ENSAIOS
Segunda-feira,
4/10/2004
Cartier-Bresson: o elogio do olhar
Pedro Maciel
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Qual a importância da fotografia na cultura
contemporânea? A fotografia é um meio artístico capaz de
revelar o inexprimível? Qual o mundo imagético é digno de
duração? Hoje vemos a proliferação de imagens sem sentido.
Imagens repetitivas que nascem com os mecanismos de
simulação. A realidade se tornou hiperrealidade.
Será que estas imagens conseguem mostrar o interior das
pessoas, das coisas, das paisagens? A fotografia
contemporânea se propõe a ser testemunha do inexprimível. Mas
como dizer o indizível? Talvez seja impossível para uma arte
de representação que nasceu da vontade de revelar as
aparências. A arte é um sistema de signos e sua função
consiste em buscar o significado das coisas; materializar o
mundo. A arte não comporta as aparências.
A fotografia (imagem) é um elogio do olhar. Narra a
arte da ilusão. Henri Cartier-Bresson, artesão da imagem, fundador de um estilo geométrico e humanista, ao capturar a imagem, repara o momento exato em que as pessoas ou coisas se mostram por inteiro, e nos faz ver algo que até então era
desconhecido, ou que havíamos entrevisto com os olhos
embaçados pela pura e simples realidade.
Bresson, último mito da fotografia, diz que "o aparelho
fotográfico é um caderno de croquis, instrumento da intuição
e espontaneidade, o mestre do instante que, em termos
visuais, questiona e decide ao mesmo tempo. Para revelar o
mundo, é preciso sentir-se implicado no que se enquadra
através do visor". Para ele somente duas coisas o interessam:
o instante e a eternidade. Talvez o maior segredo da obra de
Bresson seja a idéia de colocar no mesmo ponto de mira, a
cabeça, o olho e o coração. Para Bresson a emoção é fundadora
da razão.
O fotógrafo fez de sua câmera Leica uma extensão do seu olho.
Um olho que captou composições no breve intervalo do tempo
e "apanhou a vida no laço", expressando a emoção e não a
visualidade banal do sentimentalismo ou do sensacionalismo.
Bresson vivia "tocaiando seres humanos como um caçador tocaia
animais", escreveu John Berger. Nos seus instantâneos nota-se
as regras básicas do fotógrafo: concentração, disciplina de
espírito, sensibilidade e senso de geometria.
Bresson tem a noção exata do "momento decisivo" para capturar
a imagem. No prefácio de seu ensaio sobre o momento decisivo,
publicado em 1952, ele anota que "alguém entra repentinamente
no seu campo de visão. Você começa a seguir essa pessoa
através do visor da máquina. Você espera, espera, e
finalmente aperta o disparador - e sai com a sensação (embora
não saiba exatamente por quê) de que realmente pegou alguma
coisa".
O momento decisivo é uma fração de segundos em que os
personagens em movimento adquirem um equilíbrio geométrico.
Ele considera "a atenção e a antecipação do momento
decisivo", o instante único quando a imagem pode ser roubada
do tempo, como uma ocupação que o fotógrafo deve adquirir
naturalmente, como a arte do arco-e-flecha de um mestre zen,
que se transforma no alvo para poder atingi-lo.
Em Tête à Tête: Retratos de Henri Cartier-Bresson (Companhia das Letras), o fotógrafo apresenta uma coletânea de
retratos e desenhos a lápis que exploram a paisagem variada
do rosto humano. Ele não recorre a artifícios de composição,
mas busca nos retratados os traços expressivos. Revela o
silêncio dos retratados; amplia o humor desconcertante de
Saul Steinberg com o gatinho, a face existencial de
Giacometti e Beckett, a alegria contagiante de Che, a sombra
infinita de Erza Pound, a solidão de Sartre em Paris.
Bresson retrata a época em que viveu e, por isso, nos oferece
uma profunda investigação da nossa permanência no mundo. Suas
imagens, em estado de graça, dotadas de densidade e história,
revelam as coisas vividas. Para ele, fotografar é olhar de
verdade para o mundo. Sua arte é um tributo ao ser humano.
O fotógrafo aventureiro
Henri Cartier-Bresson, francês, nascido em 1908 (e morto neste ano) se autodenominava foto-jornalista. Mas poucas fotos de sua autoria tratavam de fatos jornalísticos, num sentido convencional. Fotografou mais entre a década de 30 e os anos 70. Estudou pintura com o cubista André Lhote. Em seguida estudou cinema nos EUA com Paul Strand e depois trabalhou como assistente de Jean Renoir, no filme "A Regra do Jogo".
Bresson começa a fotografar em 1932, com fascínio tanto pelo
Surrealismo - "sua ética mais que sua estética" - como pela
ebulição política na França que acabou na Frente Popular
contra o fascismo. "O aventureiro em mim sentiu-se obrigado a
registrar com um instrumento mais rápido que um pincel as
feridas do mundo".
O fotógrafo foi preso em 1940 pelo exército alemão em Paris.
Fugiu e continuou a fotografar a "resistência" para revistas
como Life. No final da Segunda Guerra, fundou com Robert
Capa, David Seymour-Chim e George Rodger a agência de
fotografias Magnum e passou duas décadas seguintes em missão,
testemunhando as revoluções que assolaram a China e a Índia. Suas fotos, tiradas com a lendária Leica 35mm, comentam os
eventos e personagens mais singulares deste século.
Em 1954 tornou-se o primeiro fotógrafo ocidental a
entrar na União Soviética após a distensão promovida por
Nikita Kruschev. Em 1966 desliga-se da agência Magnum e passa
a dedicar-se exclusivamente ao desenho e à pintura.
Bresson anotou em 1992 que "a fotografia é um impulso espontâneo de uma atenção visual perpétua, que captura o instante e sua eternidade. Já o desenho elabora por sua grafologia o que nossa consciência captura desse instante. A foto é uma ação imediata; o desenho uma contemplação".
Pedro Maciel
Belo Horizonte,
4/10/2004
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