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Segunda-feira, 5/9/2005
Os mandarins musicais
Luís Antônio Giron

A dimensão de alguns nomes famosos se extravia com o atropelar do espírito do tempo. Se Mário de Andrade virou uma tarja glamourosa do modernismo brasileiro, Bartók é um rato meio vilão no desenho animado Anastásia. O livro Os Mandarins Milagrosos - Arte e Etnografia em Mário de Andrade e Béla Bartók, da antropóloga mineira Elizabeth Travassos, recupera para o leitor a força da identidade desses dois artistas e musicólogos que tiveram algo em comum, apesar de nunca terem se conhecido.

Paralelamente a suas atividades criativas, o escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945) e o compositor húngaro Béla Bartók (1881-1945) atuaram como folcloristas musicais. Colecionaram canções populares num momento em que a etnomusicologia ainda se formava. Cada um desbravou um campo sonoro e poético do passado remoto com o objetivo de reinventar a própria cultura. A comparação parece excêntrica, mas rendeu um ensaio rigoroso sobre o modo de ação dos intelectuais modernistas preocupados na identidade daquilo que se convencionou chamar de "povo".

No balanço das duas aventuras intelectuais, Mário parece sair perdendo (embora Elizabeth não afirme isso) em densidade, mas ganhando em democracia. Suas pesquisas foram esparsas e bem menos ortodoxas do que as do músico húngaro. Ainda assim, entendeu a cultura musical de seu país como um domínio necessariamente multicultural, enquanto Bartók fincou pé no purismo tribal. A contribuição lateral de Elizabeth é dimensionar Mário de Andrade em escala humana e evitar o culto irracional à figura do polígrafo fecundo.

O livro é uma adaptação da tese em antropologia social defendida em 1996 na Universidade Federal do Rio de Janeiro e é uma pena que a versão não compreenda a bibliografia, que parece ter sido extensa, buscada em diversos pontos do planeta. Quem quiser ter acesso a ela, deverá buscar na tese original.

Professora de folclore e etnomusicologia da Uni-Rio, Elizabeth, de 42 anos, se especializou numa área aparentada àquela que seduziu a dupla de artistas: a pesquisa dos cantos xamanísticos dos índios Caiabi. Realizou pesquisa de campo entre 1981 e 1982 nesta tribo. Logo depois, coordenou a seção de Folclore e Cultura Popular da Funarte, onde trabalhou até 1996. Seu ensaio representa um avanço de análise sobre um tema muito estudado na cultura brasileira mais sob a forma de veneração bio-bibliográfica do que por comparação com fenômenos paralelos: a recolha de modinhas e música folclórica realizada por Mário de Andrade nos anos 20 no Norte e Nordeste do Brasil. Apesar de distante territorial e culturalmente, Bartók partiu de impulsos semelhantes e coligiu a música camponesa magiar primitiva num volume de 2.500 títulos desde o começo do século, em viagens que incluíram territórios vizinhos ao da Hungria, como Romênia e Bulgária. O livro é também a reconstituição da estética de ambos sem a presença de um dos males que assola o Brasil atualmente: a superpopulação de etnomusicólogos chatos, corporativistas e analfabetos em solfejo. Além do que ele ensina mais sobre o ideário de Bartók do que muita enciclopédia musical disponível no mercado.

A autora se vale do título de uma peça sinfônica do compositor húngaro, O Mandarim Miraculoso (estreada em Colônia em 1926) para intitular o livro. Mas a motivação é mais profunda. Para ela, tanto Mário como Bartók encarnou a função do mandarim, "capaz de operar maravilhas, olhar para a civilização como um estranho vindo de outro mundo, seduzi-la e ser por ela seduzido". Ambos se afetaram pelo "paradoxo do primitivismo", como diz a etnomusicóloga. O paradoxo é a busca do novo no velho, nas palavras de Mário. Em termos antropológicos, Elizabeth explica assim: "As qualidades presentes em certos grupos humanos e suas expressões culturais são aquelas cuja ausência é percebida em outros, cujo modo de vida foi marcado ela civilização, ao mesmo tempo, os atributos positivos dos primeiros podem ter validade para os últimos e devem ser recuperados". O primitivismo, acentua, é um dos pendores artísticos do Modernismo desde sua fase heróica e vanguardista. Mário e Bartók o assumem de maneira responsável, professando a crença do espírito do povo. Os dois queriam marcar a modernização das artes com base na cultura popular, embora o brasileiro professasse a variedade de uma nação em formação e o húngaro visse nos camponeses magiares o traço distintivo que definiria seu país.

Em um e outro acontece a contestação da supremacia cultural dos centros de civilização. Elizabeth lembra que o Modernismo empreendeu uma batalha contra as instituições acadêmicas. Não é surpreendente que um e outro tenham realizado pesquisas de campo longe do domínio universitário. Os trabalhos de coleta constituíram o alicerce para seus próprios projetos artísticos. Agiram a um só tempo como artistas conscientes e antropólogos intuitivos. "A parcela etnográfica dos seus trabalhos torna os dois especialmente interessantes para uma investigação das relações entre ideologia da arte e estudos de música popular", escreve.

Ela confessa ter mais intimidade com Mário, "modelo de probidade intelectual e do comprometimento com a sorte da cultura nacional" do que com Bartók, misantropo e crítico radical da "semicultura" e do domínio germânico sobre a vida húngara e da presença dos ciganos. De certa forma, Elizabeth compensa o desequilíbrio ao produzir extensos capítulos sobre os problemas políticos que afetaram a Hungria no princípio do Século passado, como o desmembramento territorial, a separação do império habsburgo e a presença dos ciganos. Já a conjuntura brasileira está implícita ao longo da argumentação. Se um dia vir a ser publicado na Hungria, o livro necessitará de uma revisão com capítulos extras sobre a conjuntura brasileira da época.

O livro se organiza em três partes e seis capítulos. A primeira parte trata do modernismo como oposição ao romantismo. São descritas as refregas teóricas de Mário e Bartók contra o virtuosismo, o sentimentalismo e a arte popularesca. A segunda parte enfoca a luta da dupla contra estas manifestações; Mário em relação à música de consumo que descaracterizava os ritmos locais, Bartók às orquestras ciganas.

Mário de Andrade tendia a considerar a modinha, por exemplo, mera música de salão, importante de ser conhecida, mas sem importância estética. Já Bartók atacava a música feita pelos ciganos porque não passava de um leva-e-traz que obliterava o estilo puramente magiar para divertimento da aristocracia rural da Hungria. Negava, assim, a idéia muito comum no final do Romantismo, divulgada pelo compositor húngaro Franz Liszt (1811-1886), segundo a qual a música das orquestras ciganas representaria como nenhuma outra a cultura popular húngara. O compositor considerava essas orquestras meras manifestações de bastardia artística de um povo nômade. A última parte do volume aborda os elementos de análise musical a partir do primitivismo e da mobilidade das tradições. Mário e Bartók queriam levar os cantos arcaicos dos sertões diretamente à sala de concerto, desprezando a música de massa.

A junção utópica entre o cantador popular e o artista erudito caracteriza os safáris sonoros de Mário e Bartók. Os dois ansiavam pela apreensão culta dessa música, ainda que a considerassem tematicamente inferior à criação erudita. A união seria fundada na crença em uma música natural, Urmusik, capaz de fornecer identidade a uma nação. "Eles eram indício de uma mudança cultural, no sentido mais amplo do termo, que alterava a visão global das artes e equivalia a uma nova fé religiosa", afirma Elizabeth. "Os dois autores explicitaram que a compreensão dos valores da canção popular era como uma crença religiosa: a força capaz de mudar o pouso das montanhas, segundo Mário, e a nova Weltanschaung de que falava Bartók".

Enquanto os etnólogos e antropólogos perseguiam na mesma época o pensamento selvagem, a dupla de exploradores ouvia alta elaboração artística no campesinato. Talvez fosse uma maneira de encontrar a si próprios no espelho da suposta natureza essencial do homem arcaico. Os mandarins também são figuras que detêm um certo saber que não é partilhado com o povo. Não surpreende que Mário e Bartók tenham adotado o socialismo e, sobretudo o primeiro, visto na arte um instrumento para o aperfeiçoamento da sociedade.

De acordo com Elizabeth, no final das contas, Mário adotou uma visão antropológica mais universal do que Bartók, apesar de nunca ter saído do país (exceto uma rápida incursão ao Peru). O viajado e mais preparado musicalmente Bartók "defendia os modos de vida enraizados e as comunidades tradicionais" e adotado os ciganos como bêtes noires. Pela leitura do ensaio, fica evidente que os dois produziram conhecimento científico a partir de critérios artísticos e intuitivos e da falta de vínculo universitário. Apesar de enormes diferenças ideológicas, os dois interpretaram o papel do aventureiro intelectual que, quanto mais se distancia do centro produtor da norma culta, mais aprofunda a convicção de que a arte primitiva deve ser cultivada e traduzida por arcanos maiores. As expedições de Mário e Bartók parecem utópicas demais em um mundo globalizado que não só perde o patrimônio natural e cultural das comunidades primitivas como sobretudo reduz o intelectual a personagem de desenho animado. Hoje, o paradoxo do primitivismo deu lugar ao da banalidade. É preciso encontrar elementos mais mesquinhos nos altos cérebros, para rebaixá-los à escatologia.

O livro de Elizabeth Travasso traz um antídoto à frivolidade.

Para ir além





Luís Antônio Giron
São Paulo, 5/9/2005

 

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