|
Segunda-feira, 20/3/2006 O código dos gênios Luís Antônio Giron A noção de gênio sempre me soou bastante ultrapassada. E com a virada do milênio, então, ela já decorava o meu museu de cera particular. O domínio da ciência e da tecnologia, com toda sua autoridade e resultados efetivos como a decodificação do DNA, me levaram no passado recente a pensar que em breve será descoberto o segredo das mentes brilhantes e suas obras magníficas. A realidade é bem outra. À medida que o novo século foi se definindo e agora completando o seu primeiro lustro, estou me dando conta de que não acredito nos gênios, mas que eles existem, existem. Chego a pensar que talvez a ciência jamais venha a descobrir o código dos talentos de William Shakespeare (dramaturgo), Fídias (escultor), Da Vinci (pintor) e tantos outros poderosos artistas que alteraram a história com suas obras, invenções e descobertas. Gênios, afinal de contas, são um mito necessário? O tiro de misericórdia em meu ceticismo foi dado pelo ensaio Machado de Assis, Um Gênio Brasileiro, do jornalista Daniel Piza (2005, Imprensa Oficial, 380 págs.). O novo livro de Piza não é apenas uma das mais importantes biografias literárias lançadas no ano passado. Ele traz uma contribuição essencial para a já imensa bibliografia machadiana. Diferentemente do mar de textos semi-anedóticos ou pseudo-sociológicos, Piza persegue a trajetória do escritor Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) sob uma perspectiva renovadora. Em vez de separar vida e obra, o ensaísta costura os fatos da existência do autor com seus textos. Com isso, o ensaísta capta o movimento vital e criativo de um escritor que reformulou o conto, o romance e a crônica brasileiras a partir do cruzamento da sátira setecentista, a novela picaresca e o romance psicológico. Mergulhado em seu tempo, Machado de Assis construiu a literatura do futuro, estabelecendo um modelo de estilo elíptico, ou como diziam os seus sucessores modernistas, "estilo telegráfico". Mais do que isso, o livro mostra como Machado captou a mascarada da sociedade de seu tempo. E aqui é possível vislumbrar o gênio: o homem que funda uma nova série de textos, numa proliferação infinita. O gênio brasileiro, então, é um horizonte possível. A questão do gênio não é o objeto do estudo de Piza, mas convém abordá-la tanto porque de alguma forma ela determina seu estudo sobre o "bruxo do Cosme Velho", como também é importante para que a gente entenda por que a tal noção de genialidade ficou ultrapassada e agora retorna com força total. Ora, esse revisionismo do conceito se deu em 2002 com o livro do crítico americano Harold Bloom, intitulado Gênio: Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura (2003, Objetiva, 832 págs.). O crítico inclui Machado de Assis como gênio universal – e este fato só reforça a abordagem de Daniel Piza –, afirmando que a genialidade do autor carioca está em manter o interesse do leitor, endereçar-se na narrativa diretamente a ele e, por fim, não capitular ao estilo realista. É o nosso romancista filosófico de fato e de direito. O favorito de Bloom é Memórias Póstumas de Brás Cubas que, segundo ele, "tornam o esquecimento singularmente divertido”. Mais do que isso, para sustentar seus argumentos, Bloom contribuiu para a releitura do gênio. Esta categoria, apesar de desmoralizada pelas ondas cientificistas que devastaram a cultura nos últimos tempos, continua sendo importante, por mais que tenhamos inveja dos gênios ou vergonha do subconceito a que lançamos mão para justificar nossa admiração. Gênios, ressalta Bloom, não são matéria de escolhas pessoais. Eles se impõe à história e à posteridade, mesmo que um ou outro leitor os considere menores ou estranhos. Diz Bloom: "Não podemos enfrentar o século XXI sem esperar que ele nos traga um Stravinski ou um Louis Armstrong, um Picasso ou um Matisse, um Proust ou um James Joyce. Desejar um Dante, ou um Shakespeare, um J. S. Bach ou um Mozart, um Michelângelo ou um Leonardo é pedir demais, de vez que talentos de tal magnitude são muito raros. Contudo, se desejamos, necessitamos de algo que esteja acima do século XXI, seja lá o que for". Bloom rejeita a ideologia pós-moderna, que prega a "morte do autor", e faz a apologia de pessoas extraordinárias. O gênio seria o lado estético da necessidade que todos têm da transcendência. Gênio é um conceito romano, conforme apontou Hannah Arendt, e tinha fundo religioso e metafísico. Só ganhou força teórica nos espasmos finais do século XVIII, quando o filósofo Immanuel Kant sintetizou-o no ensaio Da Arte e do Gênio, de 1790. Segundo o pensador, gênio seria a capacidade de exprimir o indizível em conceito e inaugurar uma regra a partir do "jogo transitório da imaginação". Com isso teria um efeito duradouro sobre a arte vindoura. O poeta alemão Goethe, outro gênio coroado, dá um toque mais romântico ao conceito e se baseia no compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart para desenvolver um formato novo de gênio considerando a lição de Kant. Diz Goethe, em conversa com Johann Eckermann, em 1828, que Mozart é o gênio contemporâneo, dada a crescente escassez de novos Rafaéis e Fídias no panorama artístico. "Todas as obras de Mozart são dotadas desse poder de produzir façanhas que se tornam duradouras e alimentam a posteridade", declarou Goethe. É quase um atleta olímpico da grande arte, um músico que não pode ser superado. Mozart fundou a genealogia dos artistas invencíveis – e nela, ainda bem, está o nosso Machado de Assis. Se os gênios insistem em existir, apesar da refutação racionalista, eles igualmente provocam no comum dos mortais o sentimento de inveja. Veja-se o caso do citado Mozart (1756-1791), cujos 250 anos de nascimento são comemorados em 2006. Ele morreu pensando que havia sido envenenado por um invejoso de seu talento, Antonio Salieri. O boato chegou aos ouvidos deste último, que morreu louco num hospício vienense em 1825, atormentado pela maldição de Mozart, e negando que houvesse assassinado um escolhido de Deus, Amadeus. Tudo se revelou boataria e lenda, que o filme Amadeus (1984), de Milos Forman, soube explorar tão bem. Os gênios dão a deixa para outras obras literárias. Basta ver o que fizeram com Leonardo Da Vinci e o próprio Mozart. É curioso que, na época da morte de Mozart, um certo compositor tenha feito uma ironia significativa. Segundo ele, caso Mozart continuasse vivo e a fazer novos progressos em sua arte, todos os compositores perderiam o emprego, pois não resistiriam à comparação. Os que sobreviveram a William Shakespeare também pensaram assim. E o mesmo podemos dizer de Machado de Assis. Se ele tivesse vivido mais que seus 69 anos, seus sucessores teriam sido anulados e talvez nem mesmo teria havido espaço para um Lima Barreto ou Oswald de Andrade. Os gênios precisam morrer para semear a posteridade. Embora eu não acredite totalmente neles, eles existem. Meu paradoxo deve ser resultado da inveja… Uma inveja positiva, devo dizer, porque ela impele a gente a avançar. Os gênios são capazes de reciclar aquilo que estava ultrapassado. Evocando o achado de Daniel Piza no seu denso e saboroso ensaio sobre Machado: "Quase cem anos depois sua obra continua a ser interpretada de todas as maneiras, nenhuma delas suficiente. É a marca do gênio". É a marca dos gênios, corroborada por uma frase célebre do poeta (genial) William Blake: "O gênio está sempre acima da era em que vive". O código dos gênios é ainda um mistério. A gente não consegue mesmo esgotar o assunto… Melhor continuar a ler Machado e a ouvir Mozart. Talvez um dia a gente chegue lá. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente em dezembro de 2005 na revista eletrônica da AOL. Luís Antônio Giron |
|
|