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Segunda-feira, 8/5/2006 Volpi, Beckett e Mendes da Rocha Daniel Piza Bandeirinhas, de Alfredo Volpi Fui ao Parque do Ibirapuera, há algumas semanas, ver a exposição de Volpi no MAM. Como previsto, estava quase vazia, exceto pelos habituais grupos de escolares, deficientes ou aposentados. Deveria estar bem mais cheia. Mas não nego que ficar quase sozinho com 134 pinturas de um artista como ele, numa manhã ensolarada do outono paulistano, é um baita prazer. A montagem é linda e, coisa rara hoje em dia, está a serviço das obras; a iluminação encontrou bom termo entre a luz solar, que banha de tons alaranjados a parede de vidro, e a artificial. Como Volpi requer, pois suas cores não precisam nem de reforço nem de contraste – tanto que dispensam molduras –, a atmosfera está limpa e amena. As salas não são fechadas, e há o devido espaço entre as telas e para a circulação. Logo o discreto dá lugar ao emocionante. Na marquise de fora do museu, foram penduradas bandeirinhas de festa junina, de várias cores, para convidar as pessoas a voltar a Volpi. Consta que ele se encantou com a festa quando a viu pela primeira vez em Mogi, a tal ponto que seria ironizado por um invejoso Di Cavalcanti como “o pintor das bandeirinhas” (o pintor das mulatas foi obrigado a dividir prêmio com ele na Bienal de 1954), e o momento coincidiu com a fase em que sua pintura entrava no auge, consciente como nunca de suas questões. A exposição, que tem cerca de 30 telas inéditas, é importante porque, depois de todo o trabalho de organização e autenticação das obras de Volpi, deixa claros os caminhos que seu estilo percorreu. Vemos, por exemplo, como ele gradualmente passou de um pintor figurativo limitado, quase ingênuo, do Grupo Santa Helena, para a condição de artista moderno e independente como poucos no Brasil. Do casario de Itanhaém, em especial, vemos como ele foi derivando seu gosto por fachadas, em ângulos chapados e enquadramentos cortados, até que a geometria se tornou uma preocupação fundamental. Como todo grande artista que viria a ter fase abstrata – ainda que nunca plenamente abstrata –, Volpi encontrou sua sintaxe e seu ritmo gráfico a partir de elementos da realidade exterior. Suas bandeirinhas são como as cruzinhas de Mondrian, as garrafas de Morandi ou os carretéis de Iberê Camargo; há uma razão não apenas visual para que tenham sido eleitas como seu motivo recorrente. São expressões de um contentamento simples, sereno, de uma leveza descompromissada. Volpi não faz o proselitismo da alegria tropical, da espontaneidade dionisíaca; neste aspecto, está mais próximo de um bem-estar de Matisse ou Pancetti. Não entendo, porém, que o queiram converter num artista “apolíneo”, interessado acima de tudo nas questões técnicas, como se lê na exposição e em tantos livros. É verdade que ela tem o cuidado de dissociar Volpi do concretismo e do construtivismo em geral, pois sua pintura não tinha uma proposta industrial, programática. Ele, como o poeta João Cabral, não opunha construção à expressão; procurava nova combinatória entre ambas. Seu rigor não só não excluiu o lirismo, como também o reinventou. Mesmo quando sua pintura se aproxima perigosamente do repetitivo e do decorativo, dispondo os signos de forma quase eqüidistante e “ortogonal”, como diz o título de uma delas, ele quase nunca usou régua para desenhar seus contornos. Mais importante, nunca abandonou a têmpera, que mesclava com ovo e que lhe permitia uma textura irregular, na qual vemos as pinceladas em geral horizontais, e um certo rebaixamento na vivacidade das cores. Jamais deixou o artesanal. É claro que seus temas se repetem porque representam problemas que sua técnica tenta resolver. As bandeirinhas, assim como as janelas ogivais de uma arquitetura de singeleza colonial, trazem sempre a intromissão da diagonal, a qual usa não para perspectiva de profundidade, mas para sensação de movimento. É como se indicasse sua vibração; é como se Volpi pintasse o vento. Não por acaso suas melhores obras são as que combinam fachadas e bandeirinhas, entre meados dos anos 50 e dos anos 60, com predomínio do azul lazúli ou do vermelho terroso. Numa delas, vai ao limite da estilização: duas colunas, uma laranja e a outra vermelha, sugerem uma fachada (seriam portas ou janelas), enquanto duas bandeirinhas flutuam no azul como se tivessem nostalgia do mar. Seguidores de Volpi, a propósito, buscam esse mesmo efeito e esquecem que para ele não se tratava de uma redução minimalista, de um jogo modulatório, e sim de todo um repertório de vivências explicitado sem medo. Volpi foi um artista afirmativo, inclassificável, e queria uma pintura que representasse aspectos da realidade, não da linguagem em si. Nada tinha a ver com essa pintura retraída, quase muda, de alguns dos melhores pintores brasileiros da atualidade. Acompanhando suas fases, suas idas e vindas entre figuração e abstração, bem como seus altos e baixos, vemos alguém que extrai prazer do mundo, não pureza ou dogma, e que se concentra em sua estética, não em pregar ou chocar. É como um cronista, tirando grandeza da arte “menor”, e lembrando a gente de que muitas vezes a satisfação está em caminhar por um parque, deter o olhar numa coisa bela e agradecer à estação por sua brisa. Rodapé No centenário de Beckett, não li ninguém dizendo o óbvio: que ele não é Joyce, não é Proust, não é Kafka, não é Eliot; não é, enfim, dos maiores escritores do século 20. Que ele tenha esse status, e aparentemente tem, deve ter suas explicações, mas ele mesmo – como Borges, que se dizia antes leitor do que autor – seria o primeiro a desconfiar de tanta exaltação. O que acontece é que suas obras, principalmente Esperando Godot, têm um caráter tópico, redutível a emblema de um estado de espírito ou época (como o Pensador de Rodin, na verdade parte de uma obra maior), ainda que supostamente difícil de entender. Mas Beckett é muito interessante, e sua escrita vai muito além das repetições à la Gertrude Stein; tem até um humor cômico-sentimental que não combina com sua imagem de dramaturgo do desespero. Pelo mesmo motivo é curioso que, nas matérias brasileiras sobre a efeméride, se tenha falado tão pouco sobre a prosa de Beckett. Não me refiro apenas à trilogia Malone Morre, Molloy e O Inominável, mas a uma série de contos, esquetes e novelas que quase não tiveram tradução por aqui. (Beckett em inglês é mais musical que em francês: confira The Complete Short Prose, Grove Press.) Em histórias como "Primeiro Amor" e "O Fim", vemos que ele parte de cadências e temas de Joyce e aos poucos desenvolve seu estilo próprio, cada vez mais ziguezagueante e coloquial. Nos 13 Textos para Nada, ei-lo em sua essência, apontando “esta balbúrdia babélica de silêncio e palavras”, “esta coisa inominável que eu nomeio e nomeio e nunca canso”. O mesmo se encontra na série de oito Fizzles, termo que significa ao mesmo tempo “chiados” e “fiascos”. Sua palavra mais usada, aliás, é “murmúrio”, e suas cenas se constituem basicamente de pessoas que à beira-morte, abandonadas por Deus, sussurram e ouvem seus fantasmas. Uma nota ao passado, mais que um voto ao futuro. Brindes Para Paulo Mendes da Rocha, que ganhou o Pritzker, prêmio mais importante da arquitetura, o qual apenas Niemeyer havia recebido entre os brasileiros. Acho que nem sempre ele é feliz em seu estilo, como quando fugiu à habitual austeridade e fez aquele pórtico na Praça do Patriarca. Mas a adaptação da Pinacoteca, algumas casas, a Fiesp, a Forma e o Museu Brasileiro de Escultura – que tem sido tão mal-usado desde sua fundação – são marcos da cidade. Outro brinde é para Alex Atala, o chef do D.O.M., um inventor de combinações memoráveis, como a brandade de bacalhau com caldo de feijão. Seu restaurante é o 50º melhor do mundo, segundo a revista inglesa Restaurant. Mesmo que se saiba que os critérios favorecem sua mistura do nacional com o internacional – afinal existem dois ou três restaurantes do seu nível em São Paulo –, o que é relevante notar é que ele não usa ingredientes brasileiros só para propagandear, e sim para pesquisar novos sabores. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente na coluna “Sinopse”, do “Caderno2” do Estadão, a 16 de abril deste ano. Daniel Piza |
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