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Segunda-feira, 27/3/2006
Lula e a imprensa
Mario Sergio Conti

Quando o governo vai mal, e cai a sua popularidade, há sempre alguém à esquerda do príncipe que surge com a tese de que a culpa é da imprensa. Argumenta-se que a imprensa, na sua má vontade, reflete os interesses contrariados pelo governo. A conclusão lógica é o governo criar ou reforçar mecanismos próprios de divulgação dos seus feitos, deixando os jornalistas em segundo plano. O governo deve fazer mais propaganda. Como as peças publicitárias governamentais são veiculadas em jornais, no rádio, na televisão e em revistas, o conselheiro do príncipe que começou atacando a imprensa na prática termina por beneficiá-la da maneira mais direta possível: carreando verbas públicas para empresas privadas de comunicação.

À direita do príncipe, surge então um argumento oposto. O governo vai mal porque se comunica mal. É necessário mudar a "estratégia" de comunicação. A patranha consiste em aproximar o príncipe de determinados jornalistas e órgãos de imprensa (os de maior prestígio e audiência), em descarregar verbas publicitárias em veículos selecionados (os mais vulneráveis economicamente, e portanto dóceis ao governo) e em incrementar a presença institucional do governante – por meio de entrevistas coletivas. Também nessa alternativa a imprensa sai ganhando. Uns órgãos terão mais verbas. Outros, mais príncipe.

Desde que a crise política estourou, o governo Lula fez atabalhoadamente todos os movimentos possíveis em matéria de manipulação de verbas publicitárias e de aproximação do príncipe da imprensa. Nada deu certo.

Nem por isso o governo Lula deixa de inovar. A Secretaria de Comunicação Social tem um funcionário que se dedica a esmiuçar diariamente o que sai na imprensa. O funcionário é o jornalista Bernardo Kucinski, professor licenciado da Universidade de São Paulo. Todas as manhãs ele entrega um relatório sobre o assunto ao presidente, que o repassa a uma meia dúzia de ministros e assessores próximos.

Pois Kucinski concedeu uma entrevista à Agência Repórter Social na qual reconhece o seguinte: "Fundamentalmente, o nosso governo não foi capaz de mudar o País como prometeu". E complementa: "Mudar para sentir que estamos caminhando para alguma coisa, você não muda de um dia para outro, mas você cria o sentimento da mudança, e esse sentimento não foi criado". Eis, enfim, alguém no Planalto que flagra o problema central do governo Lula: ele não cumpriu a promessa de mudar o País.

Kucinski não analisa o problema que ele mesmo enuncia lisamente. Em vez disso, assume o papel de conselheiro de comunicações do príncipe. Como de praxe, ataca repórteres, colunistas, diretores de órgãos de imprensa (que insistem em não reconhecer que "o governo Lula tem muita coisa boa"). Também nos conformes é a defesa da "comunicação institucional" (como se a enxurrada de entrevistas coletivas de Lula nos últimos tempos tivesse surtido efeito). Bernardo Kucinski faz afirmações que, pelo tom peremptório ("os jornalistas não aceitam um líder político que não tenha diploma", "os jornalistas não têm respeito com a pessoa do Lula"), podem passar por verdades absolutas. Na verdade, são apenas impressões.

Minhas impressões são outras. Nas redações que freqüentei ao longo das últimas três décadas, o que vi foi simpatia por Lula. Por três motivos. Primeiro, ele simbolizava aquilo que Kucinski chama de "sentimento de mudança". Em segundo lugar, ao contrário do político-padrão, no qual o cálculo e a defesa do interesse próprio são disfarçados com marquetices ou lengalenga patriótica, Lula era franco e objetivo, dizia o que pensava. Por fim, o homem é brasileiramente afável: faz piada, trata o jornalista com cordialidade.

O que Lula nunca teve foi a matreirice das velhas raposas, aqueles políticos que passam pistas de matérias e, em determinado dia, telefonam para contar uma notícia exclusiva. Em compensação, quando confiava num jornalista, Lula lhe dava acesso quase irrestrito.

Um exemplo. Passei dois anos, no final da década de 90, tentando entrevistar Lula para um livro que preparava sobre as relações de Fernando Collor com a imprensa. Queria que ele contasse a campanha presidencial de 1989. Achei que seria fácil, já que, durante os sete anos que dirigi Veja, nunca tivemos um atrito. Ele se recusou, alegando que não queria rememorar fatos que lhe eram dolorosos: a questão da sua ex-mulher, que Chico Santa Rita, o marqueteiro de Collor, levou ao ar na propaganda eleitoral para acusá-lo de forçá-la a fazer um aborto. Três amigos tentaram convencê-lo a mudar de idéia e não conseguiram: o jornalista Ricardo Kotscho, o escritor Frei Betto e José Américo Dias, então seu assessor de imprensa.

Dois meses depois da publicação do livro, Notícias do Planalto, Lula me convidou para um jantar, em companhia de José Américo Dias, hoje vereador pelo PT em São Paulo. Disse que, nas partes em que tratava dele, o livro era correto. (Entre parênteses: pelos comentários que fez, Lula demonstrou que tinha lido o livro, o que põe por terra a lenda, impregnada de preconceito e má-fé, de que ele não sabe ler.) No fim do jantar, perguntou no que poderia ajudar-me. Pedi-lhe que me desse acesso e notícias.

Acesso ele sempre deu. Permitiu que, para fazer uma reportagem, eu o acompanhasse durante uma semana de viagem na campanha municipal de 2001. Nos aviões, Lula passava a maior parte do tempo lendo jornais – as páginas de política e esporte, de cabo a rabo, e nas outras uma olhada por cima. "Se tivesse tempo, gastaria umas três horas por dia lendo um monte de jornais", afirmou. Do que não gostava era da fofocaiada e de manipulação. Deu como exemplo a coluna Painel, da Folha de S.Paulo. "Para muitos petistas, o Painel é o instrumento para eles mentirem e falarem mal uns dos outros; isso eu não faço."

Depois de eleito, Lula continuou a dar acesso a jornalistas que conhecia, confiava e/ou representavam órgãos de imprensa importantes. Na sua primeira viagem a Paris como presidente, ele e seu então assessor, Ricardo Kotscho, permitiram que Reali Jr., do Estadão, Merval Pereira, de O Globo, Clovis Rossi, da Folha, e eu, da Rede Bandeirantes, participássemos do coquetel que ofereceu para dirigentes do Partido Socialista – enquanto dezenas de colegas foram impedidos de entrar.

A situação só mudou com a explosão da crise. Em julho, Lula foi novamente a Paris. Recusou-se a falar com todos os jornalistas, inclusive os franceses. Em compensação, aceitou que se armasse uma entrevista com uma desconhecida, que não é jornalista nem no Brasil nem na França, para afirmar que o PT faz como todos os partidos brasileiros quando recorre ao caixa dois.

Essas historinhas demonstram que Lula entende perfeitamente o papel dos jornalistas. Um entendimento maior do que é a imprensa que o de Bernardo Kucinski. O que ele não tem é a avaliação política de Kucinski, a de que seu governo não foi capaz de cumprir o prometido: começar a mudar o Brasil.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no suplemento “Aliás”, de O Estado de São Paulo, em 15 de janeiro de 2006. Mario Sergio Conti é jornalista. Foi diretor de redação da revista Veja e do Jornal do Brasil. É autor do livro Notícias do Planalto.

Mario Sergio Conti
São Paulo, 27/3/2006

 

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