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Segunda-feira, 13/6/2005
Perseguindo o Código Da Vinci
Sérgio Augusto

Quando as atenções do mundo inteiro estavam voltadas para o Vaticano, as minhas não podiam estar voltadas para Meca ou Jerusalem. Mas, enquanto os católicos mais fervorosos choravam e rezavam pelo papa, implorando a Deus para que ele não tivesse um final de vida semelhante ao de Terri Schiavo, eu me preocupava com duas outras agonias pontificais: a sucessão de João Paulo 2º e a cruzada da Santa Sé contra O Código da Vinci.

As duas estão interligadas, pois o cardeal Tarcisio Bertone, a autoridade esclesiástica incumbida de desacreditar o best-seller de Dan Brown, tinha sido apontado como um dos prováveis sucessores de João Paulo 2º. Se o arcebispo de Gênova tinha prestígio bastante para ser papabile, sua recente escolha como sumo templário na cruzada contra Dan Brown é um sinal de que a Igreja considera O Código Da Vinci uma espécie de Saladino com lombada; ou seja, uma questão da maior gravidade.

Tenho pena do cardeal Bertone. Suspeito, mesmo, que qualquer ação dele contra o romance só consiga ampliar-lhe as vendas, inclusive ou sobretudo entre os católicos que ainda não o compraram.

Torquemada já teria dado um jeito nesse imbróglio, mas sem a Inquisição o Vaticano perdeu seu poder para queimar livros. Restou-lhe apenas a ascendência moral sobre o seu rebanho. A cada dia, menor: O Código Da Vinci já vendeu mais de 25 milhões de exemplares, foi traduzido para 44 línguas e ainda não deu mostras de que esteja em fim de carreira. Daqui a menos de um ano, chegará aos cinemas a versão dirigida por Ron Howard e estrelada por Tom Hanks, empurrando-o de volta à lista dos best-sellers, se é que dela irá sair nos próximos meses. O livro, esclareço aos que não o leram, explora a hipótese de Jesus ter sido um simples mortal, que com Maria Madalena se casou e teve filhos, legando descendentes até para a casta dos merovíngios, na França.

Não dá para entender por que o Vaticano demorou tanto tempo —dois anos— para iniciar esta cruzada. Ou melhor, dá, sim. A Santa Sé era rápida quando reprimia, mas sempre tartarugou para rever velhos conceitos e fazer mea-culpa. Levou mais de 350 anos para absolver Galileu e quatro séculos para desculpar-se pela Inquisição. Só no pontificado de João Paulo 2º reconheceu os crimes das Cruzadas e arrependeu-se do silêncio dos católicos no Holocausto. Só em abril passado, os bispos norte-americanos anunciaram que se posicionariam com mais vigor contra a pena de morte. Nesse ritmo, só daqui a muitas décadas ou séculos a Igreja irá desculpar-se dos abusos sexuais cometidos por seus pastores e reconsiderar sua dogmática posição contra o aborto, a eutanásia e o fim do celibato sacerdotal.

O thriller religioso de Dan Brown, centrado nas peripécias de um professor de simbologia de Harvard, chamado Robert Langdon, uma espécie de Harry Potter bíblico a quem uma criptóloga da polícia francesa, Sophie Neveu, ajuda a desvendar o verdadeiro segredo do Santo Graal (não era um cálice, mas a prova das relações conjugais entre Jesus e Madalena), já motivou reações as mais iradas de autoridades evangélicas, notadamente nos EUA. Irritados com as mesmas heresias que impeliram o reverendo Erwin W. Lutzer a publicar A Fraude do Código Da Vinci, o pastor James L. Garlow e o professor Peter Jones escreveram a quatro mãos Desmascarando o Código Da Vinci. Para eles, o romance, além de fantasioso em excesso, anticlerical e abusivamente feminista, celebraria algumas formas pagãs de veneração.

O busílis é a afirmação de que a Igreja teria suprimido 80 evangelhos que negavam a divindade de Jesus, elevavam Madalena à categoria de líder entre os apóstolos e reverenciavam a sabedoria e a sexualidade femininas. Tais especulações circulam por aí há pelo menos 50 anos, desde a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto. Supostos evangelhos, atribuídos a Maria, Pedro, Felipe, Tomás e Q, teriam sido barrados no Novo Testamento, 17 séculos atrás, por ordem do imperador Constantino, politicamente interessado em manter indiscutível a divindade de Jesus e intocável o patriarcalismo cristão.

O reconhecimento de que Madalena não era prostituta, mas o mais influente dos apóstolos, constrangiria a Igreja a rever a campanha de expiação e difamação contra ela movida nos últimos 20 séculos, e admitir a ordenação de mulheres, proibida pela alegada inexistência de uma figura do sexo feminino entre os apóstolos de Cristo. Madalena, dizem, estaria na Santa Ceia, de Leonardo, disfarçada de São João, e foi retratada por alguns pintores renascentistas recebendo de Jesus a missão de levar adiante os seus ensinamentos. Já está fazendo oito anos que alguns teólogos levantaram a tese de que Jesus entregou a liderança da Igreja a Madalena, tão logo ressuscitou. Na época, o Vaticano não saiu dos seus cuidados. No começo da década passada, também com base nos Manuscritos do Mar Morto, a teóloga australiana Barbara Thiering escreveu o biográfico Jesus the Man, no qual Jesus se casava duas vezes, tinha três filhos e vivia até os 65 anos. Como não virou best-seller, a Santa Sé ficou na dela.

O casamento de Jesus com Madalena, a paradigmática rameira, foi considerado uma dupla heresia. Infundado ou não, o fato é que a Igreja tem uma tradição misógina e um farto acervo de vergonhas e tabus mantidos em segredo com o mesmo zelo facultado ao o Santo Graal do Código Da Vinci. Nunca se esclareceu direito se, entre os papas Leão 4º e Benedito 3º, ocupou o trono de Pedro uma papisa de nome Joana, não bastasse, engravidada durante o seu pontificado por um companheiro alemão. E o que dizer do lúbrico papa João 12, morto, no século 10, por um marido que o pegara em flagrante com sua mulher? E do não menos indócil Alexandre 6º, que era papa quando o Brasil foi descoberto e dez filhos pôs neste mundo?

Quem sabe, um dia, o Vaticano desmentirá, cabalmente, todas essas histórias ou as admitirá, altaneiro, como verdadeiras e há séculos irrelevantes. Mas convém não demorar muito, já que pelas profecias de São Malaquias a Igreja está com os dias contados. Morto há 857 anos, São Malaquias predisse que só restaria uma divisa de papa após segundo João Paulo (Gloriae Olivae, A Glória da Oliveira), e que no papado de um novo Pedro, a Igreja, perseguida por ímpios indefinidos, seria destruída, sobrevindo o Juízo Final. Que, lá do Céu, Karol Woytila nos proteja.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no caderno "Aliás", do jornal O Estado de S. Paulo, a 3 de abril de 2005.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 13/6/2005

 

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