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Segunda-feira, 27/12/2004 A solidão povoada de Raduan Pedro Maciel "Cada um está só no coração da terra Transpassado por um raio de sol E de repente é noite" (Quasimodo) Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica, Um copo de cólera e Menina a caminho afastou-se definitivamente da literatura. "Desisti de escrever porque há um excesso de verdade no mundo" (Otto Rank). Talvez essa afirmação esclareça o motivo do afastamento de Raduan Nassar da literatura. Segundo Nassar, o que o levou a escrever e depois parar foi a paixão pela literatura, que ele não sabe como começa essa paixão e porque acaba. O silêncio é definitivo para o escritor, como se o silêncio o tivesse elegido. Provavelmente o escritor viva sob um tempo espelhado em signos fecundos e assombrados. Tasso diz que "em seus tormentos, o homem fica mudo; mas um deus me concedeu o dom de exprimir o que sofro". Nassar, filho de imigrantes libaneses, nascido em 1935, estudou direito, filosofia e exerceu o jornalismo como diretor do Jornal do Bairro (SP) nos anos 70. Desencantou-se com a imprensa de uma maneira geral. Hoje ele planta feijão e milho de pipoca numa fazenda do interior paulista. Raduan, um dos escritores mais notáveis surgidos no país depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, também se recusa a dar entrevistas, afinal, diz o escritor, "sou apenas um escritor passageiro". É curioso notar em Raduan o seu isolamento em relação ao mundo literário. Ao recusar-se a falar com a imprensa, como Dalton Trevisan ou Rubem Fonseca, Nassar mostra-se como alguém que cultiva a mais espetacular vaidade, digna daqueles que se expõem exageradamente. A relutância do escritor em não conceder entrevista inspirou-me a seguinte frase: "Penso, logo desisto". Ele riu à vontade do aforismo, riu como um monge do mosteiro. Aliás, Raduan parece um bispo de alguma igreja do interior do Brasil, os cabelos grisalhos e desarrumados, os gestos contidos, breves, a estatura baixa, fala mansa, sempre a olhar nos olhos do interlocutor, atento para ditar velhos ensinamentos bíblicos: "Nunca diga nunca". Ao encontrá-lo, me lembrei do romance Lavoura arcaica, que resgata a tradição cristã e a proibição do incesto, o patriarcado e a obrigação do trabalho. Os temas característicos do romance são os da tradição mediterrânea, como a terra, a plantação, a colheita, a mesa e a família. É uma parábola do filho pródigo, sem final feliz. Narrativa trágica, bíblica e helênica. Raduan é um ser trágico, desiludido, desesperançado, atormentado como o narrador-personagem da novela Um copo de cólera que vive um amor irreconciliável, perturbador e erótico. Uma paixão devastadora. Os amantes tentam a todo instante abater um ao outro. Vivem um amor tumultuado, fazendo do dia-a-dia uma guerra existencial, filosófica e política. A novela foi construída a partir da sensualidade e da explosão verbal dos personagens; os dois estão diante do abismo das desrazões, motivo dos amores e paixões sem rumos; amores desenfreados, embriagados de um tempo desconhecido, onde eles respiram a energia violenta de uma miserável aventura. É o ciclo do inferno. Salve-se quem puder. Talvez, ao se isolar do mundo, Raduan tenha se salvado das invejas do círculo literário, mas ao silenciar, o escritor, provavelmente, percebeu que havia se enganado e ai preferiu a ele mesmo. Preferiu desprezar o que sabe, e nunca o que sonha. Silenciou-se para criar vazios, lacunas, e, para instaurar a meditação que recorta o espírito homogêneo da memória. O ideal é esquecer pra lembrar? "Se recordar fosse esquecer (...)". O silêncio de Raduan é como a encarnação do ser em busca de seu sentido. Para o escritor, os sentimentos dos outros não deveriam nos ser emprestados. Os nossos deveriam nos bastar. A fala de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, decifra a filosofia de vida de Raduan: "A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar". Talvez a verdadeira vida seja aquela que se encontra ausente do mundo. Trechos (...) já foi o tempo em que via a convivência como viável, só exigindo deste bem comum, piedosamente, o meu quinhão, já foi o tempo em que consentia num contrato, deixando muitas coisas de fora sem ceder contudo no que me era vital, já foi o tempo em que reconhecia a existência escandalosa de imaginados valores, coluna vertebral de toda 'ordem'; mas não tive sequer o sopro necessário, e, negado o respiro, me foi imposto o sufoco; é esta consciência que me libera, é ela hoje que me empurra, são outras agora minhas preocupações, é hoje outro o meu universo de problemas; num mundo estapafúrdio – definitivamente fora de foco – cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso! me apavora ainda a existência, mas não tenho medo de ficar sozinho, foi conscientemente que escolhi o exílio, me bastando hoje o cinismo dos grandes indiferentes (...)" (Um copo de cólera, págs. 54-55) "Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobri meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duentes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo)". (Lavoura arcaica, págs. 13-14) Pedro Maciel |
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