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Segunda-feira, 30/5/2005 A mão pesada do gigante Caio Blinder Os companheiros da Fiesp não gostaram da decisão do governo Lula de reconhecer a China como economia de mercado e, assim, incrementar a exportação de mais insumos básicos para aquele país. Industriais paulistas, uni-vos para se indignar com outro escândalo que também dá em samba do marxista doido. A China ainda não é pura economia de mercado e, ainda por cima (ou por baixo), continua sendo pura ditadura. Antes de começar uma longa marchinha de desilusão, vamos nos deslumbrar um pouco com este país que gera tanta cobiça, inveja e medo. Os resultados estão aí. Desde 1979, quando o mandarim do pragmatismo Den Xiaoping soltou as amarras econômicas (num modelo que deixaria tanto Adam Smith como Karl Marx atarantados), a China está conquistando o mundo não com os seus exércitos, mas com as suas fábricas. É uma expansão anual de 9%. A economia está dobrando a cada dez anos, o que se traduz na emergência de uma grande nação comercial. Somente o superávit comercial chinês com os Estados Unidos agora equivale a 10% de sua produção econômica total. O comércio bilateral movimenta US$ 1 trilhão por ano. Em 2004, a extensão plena deste poder chinês foi finalmente sentida globalmente, com impacto profundo na América Latina, embora ainda não na Europa. É um épico dickensiano, com o melhor e o pior dos tempos. São centenas de milhões de trabalhadores baratos e US$ 1 bilhão por semana de investimento direto estrangeiro. São engrenagens sociais e econômicas que afetam as estruturas mundiais de petróleo, minerais, moedas e ações. Os lendários “tigres asiáticos” são mansos diante da fera chinesa. O país hoje é o segundo consumidor mundial de petróleo, depois dos Estados Unidos. A gritaria americana pela construção de uma sólida muralha protecionista tem sido abafada pelo poderoso lobby pró-chinês em Washington, que nos faz lembrar as complexidades da interdependência, na medida em que metade das exportações chinesas são produzidas em filiais de empresas estrangeiras no país. Simbologias históricas tiveram lugar em 2004. Uma tal de Lenovo comprou a divisão de PCs (perdão pelo trocadilho) da icônica IBM, por US$ 1,7 bilhão, na maior aquisição estrangeira por uma empresa tecnológica chinesa. Há muito mais razão para deslumbramento, ou mesmo assombro. A China, que já era uma potência nuclear tradicional, colocou um homem no espaço no ano passado. Mas vamos alterar a trajetória. Do deslumbramento vamos pousar na terra da credulidade. Este poderio econômico chinês ainda não se traduz em espetacular poderio estratégico. Obviamente há ensaios para um balé estratégico geoeconômico mais ambicioso. Por exemplo: durante anos, o investimento chinês fluiu principalmente para empresas de comércio exterior de Hong Kong, para atrair empresas estrangeiras para o país e aumentar as exportações chinesas. Mas no ano passado, pela primeira vez, a América do Sul superou Hong Kong e o resto da Ásia como principal destino do investimento estrangeiro chinês, tendo abocanhado US$ 889 milhões dos US$ 2 bilhões que a China investiu no exterior em 2004. Voltemos ao caso da Lenovo. Há uma leitura apressada sobre a capacidade de uma empresa chinesa para abocanhar uma marca americana tão famosa. Isso gera a tentação de uma comparação com o avanço japonês nos anos 80. Quando a Mitsubishi adquiriu o Rockefeller Center, em Nova York, a atmosfera era de previsões fin-de-siècle sobre o declínio americano. O resultado foi xenofobia, e a Mitsubishi se desfez, com prejuízo, do elefante imobiliário em 1996. A aquisição da divisão da IBM não gerou a mesma inquietação. Aqui não se trata de um tour de force da “economia de mercado” chinesa. A Lenovo comprou o negócio e transferiu o seu quartel-general para Nova York. A matriz foi para a filial. Não existe a pretensão de conquistar com voracidade o mercado americano, mas se defender do avanço de gigantes como a Dell e Hewlett-Packard. Em termos geopolíticos, há alguns passos ambiciosos, mas não vamos exagerar o alcance. Evidentemente que a China merece o jargão de “competidor estratégico” em potencial dos Estados Unidos (afinal, quem mais faz jus a tanto?). O país está modernizando suas Forças Armadas, ampliando os tentáculos diplomáticos e se mostra disposto a gastar uma baba de reminbi para sediar as Olimpíadas de 2008. Com os americanos distraídos e obcecados com a guerra contra o terror, os chineses preenchem vácuos estratégicos na América Latina e África e, obviamente, na sua vizinhança. O presidente Hu Jintao ganha tanta quilometragem aérea como seu companheiro Lula em andanças destinadas a fechar negócios de gás, petróleo, minerais e comida para as necessidades chinesas. Mas a resposta chinesa ao desastre do tsunami asiático mostrou as limitações desta superpotência aspirante. A oferta inicial de ajuda foi patética, apenas US$ 2,6 milhões. Numa reação de relações públicas, a cifra saltou para US$ 63 milhões. Os números foram rapidamente ofuscados pelas promessas de países como Estados Unidos, Austrália, Japão e Alemanha. Mais sintomático dos limites chineses foi o espetáculo de navios americanos convergindo para a região e helicópteros distribuindo mantimentos na Indonésia. Esta prova do poderio logístico dos Estados Unidos aconteceu após um ano de esforços chineses para ampliar o seu papel de liderança na região, com base na sua ascensão econômica. Mas não existe uma tradução automática de pujança econômica para influência diplomática. E não custa (na verdade, custa), lembrar que a China ainda é recipiente de ajuda internacional apesar da Lenovo e do deslumbramento do governo Lula. É verdade que Pequim está em um processo de transição de recipiente de ajuda alimentar para doador a países como Vietnã e Mianmar. A China continua sendo um sério problema de injustiças sociais, capaz de revoltar um militante de carteirinha do velho partidão. Ironicamente, ela foi de Mao para gritantes disparidades. Num país nominalmente comunista, há bilionários assumidos e cafonas que erguem castelos ao estilo francês e que parecem dizer ao povão, ao melhor estilo Maria Antonieta, que se ele não tem arroz que coma Big Mac. Isto dito, é melhor esta barbaridade inerente a um processo de transição capitalista do que um programa fome zero maoísta. A sem-vergonhice dos novos ricos chineses é vista como um rito de passagem semelhante ao dos dias dos “barões ladrões” americanos do século 19, como Rockefeller e Morgan. E falta igualmente uma sofisticação na política social. Pobre é caso de polícia. O PC (não o da IBM, mas o dos ex-comunistas chineses) fez uma pesquisa entre seus burocratas em novembro passado. A conclusão foi a de que a crescente disparidade de renda é a principal preocupação. Não se trata tanto de solidariedade de classe, mas do temor de que possa insuflar instabilidade social. A China merece um movimento sem-terra. No máximo o governo está tentando refrear o confisco de terras pelos “barões ladrões”, mas nada de dar ao campesinato o controle das terras que eles cultivam. Em outras palavras, os camponeses que justificaram uma sangrenta revolução comunista não têm agora o direito de participar da economia de mercado abençoada pelo Palácio do Planalto. Parece que o destino deles é mesmo um comunismo chulé. Como recordou o jornal The New York Times, em editorial no começo do ano, a China candidata a superpotência ainda tem uma liderança que trata protestos sociais no campo e nas cidades basicamente como uma ameaça à sua autoridade e não como um grito de desespero de quem está perdendo ou sendo prejudicado pelo bonde da globalização. É irônico que o país beneficiado por uma das maiores expansões econômicas da história esteja tendo as maiores dificuldades para manter a ordem social desde o movimento democrático que resultou no massacre da praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. As próprias estatísticas da polícia mostram que o número de protestos públicos alcançou 60 mil em 2003, oito vezes mais do que uma década atrás. A resposta é a decretação de lei marcial e envio de tropas paramilitares quando a polícia perde o controle. Protestos são tão numerosos porque o país carece de um movimento trabalhista ao estilo do Solidariedade polonês, ou daquele que o companheiro Lula consolidou nos anos 70 no ABC paulista. Em uma reportagem sobre investimentos chineses na América do Sul, o Wall Street Journal observou que executivos enviados de Pequim para países como Peru e Equador não sabem lidar com sindicatos fortes ou reivindicações dos operários. Nada como a disciplina do modelo de economia de mercado que eles têm em casa. Com a ascensão, há dois anos, de Hu Jintao ao poder chinês – consolidada em setembro passado quando Jiang Zemin saiu de vez de cena e deixou o comando militar – houve uma certa expectativa de mais sensibilidade social e de modernização política. Afinal foi a passagem de cetro mais pacífica e tranqüila na vida do PC chinês. A ascensão de Hu Jiantao coincidiu com um esboço de transparência e de lero-lero sobre uma governança mais aberta. Durante a epidemia de Sars no começo de 2003, a imprensa estatal até pôde noticiar com honestidade os problemas de saúde do país. Mas Hu Jintao é uma desilusão. Há consenso entre a linha dura e os reformistas sobre como tocar a fábrica. Os principais líderes basicamente concordam que a economia deve aprofundar sua integração global, abrir-se ao setor privado e evitar confrontos escancarados com os Estados Unidos. Mas 15 anos após o banho de sangue na praça do Paz Celestial, o PC chinês está resoluto como sempre para manter o monopólio de poder e abafar os dissidentes. Na busca de uma melhor governança, há mais empenho de combater a corrupção, profissionalizar os quadros dirigentes e tentar suavizar os problemas sociais, justamente para dar uma sobrevida ao partidão. Isto não deve ser confundido com modelitos que imperaram nas bandas sul-americana nos anos 80 de transição democrática. O próprio Hu Jintao joga uma ducha de água fria quando qualifica a democracia à moda ocidental como um “beco sem saída”. Lula evidentemente não é o único dirigente democraticamente eleito que responde com excesso de pragmatismo. Os europeus, a começar por franceses e alemães, tão ocupados em dar lição de moral a George W. Bush, estão preparados para suspender nos próximos meses o embargo de armas decretado após o massacre dos estudantes em 1989. Profissionalização significa restaurar ordem e disciplina dentro do partido. Como bom ditador, Hu Jintao deixou claro que o governo vai reprimir jornalistas, acadêmicos e manifestantes que cruzarem uma linha não demarcada. Já foi uma mensagem perturbadora quando ele, no ano passado, recorreu a táticas pesadas para abafar o movimento pró-democracia em Hong Kong. E nem pensar em eleições livres para a escolha do seu próximo líder. Para os empresários e executivos da China moderna, o recado também é truculento: ganhem dinheiro e calem a boca. Quando foi entrevistado pela revista Newsweek, o CEO da Lenovo, Yang Yuanqing, não teve problemas para informar que o negócio com a IBM fora também firmado por líderes do governo, como o primeiro-ministro Wen Jiabao. Mas quando pressionado para falar sobre sua filiação ao Partido Comunista (ele assinou a carteirinha no final dos anos 90) e como isto influi nos negócios, ficou arredio e respondeu: “Não vamos falar de política, ok?” Falar sobre a política chinesa é delicado para George W. Bush. Há expectativas sobre qual será a atitude do presidente americano no seu segundo mandato agora que está claro que as esperanças democráticas na China desembocaram num beco sem saída. Bush chegou ao poder pela primeira vez há quatro anos prometendo uma dureza idealista em relação à sem-vergonhice política dos chineses. Ele nunca teve o cinismo dos europeus, mas se acomodou. As críticas americanas à China se transferiram de direitos humanos para o valor da moeda ou a agressividade de suas práticas comerciais. Para os adeptos da realpolitik, era uma boa atitude e uma prova de amadurecimento no relacionamento entre a superpotência reinante e a emergente. Foi mais do que isso. O critério de amadurecimento geopolítico para Bush, depois dos atentados do 11 de Setembro, passou a ser postura na guerra contra o terror. Com esmero, Pequim se adaptou às circunstâncias e deu este apoio, além de se engajar nas infindáveis negociações multilaterais sobre o programa nuclear da Coréia do Norte, inspiradas por Washington. Mas ainda há uma desafinação gritante entre os Estados Unidos e a China em várias questões internacionais. A mais explosiva delas é Taiwan. E aqui Hu Jintao decepcionou os mais otimistas. Ele não se revela menos hostil do que Jiang Zemin. Pelo contrário, os sinais são de mais dureza, com Hu pronto para impor uma nova lei de secessão, que permitiria punição de ações que contribuam para a independência de Taiwan. Para os mais pessimistas, a lei pode ser usada para justificar ações militares. A mão pesada de Hu não deveria surpreender. Quando era governador do Tibete, impôs, em 1989, a lei marcial para abafar apoio ao Dalai Lama. Os neoconservadores querem muito mais vigor de Bush no segundo mandato na hora de tratar com os chineses, vistos obviamente como a grande ameaça estratégica ao domínio unipolar americano. Num tom que parece ecoar o de industriais da Fiesp se referindo às negociações do Brasil com Pequim, o ex-diplomata Harvey Feldman, hoje na Heritage Foundation, adverte que o governo Bush está pagando um preço alto e ganhando pouco por ter sido muito conciliatório com os chineses. Não há, porém, indicações de que haverá uma revisão em larga escala da política chinesa com Condoleezza Rice à frente do Departamento de Estado. A linha de pensamento é similar ao raciocínio que imperava no governo Clinton, quando tampouco se confrontou a China politicamente apesar das promessas iniciais. A visão é de que as melhores perspectivas para direitos humanos e avanços democráticos estão em contínuo desenvolvimento econômico e integração em estruturas globalizantes. O problema é o círculo vicioso. O Partido Comunista é um anacronismo e sua sobrevivência depende desta contínua expansão econômica, assim como do jugo autoritário. Não há sinais de frustração popular se forjando no tipo de movimento que inspirou os protestos de 15 anos atrás. A longo prazo, contudo, um país mais próspero, mais educado e mais cosmopolita não irá se contentar com este produto barato (e vagabundo) made in China. Companheiros da Fiesp, a China chega lá. Um dia será uma genuína economia de mercado e também uma democracia. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Primeira Leitura, dirigida por Reinaldo Azevedo. Caio Blinder |
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