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Segunda-feira, 12/9/2005 Dogville e a poesia Michel Laub Numa das muitas cenas estranhas e incômodas de Dogville, de Lars von Trier, dois personagens conversam a respeito de bonecos de louça guardados no interior de uma igreja. Ele é Tom (Paul Bettany), aspirante a escritor do vilarejo que dá título ao filme, e ela é Grace (Nicole Kidman), fugitiva ali abrigada durante os anos da Depressão norte-americana. Os bonecos "descrevem melhor a cidade do que qualquer palavra", diz a narrativa em off, que em seguida pergunta: "Eles são bonitos ou horríveis?". Para Grace, pelo menos àquela altura da trama, a alternativa correta parece ser a primeira. Para Tom, também parece – e a história de como a resposta lentamente se inverte é o centro deste filme que, depois de fazer barulho em Cannes/2003, é exibido no Telecine Emotion com sua metáfora devastadora sobre as relações entre o indivíduo e o poder. Evidentemente um tema assim, nos dias de hoje, daria ensejo a uma série de injunções políticas. Sabendo disso, na época do lançamento, Lars von Trier não perdeu a chance: além de situar o filme nos Estados Unidos, ainda anunciou-o como primeiro capítulo de uma "trilogia americana". Para os ouvidos de Cannes, eram palavras mágicas: sendo Dogville o ápice do pessimismo em sua obra, espécie de aposta no desvirtuamento que a sociedade inflige ao mais bem-intencionado dos cidadãos, não foi muito difícil considerar que o assunto tratado era uma representação dos anos George Bush, da arrogância do império, do mundo corporativo e de outros vilões costumeiros. É um engano, claro: numa análise mais atenta, a impressão causada pelo filme é bem diferente. Dogville inicia quando os habitantes do vilarejo decidem acolher Grace. Nesse prólogo há uma sensação geral de pureza, tanto no tom fabulístico da narração, que situa o cenário num ponto onde "os presentes caem do céu", quanto na simplicidade e no bucolismo descritos: ali estão o arbusto de groselha, a macieira, as sardas no rosto amigável, as mãos brancas que fazem a torta e o pão. As locações têm marcação teatral, com suas indicações – "escola", "horta", "casa" – escritas a giz no piso. Não há paredes a dividi-las, e desde logo se propõe um jogo ao espectador: o.k., todos sabemos que estamos diante de uma representação, e aí também se imiscui um tom de sinceridade, que abre mão de truques para concentrar-se no que é essencial à história. De certa maneira, repetem-se as proposições do Dogma, movimento fundado por Von Trier e outros cineastas dinamarqueses na década passada, baseado numa estética que priorizava os roteiros, obtida sem efeitos de luz e som. Com ela o diretor finalizou Os Idiotas (1998), que seguiu os promissores Europa (1991) e Ondas do Destino (1996), e aproveitou-se de uma confusão conceitual que se repetiu com Dogville. Um dos enganos da crítica à época de Os Idiotas foi a apreciação do filme majoritariamente sob o seu aspecto formal. Esqueceu-se que o Dogma fora concebido como misto de esperteza e desabafo, um novo sotaque e uma nova maquiagem para a velha câmera na mão e o velho orçamento escasso – usado com método, o recurso deu a seus signatários a publicidade e a atenção que por vezes falta a artistas mais "tradicionais". Esse era o seu ponto de partida, mas não a sua essência. Von Trier estava ciente disso, e pouco adiantaria manipular a "indústria da repercussão" se o peixe que tivesse para vender não fosse minimamente graúdo. Os Idiotas não frustrou a expectativa: história de um grupo de jovens que imitam deficientes mentais para protestar contra a apatia e o reacionarismo de uma pequena cidade, é um filme notável, que resiste mais pelo que tem de substância narrativa, a idéia de que o infantilismo e o alheamento podem ser mais honestos do que a vida hipócrita em sociedade, do que por seu eventual caráter vanguardista. Da mesma maneira, Dogville parece usar a isca da "história americana" e do "teatro" para falar alto. No primeiro caso, continuamos no terreno da publicidade: a irrelevância desse recurso no enredo é óbvia. Mude-se o nome da cidade para qualquer outro, mude-se a sua época e local, e rigorosamente nada se perde do drama que a rodeia: os Estados Unidos aparecem apenas como uma sombra sem estatura, insinuada em cenas tributárias de algumas tradições do país, como o puritanismo e os tiros de metralhadora disparados por gângsteres. A questão ética, no entanto, vai muito além de preceitos de uma religião específica, e a violência é abordada tão canonicamente, numa generalização que chega a incomodar por seu esquematismo explícito, que é difícil acreditar que Von Trier esteja falando de algo mais histórico, mais circunstancial e mais ligeiro do que a própria condição do homem em conflito. A América é muito pequena diante de tamanha ambição: nas palavras do próprio filme, está-se falando é da "alma humana, onde ela cria bolhas". A escolha do teatro, por sua vez, é mais complexa. A forma não está ali por acaso, e a recusa ao refresco dramático e à fluidez cumprem uma função de catequese, digamos assim. Dogville tem perto de 3h de duração, e cada minuto cobra sua taxa em aridez e peso: é como se o espectador fosse uma espécie irredimível de crédulo, que precisa ser sempre lembrado de que o mundo é feio, de que o homem é torpe, e a compreensão dessa verdade em toda a sua inteireza não é nem mesmo a saída para que algo seja mudado. O filme é enfadonho em muitos momentos, mas até nisso parece haver intenção: quebra-se o encanto para que não haja chance de enxergar qualquer beleza na sordidez, qualquer lirismo na decadência. É uma proposição evidentemente utópica: da forma como Von Trier dirige seus atores e dá vida aos diálogos e a certas nuances da trama, o que se tem ao final das contas é a temida e sempre perigosa poesia da corrupção. Dogville explora um argumento bastante semelhante ao de Os Idiotas. Aliás, não só deste filme de Trier: também de Ondas do Destino, sobre a mulher cuja vida desmorona depois de um acidente envolvendo o marido, e de Dançando no Escuro (2000), que trata de uma imigrante cega sofrendo o diabo na América. Em todos os casos está-se diante da contraposição da inocência – sempre representada pela figura feminina, apesar das constantes acusações de misoginia que recaem sobre o diretor – e da brutalidade, normalmente encarnada num grupo de pessoas "comuns", numa coletividade anestesiada pela pasmaceira provinciana. A inocência lentamente perderá a batalha, não se tenha dúvida, e até os "justos" – os rebeldes de Os Idiotas, a Grace de Dogville – saberão revelar a sua face daninha. Von Trier é capaz de filmar esses estupros morais com uma crueldade digna de Ingmar Bergman, a câmera aparentemente neutra que assiste ao progressivo desespero dos personagens, à exposição de suas entranhas a uma luz de meio tom, rara como o sol dos países nórdicos. Antes de jogá-la sobre o cego, o aleijado, o bêbado, a família que se odeia e a gente que "raspa copos velhos para que pareçam novos", Dogville põe Tom e Grace diante dos bonecos e faz a sua pergunta decisiva. Ao final do filme, não haverá nada mais violento do que a lembrança dessas palavras e do seu tom à sua maneira premonitório. Porque a questão posta por toda a obra de Lars von Trier é esta: vamos olhar os bonecos de perto. Vamos testar Grace? Vamos ver como ela reage quando é examinada tão minuciosamente? Vamos ver se o conceito que ela tem de beleza permanece o mesmo depois que os habitantes de Dogville mostram do que são capazes? Em Europa, um americano trabalha numa sombria linha de trem da Alemanha de 1945 e, apesar de toda sorte de maus-tratos que sofre dos passageiros, diz estar ali para ajudar a fazer "um mundo melhor". Ao final de Dogville, Grace diz uma frase semelhante, mas o sentido do seu "mundo melhor" já é bem outro: aqui não se admite mais a aproximação das diferenças, mas sim a sua eliminação física. Como no romance Extinção, em que Thomas Bernhard precisa nomear tudo o que será destruído, a câmera de Dogville enquadra aquilo que deverá ser morto: o intelectual, o trabalhador, o sábio, o educador. Quem faz o mal só confirma o teorema. Quem tenta fazer o bem, a exemplo de Dançando no Escuro e da cartilha das mais célebres tragédias, não escapa de protagonizar o horror. Há moralismo aí? Certamente, mas na contramão do espírito de sua época: em vez da tolerância corrente, prega-se a punição; em vez da crença politicamente correta na "igualdade das virtudes", aposta-se na "igualdade das torpezas". Fosse de fato uma metáfora sobre os Estados Unidos, os culpados seriam bem mais identificáveis: ou na pessoa de Grace, que incorpora a lógica da vingança contra os agressores "bárbaros" (o Iraque? o Afeganistão?), ou nos próprios agressores, os primeiros a identificar a virtude de Grace (a democracia? o "indivíduo"?) e tratar de destruí-la. Ocorre que, em Dogville, nenhum dos lados tem a razão. A ética do filme é a ética do julgamento final: no seu dedo apontado sem condescendência, e as fotos de vítimas históricas na seqüência dos créditos finais são paradigmáticas, está a denúncia das feridas de um mundo que se esqueceu de si mesmo. Nesse mundo não há lugar para Grace, parece sempre dizer Lars von Trier, sabendo ele mesmo da tragédia que é a sua certeza: pessoas deslocadas assim existem e continuarão existindo, como anjos que fazem lembrar da nossa própria e irremediável perdição. Nota do Editor Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente na revista Bravo!, em dezembro de 2003. Michel Laub é ex-diretor de redação da Bravo! e também autor de Longe da água, romance entre os finalistas da edição 2005 do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira. Michel Laub |
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