As rádios de Belo Horizonte, naquele tempo, punham no ar convites fúnebres – e foi assim que, certa manhã, tendo apagado em meio à programação musical da madrugada, acordei com a notícia de que Humberto Werneck havia morrido.
Para quem se chama Humberto Werneck, não há pior maneira de começar o dia. Dizia mais o locutor da Inconfidência, em seu jargão funéreo, depois da batida lúgubre de um gongo: o “féretro” sairia às tantas da tarde da Rua Hermilo Alves, 350 (ainda era tempo dos velórios residenciais), para a “necrópole” do Bonfim.
Nem um minuto se passou e em nossa casa começaram a desabar dezenas de telefonemas, de amigos e parentes consternados com o meu falecimento. Não me ocorreu saborear aquelas manifestações póstumas de estima e consideração. Estava ressabiadíssimo. Nossa cozinheira, ao contrário, não continha a excitação, compenetrada no papel de quem pela primeira vez faria o almoço de um morto-vivo.
Pelo meio-dia, já mais à vontade, me veio a idéia macabra de comparecer a meu próprio velório. Só não fui porque mamãe me alertou para as imprevisíveis conseqüências de encontrar, à beira do caixão, alguém que ali chegasse para me velar.
Durante anos, de fato, volta e meia topei com conhecidos que me julgavam morto – um deles deixou cair uma garrafa de cerveja ao me ver entrar, vivinho, na Lanchonete Nacional. Mas não foi desse susto, felizmente, que meu amigo veio a morrer, pouco tempo mais tarde.
Quanto a mim, acabei tropeçando um dia com o que poderia ser o meu túmulo, enquanto procurava o de meus avós no Bonfim. Não há como descrever a sensação de ler, numa lápide negra, o nosso nome e as datas – de nascimento e morte.
Passado, fui à Administração e exumei a ficha: o inquilino do carneiro nº 143 da quadra 49 era um 2º sargento da Polícia Militar de Minas, levado desta para melhor num coma hepático. De quebra, fiquei sabendo que carneiro vem de carne, essa que a terra há de comer, se não a cremarem.
Fosse apenas o sargento – mas não: tempos depois, me morre outro Humberto Werneck, este no Rio de Janeiro. O choque, para mim, só não foi igual ao primeiro porque, nesse caso, havia um Oscar Miranda entre o nome e o sobrenome. Nunca mais, depois disso, me livrei da impressão, desconfortabilíssima, de que, já tendo morrido dois, a bola da vez, agora, sou eu...
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no novo jornal Publimetro, em maio de 2007, onde Humberto Werneck assina uma coluna às segundas-feiras.
Gostei, à princípio achei que você fosse lá no velório do seu homônimo. Eu não teria ido porque acho isso tudo muito deprimente, mas a curiosidade poderia ser maior que a ogeriza.
Outra pessoa com o mesmo nome morrendo, eu cederia ao medo de ser a próxima. Muito bom o texto. Adorei. Porque gosto de "causos" de mortis.
Outro dia, em uma festa de família, lembramos de "Kafunga" que, em um de seus programas "Papo de Bola" anunciou a morte de alguém que não tinha morrido. Segundo ele, na madrugada seguinte, recebeu um telefonema do pseudo-defundo que disse com voz fúnebre: "Kafunga, não morri não, estou vivo". Kafunga, ao relatar o caso, disse que nunca mais anunciaria a morte de ninguém. E deu gargalhada, daquele jeito gozador, que só ele tinha. Só mais um caso para acrescentar ao seu, que também é delicioso! Abraço. Adriana