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Segunda-feira, 13/2/2006
Mahler segundo Bernstein
Lauro Machado Coelho

Bruno Walter, Otto Klemperer, Wilhelm Furtwängler; mais tarde Herbert von Karajan e sir Georg Solti – esses são os nomes que ocorrem, entre os grandes maestros que, desde a virada dos anos 50-60, se empenharam na missão de fazer descobrir e assimilar o legado sinfônico de Gustav Mahler.

Porém, para o processo de revelação desse compositor – fundamental para o desenvolvimento da sinfonia pós-romântica; elo essencial entre o século XIX e a modernidade – uma das contribuições mais significativas é a de Leonard Bernstein, figura singular de maestro, compositor, ensaísta, pedagogo, animador cultural. Testemunho do gênio desse grande artista americano, e de sua afinidade instintiva com o universo sinfônico mahleriano, é a monumental Bernstein/Mahler: The Symphonies and Das Lied von der Erde, caixa com nove DVDs, lançada pela Deutsche Grammophon, que acaba de chegar às nossas lojas.

A coleção reúne as gravações ao vivo das nove sinfonias e do Canto da Terra, feitas, entre 1972-76, para a Unitel, com a Filarmônica de Viena, a Sinfônica de Londres e a Filarmônica de Israel. Coroam esse ciclo extraordinário, três documentários dirigidos por Humphrey Burton e Tony Palmer, contendo ensaios da Quinta e da Nona com a Filarmônica de Viena, e do Canto da Terra com a Filarmônica de Israel, e os solistas Christa Ludwig e René Kollo.

Data fundamental para a história da redescoberta de Mahler foi 7 de fevereiro de 1960. É o dia do concerto-conferência “Quem é Gustav Mahler?”, que o jovem Bernstein regeu com a Filarmônica de Nova York, dentro da série didática Young People’s Concert, transmitida pelo rádio para todo país. Esse programa, que é um marco no despertar da atenção do público americano para esse grande mestre, coincidiu com a comemoração do centenário da Filarmônica, entre janeiro e abril de 1960. Dentro da retrospectiva do repertório da orquestra, que Bernstein, Dmitri Mitropoulos e Bruno Walter estavam organizando, a obra de Mahler teve papel de destaque.

As gravações de Mahler que Bernstein fez, nessa fase, com a PhNY, revelam-no como um intérprete extremamente individual dessa música, muito diferente dos veteranos Walter ou Klemperer. Não só pelo seu virtuosismo instrumental (“cada um dos músicos, até mesmo a última estante dos segundos violinos, tem de ser um solista muito hábil para tocar Mahler”, diz ele no filme de Burton)— um virtuosismo polêmico, para alguns mahlerianos mais ortodoxos, devido a seus extremos de andamento e dinâmica. Mas que é sempre fascinante, pelos achados que ele propõe, pela identificação que evidencia, em níveis muito profundos, com o universo do compositor.

Isso está claro desde a sua primeira gravação da Sinfonia nº 1, em que a idealização da natureza, a ingenuidade das sonoridades infantis, a onipresença da morte, a transcendência da salvação são elementos com que ele sabe trabalhar, de forma a equilibrar construção e liberdade, poesia intensa e rigor. O que a série filmada da década de 70 mostra também, se comparada tanto às primeiras gravações de estúdio dos anos 60 quanto às versões ao vivo, da década de 80, com a Concertgebouw de Amsterdam, é que o Mahler de Bernstein amadureceu constantemente, ganhou em refinamento, profundidade de reflexão, maestria no controle das expansões emocionais, e coesão formal.

Ouçam e vejam a extraordinária Titã de outubro de 1974, no Wiener Konzerthaus, pórtico ao monumento que é a sua integral mahleriana. Já aí Bernstein deixa clara a sua identificação – até mesmo física, gestual, pois ele faz música com o corpo todo – com determinados elementos que, de uma maneira ou de outra, vão percorrer toda a obra sinfônica do compositor: os sussurros da natureza, no início do primeiro movimento; a ameaça da morte, na marcha fúnebre grotescamente deformada pelo contraponto do cânon infantil Frère Jacques, no terceiro movimento; as trombetas apocalípticas que, no último movimento – um dos mais eletrizantes de toda a discografia mahleriana – conduzem triunfalmente, após a morte, à salvação, simbolizada pela citação dos temas do Santo Graal, no Parsifal, de Wagner, e o do “Aleluia”, no Messias, de Haendel.

Observem, ao longo da experiência absorvente de assistir, um a um, a esses concertos, como esses temas são retomados e desenvolvidos. Na nº 2, a Ressurreição, uma das mais belas realizações da série, filmada dentro da catedral de Ely, em Edimburgo, uma leitura a que Janet Baker e Sheila Armstrong dão um brilho vocal incomparável. Na intensa espiritualidade da nº 3, que encontra em Christa Ludwig uma de suas maiores intérpretes. Ou na inocência e juventude da nº 4, cuja “Felicidade no Céu” a soprano Edith Mathis realiza com extraordinário frescor.

A tragédia crescente da nº 5 e da nº 6; os contrastes de colorido e os bem controlados arroubos românticos da nº 7, em que a visão pouco convencional de Bernstein é particularmente convincente; as explosões de entusiasmo e os grandes gestos retóricos do Veni Creator Spiritus, na primeira parte da nº 8 dos Mil, contraposta à concentração mística da segunda, sobre a cena final do Fausto – é difícil dizer o que mais impressiona nesse lento mergulho nos recessos mahlerianos. A que um encerramento de tirar o fôlego é trazido pela leitura da Nona, tensa, enfatizando de forma particular a vertente violenta do Rondó-Burleske, mas com um adágio final carregado de profunda humanidade.

Mas o disco mais fascinante, por nos revelar, de corpo inteiro, o homem e a sua relação íntima com a música, é o último: Mahler Rehearsals. São, como foi dito, três iluminadores documentários, rodados por Humphrey Burton e Tony Palmer, ao longo dos cinco anos que durou o projeto de filmagem da integral: Leonard Bernstein Ensaia Gustav Mahler, com trechos da preparação da Quinta e da Nona; Quatro Maneiras de Dizer Adeus, em que Bernstein, ao mesmo tempo que ensaia, analisa os significados mais profundos da última sinfonia; e A Canção da Terra: uma Introdução Pessoal.

Esses três filmes desmontam a máquina do concerto, para mostrar suas engrenagens internas, o processo apaixonante de tirar a orquestra do chão e fazê-la voar. Vemos, neles, o regente persuasivo, que leva uma a princípio relutante Filarmônica de Viena a entender, e aceitar com entusiasmo, o que ele pretende com seus tempos não-convencionais. O artista de senso teatral inegável em cada um de seus gestos, que desenham a música no ar; e cujo envolvimento físico e espiritual com ela é de tal ordem que, no final do adagio da Nona, ele está literalmente destroçado, possuído pela devastadora emoção dessa despedida à vida. O ensaiador que enfrenta as objeções de uma grande solista – a meio-soprano Christa Ludwig –, quando ela lhe diz que não consegue cantar um dos lieder do Canto da Terra na velocidade que ele deseja, dizendo-lhe, candidamente: “Mas, nesta passagem, ninguém entende mesmo o texto”.

Temos, principalmente, um encontro cara a cara com Lennie Bernstein, o grande conferencista, que – envolto em nuvens de fumaça dos cigarros responsáveis pelo enfisema de que ele morreu, em outubro de 1990 –, diante de uma câmara imóvel, guia-nos pelos meandros simbólicos da originalíssima sinfonia-ciclo de canções que é o Canto da Terra, modelo, no futuro, para obras tão diversas quanto a Sinfonia Lírica, de Zemlinsky, ou a Sinfonia nº 14, de Shostakóvitch.

A última série de sinfonias de Mahler, revisitadas por Bernstein na década de 80, na fase final de sua carreira, mostra-nos o universo mahleriano assimilado por completo, de forma muito profunda. Mas num certo sentido – e não apenas porque aqui temos a imagem, podemos ouvi-lo, mas também vê-lo, de perto, como se estivéssemos sentados diante do pódio e fizéssemos parte da orquestra –, esta série intermediária, da década de 70, nos traz uma experiência insubstituível.

Porque ela ainda preserva muito da irresistível e frenética energia do regente jovem que, em seus primeiros contatos com Mahler, não hesitava em ser iconoclasta. Mas porque, agora, esse vigor já está domado pela maturidade da vivência de um homem que, por trás da explosão dionisíaca, percebeu e incorporou o rigor olímpico da estrutura – aquele dualismo permanente de que ele mesmo fala, nas suas análises da música de Mahler.

Um equilíbrio, uma mistura exata de inteligência e emoção, que justifica as palavras de Christa Ludwig, referindo-se à gravação que fez com ele do Canto da Terra: “Cantei essa peça com Solti, Klemperer e Karajan, e foram sempre interpretações memoráveis. Mas só com Bernstein essa música me fez derramar lágrimas”.

Lauro Machado Coelho
São Paulo, 13/2/2006

 

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