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Segunda-feira, 3/10/2005
Não fui ouvido por Veja
Luís Antônio Giron

No Brasil, não vale o ditado "quem não deve não teme". Por aqui, de fato, quem não deve tem muito a temer. Vejam o que acaba de acontecer comigo. Eu, jornalista, com mais de 20 anos de carreira na área cultural, estou sentindo na carne o que muitos cidadãos já sofreram: o ataque calunioso de um veículo poderoso da imprensa e a diferença entre o espaço dado à acusação e o conferido à defesa. Fui vítima do próprio meio em que trabalho. É também uma oportunidade para refletir outra vez sobre o papel do jornalismo e para elaborar uma pequena meditação sobre o jabaculê, ou jabá, que é como a indústria da música chama a propina dada a DJs e a jornalistas em troca de espaço na mídia. Mesmo que minha consciência esteja limpa e eu não deva nada a ninguém, mesmo que minha honestidade continue preservada, tenho tudo a temer. Estou com medo da espetacularização da notícia a qualquer preço, notícia que chega ao leitor sem apuração, sem ouvir o outro lado, criando factóides que não se apóiam na realidade. É a síndrome da Escolinha de Base (a escola e a reputação de seus donos destruída nos anos 90 em São Paulo por uma campanha unilateral da imprensa) aplicada aos intestinos do jornalismo.

O fato é o seguinte: a revista Veja publicou nesta semana – edição 1.925, ano 38, nş 40, datada de 5 de outubro de 2005 – uma matéria não-assinada com o título "O mensalão da filha de Elis". Ela conta como a cantora Maria Rita teria se valido de um expediente típico do jabaculê para divulgar seu novo CD, Segundo. Sua gravadora, a Warner, distribuiu duas ou três dezenas de aparelhos i-Pod shuffle para diversos veículos de comunicação brasileiros. Com isso, a cantora teria obtido matérias em revistas e jornais. Em uma passagem que me toca especialmente, a matéria afirma que a gravadora "matou dois coelhos de uma cajadada", valendo-se do jornalista de Época e colaborador da revista Bravo! – ou seja, eu, Luís Antônio Giron – que ganhou um i-Pod e, em troca, fez dois favores à Warner: "ele escreveu uma matéria simpática na revista e outra mais elogiosa ainda na Bravo!, publicada pela Editora Abril, o mesmo grupo de Veja". Em seguida, afirma que "poucos veículos recusaram o jabá da gravadora".

Ficou evidente que eu não havia devolvido o i-Pod. Mas se trata de uma grande calúnia, pois não apenas devolvi o aparelhinho, sem nem tocá-lo, à assessoria da cantora no dia 15 de setembro, dois dias depois de ter sido entregue a mim (sem que eu pedisse), como não fiz matérias "simpáticas" à cantora. Na matéria da Época, escrevi que Maria Rita "fracassa" ao tentar fugir da influência dos pais. Na da Bravo!, fiz uma reflexão em estilo de improviso sobre como não consigo ouvir Maria Rita com ouvidos inocentes. De fato, para mim, é impossível ouvi-la sem pensar na mãe. Portanto, as duas matérias, cada uma para um fim, trataram criticamente e de forma independente em relação ao CD. Para a Época, fiz uma entrevista. Para Bravo!, uma "pensata" crítica. E, outra vez, devo dizer que o aparelhinho com valor médio de R$ 240, enviado a título de material suplementar aos jornalistas (o preço de uma caixa de 6 DVDs ou de muitos outros materiais enviados à imprensa a título de divulgação, sem caracterizar o jabá, como veremos adiante), foi devolvido gentilmente à Warner. Achei que não era lá muito justo receber um objeto do desejo de consumo, mesmo que sem nenhum tipo de obrigação, embora não gostasse de causar qualquer constrangimento à gravadora com algo que soasse como uma desfeita. Consultei o Diretor de Redação de Época, devolvi o aparelho à assessoria da Warner e fiquei tranqüilo.

Não devia dar qualquer satisfação sobre isso. Mas, pelo jeito, nada disso tem importância. O fato mais importante no caso dos redatores da reportagem de Veja foi que nem sequer tomaram o cuidado de me ouvir, ou seja, conferir o famoso "outro lado" da investigação. Ao não fazer isso, incorreram em erro e praticaram uma calúnia, ao dizer que o jornalista de Época reteve o aparelho. Fiquei sabendo do caso ainda na sexta por meio da diretoria de Bravo!. Fui informado que dois velhos amigos meus trataram de produzir a peça acusatória: um repórter de música que trabalhou no Notícias Populares na época do escândalo da Escola de Base e com quem tive ocasião de conviver fraternalmente em várias situações e o redator-chefe de Veja, velho companheiro dos tempos de Folha e pessoa a quem devoto o maior respeito e admiração.

Bom, dirão os incautos, com amigos assim a gente não precisa de inimigos. Pois, na sexta-feira 30 de setembro, passei o dia tentando falar com eles, ligando para a redação para que a matéria fosse corrigida. Eu havia devolvido o i-Pod. Depois de muito esforço, Martins me ligou para se desculpar, afirmando algo como "não sou policial, não tenho nada a ver com isso, foi matéria encomendada". Mas, Sérgio, porque você não ligou para mim ao menos para saber se era verdade? Não ligou, disse, por vergonha. Tentei contactar Sabino o dia todo, sem sucesso. No final da tarde, Veja disse que a matéria estava fechada, sem possibilidade de correção. Sem saber do que se tratava, pois não me mostraram o seu conteúdo, escrevi uma carta à redação me defendendo.

A carta saiu espremida na última página das cartas, evidentemente cortada na parte em que digo que Veja não me ouviu. Transcrevo aqui o e-mail original (grifando o que não saiu):

"Prezados Senhores,

Quero esclarecer que o aparelho i-Pod, enviado para os jornalistas de música dos principais veículos da imprensa, inclusive para mim, colaborador da revista Bravo e editor de Cultura da revista Época, foi devolvido à assessoria de imprensa da cantora Maria Rita, intacto.

Meu trabalho como crítico sempre se pautou pela independência e jamais aceitei qualquer tipo de oferta em troca de minha liberdade de opinião. Mais: minha atitude me foi prejudicial em muitas ocasiões.

Não fui ouvido por Veja.

O CD Segundo (Warner) de Maria Rita é de ótima qualidade e a cantora obteve na impensa o espaço que lhe é merecido. Exijo que este esclarecimento seja publicado na edição atual. Caso contrário, tomarei as medidas legais cabíveis."

O fato é que acabei servindo aos propósitos da Veja, que estampou o texto para se resguardar de um possível processo. Eu tentei me defender no escuro, pois não me foi dado o direito de ler a reportagem. E Veja não ouviu o outro lado, não me procurou para saber a verdade. Além de ferir uma regra do jornalismo, os jornalistas que não tiveram coragem de assinar o nome cometeram uma atrocidade, caluniaram um colega, sob pretexto de denunciar um jabá que não existiu. A defesa, como sempre, é bem menor que a acusação. Com amigos assim...

Arrisco afirmar que a Veja atuou dessa forma inescrupulosa, chamando essa ótima cantora de "filha de Elis" e omitindo autores, porque, em 2003, segundo fui informado, a revista, como é de seu hábito, exigiu exclusividade sobre a matéria e a entrevista. Não obteve o privilégio, pois Maria Rita teve o bom senso de manter a democracia da informação. Com a negativa, a revista publicou apenas uma nota sobre o primeiro CD, que se tornou o maior fenômeno da MPB naquele ano, tendo vendido 700 mil exemplares. Agora, com o segundo CD, a Veja resolveu retaliar a cantora com uma matéria supostamente de denúncia. Atingiu a reputação da cantora e dos jornalistas de outros veículos. Tudo para figurar como isenta.

A prepotência dessa revista de grande circulação é já antiga. Várias personalidades do mundo cultural já foram vítimas de seus ataques irracionais. Mas jamais esperaria tamanha destemperança. Primeiro, porque Maria Rita, ótima cantora, não precisa distribuir i-Pod para jornalista. Seu valor como intérprete é suficiente para ocupar os espaços que merece. Segundo, porque a questão do jabaculê é muito outra. Jornalistas de cultura vivem recebendo produtos de gravadoras, distribuidoras e recebendo convites para viagens e outras mordomias. Isso não configura corrupção, se o veículo e o jornalista deixam evidente que a posição do veículo e do autor são invendáveis. Em geral, recebemos material de trabalho. Recebo centenas de livros, CDs e DVDs que são ruins e descarto – nas chamadas "feirinhas" da redação, quando tudo isso é distribuído. No Natal, parte desse material é doado para crianças pobres. O material acaba sendo útil de alguma forma. E guardo muito CD, DVD e livro que recebo. Minha obrigação é ser claro na opinião e honesto com o leitor. A gente chama de jabá por brincadeira o material recebido – mas ele é bem-vindo e útil. Empresas jornalísticas não têm como bancar tudo quanto é produto.

Jabaculê mesmo é outra coisa, é o ato de corrupção de uma gravadora, interessada em promover uma música ou um artista, realizado em associação com emissoras de rádio, que exigem um dinheiro alto para executar faixas de música. Nada a ver com o i-Pod mandado aos jornalistas. Apesar de entender o gesto da gravadora, tratei de devolver porque seria reter um aparelho que não se esgota no produto – no caso, o CD Segundo, de Maria Rita. Houve jornalistas que receberam o i-Pod, ficaram com ele e falaram mal do CD de Maria Rita. Não vejo problema nisso. É uma questão de opção e consciência crítica. E a crítica tem que se pautar pela independência, como sempre me pautei. Jabaculê mesmo é coisa séria. E nunca testemunhei jabaculê real em redações de jornais e revistas onde trabalhei.

O patrimônio do jornalista é o seu nome. Considero obviamente inestimável o valor do meu nome; jamais me vendi por um prato de lentilha, um aparelho de som ou mesmo por qualquer quantia. A calúnia de que fui alvo deverá ser reparada. Sinto-me como aqueles donos da Escola de Base, que não tiveram como se defender da sanha da grande imprensa. No meu caso, tudo vai passar, porque a verdade irá prevalecer sobre a calúnia. Quem não deve pode temer, mas precisa ir à luta. Estou pronto para polemizar mais uma vez. Até onde a grande imprensa pode avançar em supostas denúncias sem consultar as fontes, em nome de razões oculltas que o público desconhece? Calúnia continua sendo crime ou a imprensa tem o direito de fazer o que quer em nome do espetáculo?

Nota do Editor
Luís Antônio Giron é editor de cultura da revista Época.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 3/10/2005

 

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