Os saiotes estão de volta. Os saiotes gregos e macedônicos. As túnicas também. Assim como as togas, as clâmides e as armaduras. Na passarela cinematográfica, a moda retrô virou o dernier cri da temporada. Retrô pra valer. Nas telas, grandes e pequenas, uma volta aos tempos de Aquiles, Alexandre Magno, Espártaco e Lancelot. E, indiretamente, às décadas de 50 e 60 (do século passado), quando uma interminável onda de filmes “históricos”, nem sempre inspirados na Bíblia e muito menos fiéis a Homero, Heródoto, Tucídides e Xenofonte, transformou o cinema num baile carnavalesco apinhado de halterofilistas.
Filme de saiote foi como aprendi a identificar o que americanos e ingleses chamam de toga epics (épicos de toga) e sword-and-sandals flicks (fitas de espada e sandálias). Os franceses optaram pela expressão latina peplum — originalmente grega (peplos), que era como os antigos se referiam àquelas túnicas sem mangas presas ao ombro por um broche ou uma fivela — não só porque os críticos franceses são mais eruditos e pernósticos, mas sobretudo porque uma denominação vulgar, tipo film d’épée et sandales, poderia comprometer a empostação que vários deles, inclusive no Cahiers du Cinéma, adotaram ao analisar as extravagâncias greco-romanas assinadas por Vittorio Cotttafavi, Riccardo Freda e outros, nos estúdios de Cinecittà, tratando-as como se Fellini ou Antonioni as tivessem dirigido.
Minha iniciação como crítico de cinema coincidiu com a voga de tais épicos, fugazes showrooms de Steve Reeves, Mark Forrest, Reg Park e outras anabolizadas figuras, cujas proezas como Maciste, Ursus, Hércules, Sansão e demais super-homens da Antiguidade geralmente cabiam a mim ver e comentar no Correio da Manhã. Tornei-me, involuntariamente, um experto em peplum, mas não, talvez, uma referência confiável, já que em nenhum deles consegui enxergar as sutilezas detectadas pelos meus confrades parisienses. Achava-os enfadonhos e ridículos, apegando-me ao que de mais bisonho despontava na tela, anotando-lhes os diálogos mais risíveis e os absurdos e anacronismos mais gritantes (Hércules virava Golias, Golias defrontava-se com Gengis Khan, uma zona mitopoética).
Ah, os diálogos dos filmes de saiote! Como levar a sério uma aventura secular em que a mocinha xinga um bárbaro de “seu cão celta de uma figa!”? No mesmo épico (Revolta dos Bárbaros, dirigido por Rudolph Maté em 1961), o celta em questão exulta, no meio de uma batalha, que sua espada “voltou a respirar”. Imagine a graça dessas falas em italiano. O trailer já era uma pândega, com o locutor anunciando, aos gritos: —“Lo schermo non sera più lo stesso dopo Revak, Lo Schiavo di Cartagine!”
Tenho alguns favoritos nessa especialidade. Raras falas me parecem comparáveis a uma ordem de John Wayne em Sangue de Bárbaros (The Conqueror, 1955). Encarnando o mongol Gengis Khan, Wayne condena um traidor a ser “enforcado na árvore mais alta” da região. Como a região em que estavam era o deserto de Gobi e a coisa mais alta que lá havia era o próprio Wayne, muito bem fez o diretor Dick Powell em ocultar com uma elipse a execução do traidor.
Com os anacronismos e as mancadas do gênero pelo menos um historiador, o bolonhês Sergio Bertelli, já produziu um livro. Se valesse a pena, eu talvez pudesse produzir outro, com ênfase em marcas de vacina nos braços de Helena de Tróia, Messalina e Penélope, marcas de relógio nos pulsos de gladiadores e deuses do Olimpo, e em erros históricos, geográficos, arquitetônicos — e até de linguagem. A Cleópatra de Elizabeth Taylor conseguiu a proeza de desfilar por uma Roma em que já havia o arco de Constantino (construído 362 anos depois), o Pantheon (erguido 172 anos mais tarde) e outros monumentos posteriores ao seu affair com Júlio César. Ninguém foi capaz de explicar o que em O Manto Sagrado fazia o Coliseu, só edificado durante o reinado de Vespasiano. Nem porque o Alexandre Magno de Richard Burton lia mapas com nomes em latim (Europa, Mare Nostrum, Pontus Eusinus), embora vivesse na Macedônia e falasse grego.
Que deliciosos despautérios nos reservarão os novos filmes de saiote? Dei conta dos deslizes e das licenças poéticas de Gladiador, o superespetáculo responsável pela ressurreição do gênero, que, diga-se, a exemplo do cometa Halley, vive voltando ao nosso convívio. Tudo começou (em 1914, com Cabíria, de Carmine Gallone) e recomeçou na Itália (com Fabíola, de Alessandro Blasetti, em 1951), cabendo a Freda, Cottafavi & cia. prorrogar seu sucesso até os primeiros anos da década de 60.
Arrisquei prever, quando do lançamento de Gladiador, que o gênero não teria futuro, salvo se aproveitado, como outros períodos imemoriais o foram, por jogos eletrônicos; ou seja, como pano fundo para duelos brutais e alucinantes perseguições. Ridley Scott quis provar o contrário: que era possível “modernizar” o peplum sem, no entanto, imbecilizá-lo. Modernizá-lo tecnologicamente Ridley, sem dúvida, conseguiu. Mas quem não o faria com um orçamento de US$ 103 milhões?
Mais que o dobro custou Tróia (Troy), o principal destaque da nova leva de épicos de espada & sandália, que estreou mundialmente. Seu maior trunfo, nesses tempos de exibicionismo conspícuo, só podia mesmo ser o legendário cavalo de madeira, o maior já confeccionado para aparecer diante das câmeras.
Considerando-se que Tróia era pouco mais que uma cidadela no topo de uma colina da Ásia Menor e na Ilíada Homero não menciona o pérfido mimo grego (a ação do poema dura 55 dias e termina com o funeral de Heitor), licença poética é o que não falta ao filme. A interpretação que o roteirista David Benioff e o diretor Wolfgang Petersen deram à guerra de Tróia segue a tradição das anteriores, desprezando as modernas teorias que põem em dúvida a existência de Helena e do cavalo, para não falar do próprio Homero.
Uma penca de historiadores duvida que os gregos tenham se metido numa guerra de dez anos por causa de uma mulher, por mais bela que fosse. Mas ainda que Helena (na verdade, de Esparta), não tenha sido uma Ava Gardner, a imagem que dela ficou foi a de eterno mito da beleza feminina — presente até em canções de Cole Porter (“Looking At You”) e Stephen Sondheim (“Lovely”) — e contra essa fama Hollywood jamais investirá um centavo. O motivo do conflito entre gregos e troianos teria sido de ordem econômica. Embargo de cereais, basicamente cevada, suspeita-se. Esta e outras teses fariam de Tróia um filme, pelo menos, sui generis.
Para escapar da mesmice, contudo, há que se assistir a um documentário, The True Story of Troy, que o canal a cabo History Channel exibiu, nos EUA. Embora o HC pertença à Time Warner e Tróia tenha sido produzido pela Warner, o documentário transforma o mamute estrelado por Brad Pitt numa monumental fantasia. De qualquer maneira, ajudou a promovê-la; não tanto, é verdade, quanto outro teledocumentário, Troy: The Passion of Helen, transmitido por outra emissora a cabo (A & E). Pelo título vê-se logo que negar a existência e a importância de Helena não faz parte do seu repertório de novidades. Seu diferencial é o enfoque feminista do casus belli oficial. Narrado pela atriz Susan Sarandon e com depoimentos de várias mulheres, entre as quais Camille Paglia, toma a defesa da sra. Menelau e justifica sua paixão pelo jovem Páris.
Outras provas de que os saiotes estão de volta: a minissérie Spartacus, transmitida há duas semanas pelo canal a cabo USA; a nova versão das conquistas de Alexandre Magno, dirigida por Oliver Stone, com o título de Alexander e Colin Farrell no papel que Richard Burton celebrizou há 48 anos; King Arthur, mais uma incursão à Tavola Redonda, desta feita com a chancela do produtor Jerry Bruckheimer. Não bastasse, a ABC começou a rodar uma minissérie ambientada na Roma de Júlio César e a HBO, outra, já com Otávio no lugar de César.
Motivos não faltam para que Alexander resulte num épico mais polêmico do que bom. Stone sempre foi mais provocativo do que talentoso. A história de Alexandre presta-se bem a uma reflexão sobre o poder, timidamente esboçada por Robert Rossen em Alexandro Magno, e não será surpresa se Stone usar as conquistas que o precoce gênio militar da Macedônia fez na Ásia e no Oriente Médio para cutucar o expansionismo e a belicosidade do presidente Bush, de quem é declarado desafeto.
Nenhum épico histórico ou mitológico é totalmente inocente. E muitos abusaram de metáforas e paralelismos com mazelas e poderes contemporâneos. Um quarto dos filmes produzidos na Itália fascista eram “históricos”, a maioria de propaganda subliminar. Ainda faltavam oito anos para Mussolini virar il duce quando o precursor Cabíria, com roteiro de Gabrielle D’Annunzio, enfiou em seu desfecho uma exaltação à anexação da Líbia pela Itália em 1912.
Cecil B. De Mille não era só mestre na exploraração de cenas de lascívia em épicos bíblicos. Neles também contrabandeava mensagens políticas. Antes de relançar, em 1943, O Sinal da Cruz, produzido em 1932 e passado durante o reinado de Nero, acrescentou-lhe comparações entre o imperador romano e Hitler e um prólogo moderno, com um grupo de militares americanos embarcando numa fortaleza voadora para despejar panfletos sobre a Itália, já então ocupada pelos aliados. De Mille era de lascar. Por pouco não botou um bigode a Stalin no faraó de Os Dez Mandamentos.
A recíproca é verdadeira. Os roteiristas liberais e de esquerda da Warner viviam mandando recados populistas e antifascistas em filmes aparentemente de aventuras como As Aventuras de Robin Hood, O Pirata Sangrento e O Gavião e a Flecha, este último escrito por Waldo Salt, posteriormente perseguido e desempregado pela sanha macarthista, não exatamente pelo roteiro de O Gavião e a Flecha. Se Stanley Kubrick não tivesse mexido no roteiro de Dalton Trumbo (outra vítima do macarthismo), Spartacus, de resto baseado num livro de um ex-comunista (Howard Fast), teria resultado num épico marxista sobre a luta de classes na Roma Antiga. Espártaco, diga-se, não morreu na cruz, como impôs Kubrick, mas durante uma batalha, de espada na mão.
Dia desses Jerry Bruckheimer definiu os cavaleiros da Távola Redonda como “forças especiais em ação em terras estrangeiras”, quem sabe na esperança de limpar a barra da ocupação do Iraque, pois, ao contrário de Oliver Stone e Michael Moore, apóia o governo Bush. Na mesma entrevista, o mentor de King Arthur comparou o jogador de futebol americano Pat Tilman, morto recentemente no Iraque, ao guerreiro Aquiles. “Precisamos de heróis assim”, acrescentou o produtor, cuja retórica marqueteira pode levar alguns a desconfiar que toda essa súbita fartura de filmes de saiote, sandálias, togas — e, acima de tudo, espadas — talvez tenha por objetivo disseminar a idéia de que guerras, invasões e atos de violência já faziam parte da história da humanidade antes mesmo de Jesus nascer. E por isso devem ser tolerados como coisas perfeitamente naturais.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo.
Sérgio, o que me parece delicioso, estimulante como exercício de divagação (aplicável à criação ficcional), é imaginar como teriam sido as conversas íntimas entre Caio Júlio César e Cleópatra (Cleopatra, sem acento, certo?), por exemplo. Como teria sido o "approach"? Qual teria sido a atitude de um em relação ao outro, quando havia tanto a jogar, a perder e a ganhar? Como cada um dos peões nesse jogo político encarava o "affair" e dele partia para o discurso público, para a atuação política?
Consta que o debilitado e decadente Napoleão Bonaparte, na iminência da derrota em Waterloo, teria dito isto aos seus ordenanças: "Reforços! Como esperam que eu lhes dê mais soldados? Esperam que eu possa... pari-los?".
O Cinema "épico" ou "histórico" procura trazer ao público (tantas vezes de modo assumidamente desonesto ou apenas irresponsável) exatamente a maneira como personagens históricas agiam, interagiam, como se comportavam, como falavam, e principalmente qual era a força que movia ou motivava as suas vidas. Em um sentido mais abrangente, essas personagens notáveis ajudavam a traçar os parâmetros para um modelo de comportamento aplicável aos seus sucessores, quem sabe à posteridade.
Um filme épico cujas falas e cuja atmosfera me pareciam mais elaboradas (The Warlord, direção de Franklin Schaffner), foi impiedosamente arruinado na edição, por imposição dos produtores, que pretendiam vender um filme "movimentado, um filme de ação". Toda vez que revejo esse filme verdadeiramente medieval, fico me perguntando como teria sido se tantas cenas e tantos diálogos não tivessem sido criminosamente eliminados.
A lembrança da cena em que a Cleó(o)patra de Elizabeth Taylor faz sua entrada triunfal em Roma deve merecer o meu comentário bem particular. Desde ainda criança, fiquei extasiado, abismado com esse prodígio kitsch de Hollywood. Nenhuma cena poderia ser mais bombástica, majestosa, espetacular. Como se fosse uma alegoria carnavalesca em versão peso-pesado, dezenas de escravos musculosos carregavam nos ombros o peso de uma liteira descomunal em forma de esfinge. Dessa esfinge que parecia de chumbo, pontificava em traje de ouro puro a soberana do Egito, e de certa forma, naquele exato momento, a soberana da própria Roma.
A música de Alex North para essa cena é inesquecível. Primeiro as trombetas anunciam em notas clamantes e triunfantes de fanfarra a chegada do séquito real do Egito. Flores são atiradas à passagem veloz dos carros de guerra, e tem iníci