuys rima visualmente e ironicamente com o “urinol” de Duchamp. Para Duchamp, o mais comum e banal dos objetos se tornam sagrados a partir da “minha decisão de colocá-lo num museu”. É o auge da “anti-arte”. Para Beuys, “toda pessoa é um artista”. A experiência pessoal é o único caminho capaz de nortear a criação.
Quem é habilitado a criar? Segundo Duchamp, “aquele que inventa um signo: portanto eu sou o único ou o maior ou o último artista”. Beuys responde que todos “aqueles que conhecem a linguagem do mundo, ou seja, você e eu estamos habilitados a criar”.
Beuys, um dos artistas modernos mais controvertidos nos anos 70 e início de 80, conhecido como perfomático, místico, guia, xamã, criou uma obra semeada de obstáculos, realizada sob vaias, assobios do público e incompreensão da crítica, mas ele suporta com a impavidez daqueles que detêm a força. Suas “ações” ganham o sentido de verdadeiros rituais, que mostram Beuys em um estado de concentração e de intensidade cuja força comunicativa, freqüentemente qualificada de fascinação, é atestada por todos os presentes.
Os desenhos, esculturas, “ações” e preocupações de Beuys representam em grande parte os animais que ele tanto amou. Segundo Alain Borer, “há um bestiário beuysiano: o veado, o chacal, a cegonha, o cisne, o gamo, o alce, insetos, o lobo americano e a lebre européia, pássaros marinhos, o urso, os peixes, a rena, o bezerro e muitas outras espécies indiscerníveis, compreendendo toda a criação. Como os minerais e vegetais, os animais detêm forças elementares vitais. Beuys está não apenas empenhando em aprender com estes sobreviventes da civilização, adquirindo aquilo de que as pessoas estão destituídas – um instinto certeiro, um senso de orientação – mas, ao expor a sua animalidade (roupa de pele, capa de feltro, chapéu de feltro), ele desenvolve os seus projetos junto com eles, na sua presença (a lebre morta, o cavalo branco), ou com os seus corpos (gordura de animais, desenhos feitos com sangue)”.
A trajetória do artista, narrada no livro Joseph Beuys, de Alain Borer (Ed. Cosac & Naify), pode ser entendida a partir da obra Sled de 1969. Sled (trenó), feito de madeira com deslizadores de metal, nos quais havia sido amarrado um cobertor de feltro dobrado, uma lanterna e um pedaço de gordura de vela modelado em forma de lâmpada. É um kit de sobrevivência. Esta obra explica o famoso incidente da vida dele. Na Segunda Guerra, Beuys, então com 22 anos, era piloto de um Stuka, quando foi abatido pelos russos nas florestas da Criméia. Durante alguns dias Beuys ficou inconsciente. Foi salvo pelos nômades tártaros que o trataram com remédios feitos de ervas e esfregaram-lhe gordura de animal no corpo, e usaram o feltro para mantê-lo aquecido. Este acidente mudou a sua vida e o feltro e a gordura se tornaram materiais de grande parte de sua obra. Sled, uma peça estranha, é a metáfora da busca e sobrevivência dos tempos que Beuys passou no deserto russo.
No vídeo Transformer, Beuys fala sobre a experiência da guerra: “O começo de uma nova vida foi o aspecto positivo dessa experiência. Foi um processo terapêutico, a primeira vez que me dei conta de que o artista pode desempenhar um papel importante na cura de um trauma social. Relacionei o que eu tinha vivido com o caos, que identifiquei como um movimento aberto à ordem da forma. Foi assim que nasceram minhas esculturas”.
Para Beuys, as mudanças na estrutura social e política do mundo aconteceria somente a partir da arte. A história pessoal do artista transforma arte em política e política em arte. Beuys defende que “somente a arte, isto é, a arte concebida ao mesmo tempo como autodeterminação criativa e como processo que gera a criação, é capaz de nos libertar e de nos conduzir rumo a uma sociedade alternativa”.
Toda a obra de Beuys é regida pelo sentido político, social, ecológico e metafísico. Nos anos 70, o artista tornou-se professor de Escultura Monumental da Academia de Artes de Düsseldorf (Alemanha), para onde levou todos os alunos afastados pela instituição. Em favor de uma universidade livre, ocupou juntamente com 54 estudantes, a secretaria da escola, o que resultou em sua expulsão. Essa ação transformou Beuys em um mártir da causa artística.
Militante da liberdade e da criatividade, o artista fundou a Organização pela Democracia Direta. Em 1982, o artista adere ativamente ao programa e à campanha eleitoral dos Verdes. Por meio de suas ações e de sua atividade como professor, tornou-se o grande artista da Alemanha, representando o país oficialmente nas Bienais de Veneza e de São Paulo.
Beuys é conhecido principalmente como autor de várias “ações” artísticas, com o propósito de ressaltar a quarta dimensão da escultura: “aquela na qual as atitudes ganham forma, e os comportamentos, conteúdos”. Em 1962, o artista adere ao movimento “Fluxus” que procurava, por meio de suas performances explorar o efêmero, o transitório, e ainda manifestar a energia vital coletiva. “Fluxus” tem como lema a sentença de Heráclito: “Toda a existência passa pelo fluxo da criação e da destruição”.
Pode-se dizer que Beuys, um dos mais originais e influentes artistas do século XX, reconhecido em seu tempo como "pastor" ou "guia", trouxe a arte para a vida. Recusou a beleza como meta em si e como meio. Todo o seu trabalho orienta-se em busca da idéia da verdade. Segundo Heidegger, “é somente quando o homem enquanto 'pastor do ser' espera a verdade que ele pode esperar uma mudança do destino do ser”.
Nota do Editor
Texto inédito gentilmente cedido pelo autor. Publicado, portanto, pela primeira vez neste espaço.
Pedro Maciel nos traz uma perspectiva interessante e renovadora em torno de Joseph Beuys, uma das figuras mais interessantes do século que já passou há tanto tempo...
ola amigos
adorei o texto, pesquiso o trabaho de Beuys há algum tempo e este parece ser o enfoque principal: o artista pode desempenhar um papel importante na cura de um trauma social.
vou indicar o texto para os meus alunos na universidade.
obrigada
naira
aprecio muito beuys por motivos singulares.sou artista plástico que
busca a liberdade da criação e não pre
tendo seguir modinhas obsoletas
e não acredito em metodologia em ensino
de arte.vivo mudando o tempo todo
e coleciono cartas e comunicados
de "infelizmente sua obra não foi escolhida pela bancada julgadora" e
produzi uma "escultura" com estas cartas. fiz um auto retrato em tamanho
natural e o coloquei dentro de um retângulo de concreto e o jogeui no fundo do oceano, para ser achado daqui há 1000 ou 10.000 anos, talvez, por uma
civilização não-guerreira...
duchamp talvez não nos interesse mais,
mas beuys sim, pois a sua conduta
parece não ter princípio,meio e fim,já o duchamp com seu signo, perdeu a
importância e está datado em seu tempo,
mas beuys permanece válido.querem saber
de uma coisa? sou mais o daniel senise
que os tubarões em formol do damien hirst porque arte pré-estabelecida
calculadinha,que sabe seu resultado
perdeu a poética da razão e da emoção
e ficou boiando no xixi da lógica,
da racionalidade minimalista demais
como um conceito e arte conceitual
e gelada virou cristal de neve,ou melhor
uma nanoarte esquecida no século passado.
Pela triste e trágica situação em que se encontram as artes -nas ultimas edições da bienal de São Paulo, por exemplo-, Beyus é a maior referência de como a arte chegou a isso. Ele foi muito além de Duchamp em se tratando de ironia e de como saber usar o poder persuasivo de alguém que carrega a aura mágica do artista, coisa que atualmente não existe mais, talvez extinta por ele mesmo... Ao criar a performance "COMO ENSINAR ARTE A UMA LEBRE MORTA", deu um verdadeiro xeque-mate (Duchamp tinha dado o xeque). Depois dessa performance, quem é que vai querer ser considerado "lebre morta", ao dizer que não entende que unhas, cadeiras, guarda-chuvas, pratos, roupas, bicicletas, fuscas? Não é arte??? Não entendo logo sou lebre morta (mas fico quieto...).
Esse sim é o gênio do século XX. Salve, Beuys.
Percebam: ele vivenciou uma fantástica aventura, experimentando o valor da vida, das coisas simples, o contato com a natureza e sua importância enquanto essência. Daí, ele traz para o universo de uma arte em conflito, a vida, formando o binômio arte-vida, retirando a arte de seu pedestal e colocando ela nas mãos de todos. Duchamp questionou e Beyus respondeu. Cada qual ao seu tempo, com a sua função dentro da história que já, hoje, não se sabe se pode ser chamada de arte somente... Arte-Vida? É algo para se refletir. Quem sabe, daqui a 50 anos, compreenderemos o verdadeiro valor da existência de Beyus.
Beuys é realmente o maior artista dos anos 60. Concordo plenamente com ele quando diz: "tornar as pessoas livres é o objetivo da arte, e a arte é a ciencia da liberdade".