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Segunda-feira, 26/12/2005 Vide bula e vire cult Luís Antônio Giron Os seres humanos não vêm ao mundo com um manual de instruções. Deus deveria fornecer pelo menos um livreto explicativo, pois as pessoas gastam boa parte de suas vidas e energias procurando entender em que mundo vivem e de que forma devem viver. À medida que crescem, precisam recorrer a supostos "guias de operação". Daí a importância da literatura de auto-ajuda. Hoje as pessoas não encontram mais o apoio da família. Perdeu-se alguma coisa importante nessa liberação dos costumes do século XXI: o conhecimento, os princípios básicos da polidez e do contato humano, a noção de hierarquia no trato e coisas básicas como se portar à mesa, dizer "por favor", "obrigado" e "com licença". A gente sente isso dentro de casa. A figura dos pais deixou de ter tanta importância e, nas escolas, as crianças são deixadas ao sabor de sua falta de referenciais. A garotada é obrigada, assim, a criar códigos de conduta. E estes não têm uma ligação real com o mundo. Vivem em um universo à parte, com falas e comportamentos os mais bizarros. Nas empresas, a mesma coisa: a horizontalização dos processos criaram uma cultura corporativa livre, em que todo mundo se acha no direito de fazer e dizer o que quiser. É claro que, na prática, esse tipo de liberdade dá com os burros n'água. Eta mundinho sem noção! Com toda a inversão de valores da sociedade, e com a saída de cena da figura do ancião conselheiro, dos orientadores, dos chefes que usavam pedagogia e mesmo dos pais, só restam mesmo os livros de etiqueta. Um número expressivo de títulos nessa área invade o mercado. Há cursos nesse tema em todo canto do planeta. E, para quem ainda não reparou, etiqueta deixou de ser exclusividade das moçoilas de elite. Atualmente, o público masculino busca em cursos de boas maneiras inglesas (chamadas finishing schools) uma forma de ascender socialmente e se comportar no ambiente de trabalho. Quase toda as obras e palestras de auto-ajuda corporativa servem atualmente como desculpa para ensinar padrões de comportamento. São obras curiosamente necessárias, especialmente no mundo corporativo. Por que se tornaram tão importantes? Vivemos ainda em um mundo hipócrita? Ou é a sociedade sem noção que quer se agarrar em alguma base, mesmo que inconsistente? Que imagem de mundo é esta vendida pelos manuais? Para responder às perguntas, vamos dar uma passada de olhos nos livros recém-lançados. Isso para não entrar na amazônia de títulos semelhantes que transformam o mercado num cipoal intransponível. A Arte da Guerra, de Sun Tzu, é o manual de gerentes mais usado como guia de boas maneiras, mesmo que ensine como aniquilar inimigos da forma mais rápida possível. As boas maneiras estenderam suas ventosas para áreas impensáveis, como guerra, cultura, vida corporativa e até ioga. No Brasil, cultura, por exemplo, virou um item de luxo, e é usada para impressionar um possível cliente, um empregador, um contato. O engraçado é que o consumidor não quer usar o método mais difícil e efetivo para virar um homem de bem e educado: a educação. Mesmo porque ser educado não abre exatamente portas. Adquirir boas maneiras e uma cultura de verniz é mais útil e ajuda o profissional a subir com maior rapidez. Cultura e Elegância (Editora Contexto, 290 págs.), organizado pelo livre-docente em História Jaime Pinsky e com apresentação da psicanalista e socialite Eleonora Mendes Caldeira, traz o subtítulo: "O que se deve fazer e o que é preciso conhecer para ser uma pessoa culta e elegante". O volume cumpre a função de instrumentalizar a cultura como elemento essencial da elegância e das boas maneiras. O livro traz um elenco de especialistas em diversos assuntos, como literatura, música, cinema, moda. Em todos, há bulas para o remédio de se transformar em um ser cult. Para Eleonora, cultura e elegância são sanguessugas que se exploram mutuamente. Diz ela: "Um homem ou uma mulher elegante quer – e precisa – saber o que se passa no mundo das artes, da literatura, da música, dos espetáculos, das viagens, da gastronomia. Cultura, pois, entendida como produção humana para deleite próprio. A Cultura tida, então, como alimento do espírito". O que, em outras palavras, o volume pretende é reduzir a cultura em ferramenta para o sorriso da sociedade. Fácil, não? Vide bula e vire cult. No âmbito corporativo, é ainda mais hilariante o manual O Negócio é o Seguinte - Hábitos e costumes dos povos e sua influência na vida empresarial (Ibradep, 490 págs.). As autoras paulistanas são a advogada Maria Eliza de Araújo Barros e a consultora e comunicóloga Gilda Fleury Meirelles. O volumão é um guia para os efusivos brasileiros evitarem gafes internacionais nos negócios. Ensina que japonês se curva, europeu aperta a mão e as mulheres dos países árabes estão em posição inferior. O profissional precisa saber umas poucas instruções, pois a globalização está colocando todo mundo no mesmo nível. Antigamente, por exemplo, trocar cartões no Brasil soava estranho. Hoje nos comportamos como perfeitos japoneses. O maior defeito do gerente brasileiro é ser "dado" demais. Nem sempre os estrangeiros gostam de sorrisos e gargalhadas, confissões e piadas. Eu pergunto: quem não sabe isso de cor? É que as gerações se seguem e se perdem as vivências, não se passam experiências de uma para outra. A jornalista gaúcha Célia Ribeiro lança Etiqueta Século XXI - Um guia prático de boas maneiras para os novos tempos (LP&M, 290 págs.). O livro é uma bula de como se comportar na era do celular e da internet. Célia aconselha os aspirantes a conquistar um estilo, olhando-se no espelho para examinar defeitos e tiques nervosos, dá dicas sobre como manter a postura ereta, o nós da gravata, o tipo de minissaia para executivas. No chá das cinco, pode-se aproveitar o mesmo sachê em mais de uma xícara sem fazer vexame. As mulheres modernas e maduras podem ser ousadas e até convidar o homem para sair. Cheques-presentes não fazem feio. E na academia é preciso ser elegante, sim. Viu como é fácil? Tem etiqueta para todas as tribos. Os iogues, por exemplo, ganham agora Boas Maneiras no Yôga (Nobel, 146 págs.), de Mestre De Rose. Leva o subtítulo de "Uma coletânea bem-humorada de observações sobre etiqueta, aplicáveis dentro e fora do Yôga". Além de abordar códigos para os relacionamentos animados entre os iogues, Mestre De Rose dá conselhos sobre liberdade, alimentação (ele abomina proteína animal, que chama de "cadáveres") e até mesmo como evitar que outros ouçam os barulhos que o ser bem-educado produz no banheiro. Escreve: "é imperdoável produzir aqueles ruídos hediondos que pessoas menos educadas fazem com a garganta sistematicamente todas as manhãs, como se estivessem sendo sufocadas pelo catarro e precisassem livrar-se dele urgentemente". Aquilo que deveria ser bem sabido por todos virou repertório desses manuais. O mundo tem seu componente de hipocrisia na convivência social e um pouco de modos não faz mal a ninguém. O fato é que esses novos manuais de século XXI fazem uma imagem do mundo como um território hostil, em que as pessoas devem manter as aparências e mentir para si próprias a fim de conquistar algum lugar. O público-alvo desses livros não parece ser o homem, mas o rato. Isso porque tudo o que esses sábios aconselham se rege por mecanismos de estímulos e respostas. A civilização pode ser regida por um manual de instruções para se comportar como camundongos numa caixa. O bom senso não entra nesses experimentos. Deus, por favor, passe a enviar seres à Terra com as instruções, OK? Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Este artigo foi publicado originalmente na revista eletrônica da AOL, em 7 de novembro de 2005. Luís Antônio Giron |
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