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Segunda-feira, 3/6/2002
Tinhorão desvenda origem da música urbana
Luís Antônio Giron

A satanização da obra do sociólogo da música, pesquisador, colecionador e jornalista José Ramos Tinhorão vem da época em que ele fazia crítica no Jornal do Brasil e achincalhava a Bossa Nova. Desde os anos 60, Tinhorão vem sendo identificado com postura xenófoba e método marxista. Suas primeiras obras saíram em 1966 e, desde essa época, resenhistas como Caetano Veloso (acólito de João Gilberto) retrucavam vingativamente, tachando suas idéias de retrógradas. O crítico teve a capacidade de atacar as pessoas erradas na hora errada. Houvesse calado, como tantos o fazem por conveniência, hoje seria reconhecido por todos os músicos como o maior pesquisador da MPB deste século. O fato é um: mesmo tendo abandonado a crítica no início da década de 80 e mesmo tendo descoberto fatos inéditos no âmbito da história da cultura brasileira e portuguesa ao longo dos últimos 20 anos, todos odeiam, mas pouquíssimos lêem Tinhorão. É um traço da cultura tupinambá repudiar qualquer ameaça aos rituais de consenso.

Já venceu a data de redimensionar a contribuição de Tinhorão aos estudos da música popular brasileira. Os pesquisadores de verdade vão aos livros dele porque constituem uma fonte imensa de informação. Pode-se não concordar com as fundações materialistas de seu método, mas daí a estigmatizá-lo por isso seria uma burrice na qual os experts não ousariam incorrer... Não, não é bem assim. Por não possuir um título universitário (sua formação é jornalística), os acadêmicos não o citam, não o consideram, não o convidam para dar palestras e conferências. Nada mais justo; com os altos currículos atingidos por áulicos da academia que assumem a missão de clonar idéias alheias e captar recursos para viajar pelo mundo com saldo maior no cartão de crédito do que no cérebro, não é possível aceitar a sabedoria do pesquisador independente, que nunca teve ajuda de instituição alguma. A comparação seria injusta. "Os acadêmicos comem Tinhorão e arrotam Mário de Andrade", brinca.

O imenso intróito serve para introduzir o petardo lançado por Tinhorão no dia 29 de janeiro de 1997, em Lisboa, em direção às convicções do "protocolo dos sábios da MPB" – organismo atualmente gerido pela classe artística, produtores, editores, músicos togados de acadêmicos, barões e viscondes de sabugosa do som. No livro As Origens da Canção Urbana, Editorial Caminho, Lisboa, 203 págs., o estudioso faz uma pergunta que nenhum historiador da música conseguiu responder até hoje: "Quando surgiu o cantar típico das cidades, que hoje informa todo esse sistema sob o nome de música popular?".

Tinhorão desenvolve o conceito de canção popular como o da música vocal acompanhada por instrumento harmônico, individualista, desfolclorizada, que nasce como contraposição à música monódica da Antigüidade e polifônica da Idade Média, ambas carregadas de coletivismo. Tinhorão afirma que o "negócio novo" chamado de "música popular" se consolidou em Portugal no final do século XVIII, com a introdução na Corte da modinha e do lundu, pelo cantor e compositor brasileiro Domingos Caldas Barbosa. Assim, dois gêneros da música popular brasileira praticada na Bahia e no Rio inauguraram, segundo ele, a música de mercado no mundo, precedendo em meio século a cançoneta de cabaré parisiense e a cançoneta napolitana. Enquanto a música de cabaré saiu de moda para ceder lugar ao tango argentino, ao ragtime e ao one-step, só resistiram a cançoneta napolitana, a modinha e o lundu.

"A canção está morrendo", diz Tinhorão. "Hoje se assistem a rituais coletivos de rock e pop, não há mais a prática da melodia privada. No Brasil, os músicos continuam fazendo modinhas e lundus, apesar de não saberem. Modinhas o Chico Buarque compõe até hoje. E para citar um exemplo de lundu, é só ouvir 'Lá Vem o Negão', que um grupo aqui de São Paulo acha que é pagode. Mas quem sabe se dá conta de que a música é puro lundu. Tem a estrutura rítmica sincopada e repetitiva do lundu".

O resultado das descobertas do livro provém de uma vida inteira de pesquisas em fontes raras, achadas em alfarrabistas e arquivos inacessíveis. Entre as convicções que a obra pretende abalar estão a de que a moda surgiu como gênero em Portugal, dando origem à modinha no Brasil; a de que a modinha teve berço erudito; e a de que o sistema tonal é conseqüência natural da evolução formal da polifonia à ópera, no plano da erudição pura. Pois Tinhorão afirma que a modinha nasceu no Brasil, tinha sotaque original negro-brasileiro e conquistou Lisboa, onde conviviam e se misturavam desde o final do século XV, antes da descoberta do Brasil, brancos e negros. Indo às origens do canto acompanhado, o autor quer acreditar que a canção surgiu da entoação épica grega e do romance medieval. Com o surgimento de formas de lazer na Renascença (para ele o sinônimo artístico do Mercantilismo), a canção lírica se impôs junto às camadas populares, que trataram de criar novas formas de elocução verbo-musical.

Tais afirmações são extraordinárias e Tinhorão jura que não recebeu contestação delas até agora. "Não sou musicólogo. Caberá a eles dizerem se há ou não procedência no que afirmo. Eu descrevo as condições históricas e culturais. Gostaria que alguém me demonstrasse, por exemplo, que existe um gênero urbano definido e com continuidade antes da modinha e do lundu. Não encontrei nem um".

Os musicólogos podem argumentar que o canto dos troveiros e trovadores, desde o século XI, já eram canções formatadas para serem cantadas na Rensacença. "Mas eram melodias eruditas, escritas e entoadas segundo o padrão de prosódia do latim, revezando sílabas curtas e longas. As fontes folclóricas dos trovadores são estilizadas. Nâo caracterizam um gênero popular, e sim palaciano". E as canções de rua inglesas, coletadas por John Gay e John Christopher Pepusch na Beggar's Opera (1728)? Não se tornaram produto, surgiram do contexto erudito (de fato, as canções "populares" estão ali para satirizar a ópera italiana) e não voltaram às ruas, retruca o pesquisador. O fator determinante para ele está na impressão, divulgação, consumo e prática massiva da modinha e do lundu em Portugal e na Europa na época.

O melhor do volume é o modo abelhudo como o autor vai tecendo informações detalhadas, fontes remotas e aparentemente não associáveis. A leitura dos capítulos curtos e mesmo das notas de rodapé é saborosa. A argumentação possui o cristal da convicção. A descrição que faz de Lisboa por volta de 1550 é obra de artista-restaurador. Ele mostra a capital portuguesa povoada de gente de todas as raças e com uma oferta de serviços superespecializada que chegava a três centenas de atividades. Para uma população de 50 mil habitantes, havia cerca de doze escrivães "à minuta", que armavam mesinhas ao ar livre na Praça do Pelourinho Velho, oferecendo todo tipo de texto. Havia as mulheres especializadas em recuperar escravos fisicamente destruídos pelas viagens de navio. Isso sem falar nos construtores de instrumentos (especializados na viola de quatro cordas, que se folclorizaria no Brasil), nos vendedores de aguardente e naqueles que vendiam "refeições cozinhadas de antemão e dirigidas em especial a braçais e a forasteiros", como descreveu o historiador Antonio Borges Coelho. O cenário era apropriado para a corte amorosa, os folguedos, o cantar "garganteado" e "guaiado" (cheio de "ais") que a canção mais simples podia oferecer.

Devido à ausência de material sobre manifestações populares, Tinhorão encontra pistas sobre a prática musical em Portugal no século XVI no teatro da época. Descobriu, por exemplo, que Gil Vicente foi o primeiro autor a usar a expressão "cantar solo". O verso "Verás como canto solo" está no Auto da Fé, de 1510. "A possibilidade de qualquer pessoa poder recrear-se cantando, solitariamente, versos líricos-amorosos (...) fora anunciada em círculo mais restrito pela canção dos trovadores, desde pelo menos o século XIII", escreve, explicando que o solatz, palavra provençal para definir a consolação, o alívio, era já resultado de uma atitude social nova: a visita entre nobres e as reuniões sociais privadas. Surgiram então diversas palavras em português para tentar dar conta daquele estado inédito, o de cantar sozinho: "solás" ,"solau", "só" e "solo".

Entre as descobertas de impacto do livro está a de um gênero inteiro, nunca abordado pelos historiadores: o da "cantigas do deserto", ou cantigas de despedida, comuns em Portugal em todo o século XVIII. Muitas dessas cantigas sobreviveram em folhetos de cordel. O "dezerto", explica o autor, nada mais é do que o ambiente rural não cultivado, o exílio, o ermo. O traço dessas cantigas era a primeira pessoa e o caráter dançante: "Eu heide hir para o Dezerto,/ Já que meu mal he tão grave,/ Que primeiro morreri,/ Do que o teu rigor se acabe", diz uma delas.

Quando a modinha e o lundu apareceram, nos anos 80 do século XVIII, já era costume da população se divertir com a música dos negros vindos do Brasil, como o gandum e a fofa. Quem trouxe a modinha e o lundu foi o poeta tocador de viola de cordas de arame carioca Domingos Caldas Barbosa (1742-1800), o Lereno. Sua música impressionou o escritor inglês William Beckford (autor do romance Vathek), que descreveu-a como extremamente sensual. Lereno apareceu numa época em que a palavra "moda" estava na ponta da língua de Lisboa. Desde 1774 as comédias e entremeses se intitulavam Loucuras da Moda, Amor à Moda. Os cegos vendiam na rua, por volta de 1785, folhetos como Namorar por Moda Nova o Velho Impertinente, A Sociedade da Moda e As Convulsões, Desmaios e Desgostos de um Peralta da Moda, na Infausta Morte de Seu Cãozinho Cupido. A modinha brasileira seria citada pela primeira vez no entremês Os Casadinhos da Moda, de Leonardo José Pimenta e Antas, lançado em 1784. Diz um conquistador: "E cantar! Isso então belo, e rebelo./ Ensinaram-me certa moda nova,/ Cáspite que modinha! Tudo encova/ É a letra o Peralta presumido." Segundo Tinhorão, Caldas Barbosa impressionou os salões lisboetas por causa de sua originalidade e chulice, capaz de versos como: "Ai rum rum/ Vence fandangos e gigas/ A chulice do lundum". A moda que refugava a giga francesa e o fandango espanhol era então o canto requebrado, amoroso e americano do mulato brasileiro. Uma mania tão grande que enfureceu o poeta Bocage. Em diversos poemas, ele desancou Lereno e a "turba americana" que o acompanhava nos saraus.

A música popular urbana nasceu para render dinheiro no século XVIII e seu espírito se mantém intacto até hoje. É uma arte ligada ao lucro. Para ilustrar um procedimento pragmático típico dos fazedores de música popular, Tinhorão cita uma quadra dos folhetos do Almocreve de Petas, publicado de 1817 e 1819 em Portugal por José Daniel Rodrigues, e bastante comum na Colônia. A quadra é a seguinte: "O inverno é rigoroso/ Já dizia a minha avó/ Quem dorme junto tem frio/ Quanto mais quem dorme só". O trecho foi reaproveitado no lundu "Isto É Bom", do ator, compositor e cantor brasileiro Xisto Bahia (1870-1944). Curiosamente, esta foi a primeira música brasileira a ter sido gravada, em disco 10.001 da Odeon, lançado em 1902 pelo cantor Bahiano. O dado é inteiramente novo na historiografia da MPB. Para Tinhorão, Xisto Bahia agiu "como autêntico criador pioneiro da então nascente indústria cultural", ponto culminante de um processo iniciado com a modinha e o lundu. De certa forma, a música popular urbana gravada no Brasil nasce da apropriação indébita, da malandragem do plágio.

Pelas descobertas citadas e muitas outras, "As Origens da Canção Urbana" é um livro que deve ser acatado pelos especialistas e lido com gosto pelo grande público. Apesar de recusar o título, Tinhorão é o grande musicólogo popular brasileiro.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 3/6/2002

 

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