|
Segunda-feira, 12/12/2005 Não podia acontecer na América Sérgio Augusto Uma ditadura fascista na América? “Bobagem”, respondeu o industrial Francis Tasbrough. “Somos um país de homens livres”. Deu no que deu: Tasbrough, anti-semita enrustido, seria pouco depois um dos mais fervorosos fiadores do governo fascista de Berzelius “Buzz” Windrip — na América. Quando isso? Em 1936. Mas só no romance de Sinclair Lewis, It Can’t Happen Here. Na América real, quem se elegeu presidente em 1936 foi o democrata Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), impondo ao republicano Alfred M. Landon uma derrota acachapante. Naquela eleição — ou melhor, reeleição — FDR perdeu apenas em dois estados: Maine e Vermont. Não por coincidência era em Vermont, num banquete do Rotary Club, que a distopia de Sinclair Lewis tinha início. Discursando para os comensais, um general de pijama patrioteiro e isolacionista e uma bruaca republicana, obcecada guardiã da “pureza da América” que já conseguira banir da indústria cinematográfica todos os divorciados, estrangeiros (à exceção dos ingleses) e quem se recusasse a reverenciar a Bíblia, a bandeira americana e outras instituições nacionais. Presente à pomposa patacoada, o cético Doremus Jessup, editor do jornal local, a consciência crítica da comunidade e, por extensão, da América — que, meses depois, sucumbiria ao que ele chamou de “revolução rotariana”, liderada pelo demagogo e populista Buzz Windrip. Apoiado pelo clero católico mais retrógrado e orientado por um secretário maquiavélico, Windrip afinal derrotou o senador republicano Walt Trowbridge e assumiu a Casa Branca com uma plataforma indisfarçavelmente racista e chauvinista. Pois é: em It Can’t Happen Here, o candidato do mal era democrata. Outra curiosidade: sua “revolução” começara num histórico reduto republicano. Nenhum parti-pris partidário da parte de Lewis: ele precisava de um presidente isolacionista, e quase todos os isolacionistas da época militavam no Partido Republicano. Buzz Windrip ganhou logo o apelido de “Chief” (Chefe), o equivalente americano de “duce” e “Führer”. Suas tropas de choque — seus condottieri, enfim — usavam uniformes iguais aos dos cavalarianos ianques de 1870, adornados com o novo signo da América: uma estrela de cinco pontas (para não ser confundida com a de Davi), depois trocada por uma hélice (porque a estrela comunista também tinha cinco pontas). Arauto e amparo dos “americanos esquecidos” e seus “mais puros ideais”, Windrip perseguiu judeus e proibiu que negros votassem, trabalhassem em órgãos públicos, fossem advogados e dessem aulas além do primeiro grau. Adivinhe quem o chief escolheu para seu embaixador no Brasil? Herbert Hoover, o ocupante da Casa Branca durante a Depressão de 1929. (Na vida real, Hoover abandonara a vida pública por uns tempos após ter sido derrotado por FDR, nas eleições presidenciais de 1932, limitando-se a vociferar contra o New Deal rooseveltiano, graças ao qual os EUA lograram sair da crise social e econômica herdada de seu governo.) Coincidência ou não, também era em Vermont que vivia Lemuel Pitkin, o jovem narrador de A Cool Million, de Nathanael West. Satírica fantasia sobre a ascensão de um ditador nazistóide na América, chegou às livrarias um ano antes de It Can’t Happen Here, mas não obteve o mesmo sucesso. Em notoriedade e prestígio, West ainda não era páreo para Sinclair Lewis. Os ventos mudaram. Nas últimas décadas, A Cool Million chegou a ser qualificado como “um Waste Land americano, em prosa”, não sendo poucos os que o filiam à nobre linhagem cômica de Jonathan Swift e Gogol, com toques kafkianos e voltaireanos. Nathan “Shagpoke” Whipple, o ogro de A Cool Million, era uma caricatura de Calvin Coolidge (na vida real, o antecessor de Hoover na presidência dos EUA) : a mesma oratória vazia, os mesmos provérbios sem sentido, as mesmas platitudes constrangedoras. Para ele, os banqueiros internacionais judeus e os comunistas eram os culpados por quase todas as desgraças do planeta. Seus mais fanáticos seguidores não usavam camisas pretas, como os fascistas italianos, mas jaquetas de couro (daí o apelido “Leather Shirts”), e bradavam slogans iguais aos da Ku Klux Klan. Com Whipple na Casa Branca, negros e judeus passaram a ser perseguidos, torturados e mortos como ratos por toda a América. Não me pergunte por que a Paramount chegou a pensar numa versão musical dessa história. Bem antes de Lewis e West, mais precisamente em 1907, Jack London publicara um romance futurista cujo pioneirismo ninguém até hoje contestou. Em Iron Heel (traduzido no ano passado pela Boitempo, com o título de O Tacão de Ferro), London previu a degeneração da América numa ditadura plutocrática comandada pelos republicanos. Em 1914, ponto de partida de sua distopia, a palavra fascismo ainda nem fora ouvida na Itália. London captou a pestilência no ar, com uma década de antecedência, obviamente instigado por suas convicções socialistas. Algumas de suas profecias se concretizariam, episodicamente, nas décadas seguintes, e já faziam parte da história negra dos EUA quando Doremus Jessup as repertoriou no segundo capítulo de It Can’t Happen Here. Em miúdos: o que aconteceu na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler poderia ter acontecido na América, sim. Até porque o nazi-fascismo contava com alguns simpatizantes nos mais altos escalões da sociedade americana. Pelo menos três merecem destaque: o visionário magnata da indústria automobilística Henry Ford (1863-1947), o ás da aviação Charles A. Lindbergh (1902-1974) e o padre católico Charles E. Coughlin (1891-1979). Ford chegou a receber, em 1938, a Grande Cruz da Águia Alemã, a maior insígnia que o regime nazista concedia a estrangeiros. Injuriados, muitos judeus deixaram de comprar carros da Ford, entre os quais todos os vizinhos de Philip Roth, em Weequahic, na zona sudoeste de Newark (Nova Jersey), onde o escritor nasceu e foi criado. Lindbergh, celebridade mundial depois de um solitário vôo Nova York-Paris, a bordo do monoplano “Spirit of St. Louis”, em 1927, admirava Hitler, aceitou uma medalha de ouro do 3º Reich e manifestou-se, seguidas vezes, não só contra a entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial, mas também contra os judeus e “outras raças inferiores”. O histérico padre Coughlin fez do rádio um púlpito infinitamente mais poderoso que o da igreja de que era pastor em Royal Oak (Michigan). Seus radiofônicos sermões anti-semitas e anticomunistas (para ele, até Roosevelt era um bolchevique) foram um prelúdio do macarthismo. Em dezembro de 2000, ao ler as provas da autobiografia do historiador Arthur Schlesinger, Roth ficou sabendo que em 1940 alguns republicanos radicalmente contrários à entrada dos EUA no conflito europeu cogitaram de lançar a candidatura de Lindbergh à sucessão de FDR. Como é sabido, o candidato afinal escolhido pelos republicanos, Wendell L. Wilkie, levou uma coça do democrata, que por 449 a 82 votos no Colégio Eleitoral elegeu-se presidente pela terceira vez consecutiva. “Mas, e se Lindbergh tivesse sido mesmo indicado, e depois derrotado Roosevelt?”, perguntou-se Roth. Nascia ali o seu quinto livro “autobiográfico”: The Plot Against America (O Complô Contra a América), o reverso do primeiro da série (The Facts, 1988) e um anômalo complemento aos demais: Deception (1990), Patrimony (1991) e Operação Shylock (1993). Em The Facts, Roth descreveu sua infância como uma sucessão interminável de momentos felizes. Newark era um lugar tranqüilo, protegido das ameaças e desgraças que atormentavam a Europa. Em The Plot Against América, lançado há dois meses nos EUA, Newark e a infância de Roth transformam-se num pesadelo. Diante dos olhos do pequeno Philip, um turbilhão de sinistras surpresas precipita seu bairro, sua cidade e, por fim, seu país num inferno antes inimaginável. A primeira surpresa (ou “choque”, como prefere o autor) foi em junho de 1940, quando a Convenção Republicana, realizada na Filadélfia, indicou Lindbergh (e não Wendell L. Wilkie, como de fato aconteceu) para disputar as eleições presidenciais. O segundo choque foi a derrota de FDR. O terceiro não chegou a ser uma surpresa para o rooseveltiano Herman Roth, pai de Philip, que, com boas razões, odiava Lindbergh: o heróico piloto não só se recusou a aliar-se à Inglaterra e França na luta contra Hitler como, tão logo assumiu a presidência, firmou um pacto de não-agressão com a Alemanha, solenemente referendado num banquete em homenagem ao ministro das relações exteriores nazista, von Ribbentrop. Da noite para o dia, as brumas do complô se dissiparam, descortinando a América sonhada pelos “Camisas Prateadas” de Minneapolis, com judeus isolados em guetos ou “reeducados” em comunidades cristãs e os negros postos “em seu lugar”. Ou seja, uma sucursal do 3º Reich. Até suásticas carimbadas os selos americanos ganharam, para desespero de Philip Roth, que aos sete anos era um diligente filatelista. Roth definiu The Plot Against America como “um exercício em imaginação histórica”. Poderia ter dito um romance contrafactual, irmão ficcional da história contrafactual, modismo acadêmico seriamente empenhado na reconstrução do passado pelo avesso ou na contramão dos fatos. O historiador Stephen E. Ambrose especulou sobre o que teria acontecido se o Dia D tivesse fracassado e John Keegan sobre o que teria acontecido se Hitler tivesse vencido a guerra (os detalhes podem ser lidos em E Se...?, de Robert Cowley, lançado no ano passado pela Campus). Há pouco mais de 40 anos, no romance O Homem do Castelo Alto, Philip K. Dick imaginou uma América ocupada por japoneses e alemães nazistas, com os negros de volta ao pelourinho e os judeus às voltas com um novo progrom. Hitler também sobreviveu para ocupar a Inglaterra (e executar Churchill) em SS-GB, de Len Deighton, e, pior ainda, apoderar-se de todos os continentes em Fatherland, de Robert Harris. A distopia de Roth não vai tão longe. The Plot Against America começa em junho de 1940 e termina em outubro de 1942, com as hipérboles de praxe: o colunista Walter Winchell, o mais famoso jornalista dos EUA e o mais ferrenho crítico de Lindbergh, é morto num atentado; Roosevelt e o prefeito de Nova York, Fiorello La Guardia, são presos; a Ku Klux Klan faz a festa etc. Mas antes do Natal de 1942, Lindbergh cairia em desgraça, FDR reassumiria o poder e a América iria lutar contra as forças do Eixo. Jamais ocorreu a Roth emular o George Orwell de 1984. Sinclair Lewis e Nathanael West, talvez sim, inclusive porque estes fazem parte de uma estirpe literária preocupada com o que a América tem de pior, vale dizer com o seu Id, e a relativa precariedade de suas instituições em momentos de crise. Alguns críticos mais, digamos, conservadores, repeliram comparações com a América dos últimos quatro anos. São outros tempos, outro o contexto, sem dúvida, nada isolacionista o presidente, mas não custa lembrar que o Patriot Act imposto pelo primeiro governo Bush pouco se diferencia dos ucasses assinados por Nathan Whipple, o Mussolini de A Cool Million, e Buzz Windrip, o “Führer” de It Can’t Happen Here, que ao menos se elegeram sem fraudar na contagem de votos. Mais que um exercício em imaginação histórica, Complô contra a América é um alerta, feito por quem acha que Bush “não poderia sequer tomar conta de uma loja de ferragens”. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno2", de O Estado de S. Paulo, a 27 de novembro de 2004. Para ir além Sérgio Augusto |
|
|