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Segunda-feira, 5/6/2006
De repente, a Argentina
Mauricio Pereira


Ilustração por Fernando de Almeida

Desde que o Corinthians contratou o argentino Tevez, o caráter argentino anda mais presente na minha cabeça. Tem um espírito deles que ficou mais consciente aqui pra mim.

Sempre eu achei estranho o tanto que o Brasil não cruza com os vizinhos. Eu até entendo que a Bahia ou a Amazônia ficam longe de Buenos Aires (até mesmo culturalmente, se a gente for pensar), mas pra a gente aqui do Sudeste e do Sul tem uma proximidade razoável. Mesmo assim, parece longe. Se você for ver, não tem TV nenhuma do Mercosul na grade da TV a cabo. Acho cruel. Do mesmo jeito, se eu estivesse em Roraima queria ter acesso às coisas da Venezuela, do Caribe. Sei lá: mera geografia, penso eu (desculpem eu estar raciocinando analógico num tempo tão on-line, tão sem-fronteiras: juro que não é preconceito nem saudosismo, só tou matutando).

De todo modo, eu queria falar da Argentina.

Foi o primeiro país que eu vi fora do Brasil, em 1972. Meu pai levou a gente. Depois fui mais umas várias vezes, dos mais diferentes jeitos, até de trem...

Um país estrangeiro, aqui do lado (tou em SP), Buenos Aires um lugar bem diferente, tinha metrô, e, se eu bem me lembro, em algum momento tinha democracia (porque nessa época a ditadura aqui tava no auge), eu lembro de ver muitos tipos de revistas de tendências diferentes na banca de jornal, coisa que no começo dos 70 não tava rolando aqui de jeito nenhum. Eles falando aquele espanhol meio italiano, paletós aos montes, sempre tratando a gente meio mal, num primeiro momento (até a conversa engatar, só depois de um tempo, quando dava tempo, é que começava a troca de figurinha).

E as trocas: uma vez que eu fui lá tava tocando muito Ney Matogrosso (“Bandido”), eles adoravam Toquinho e Vinícius, Gal, eu lembro de ouvir muita música brasileira lá. E, de vez em quando eles se queixando que a gente não ouvia nada argentino. Na música não tem jeito, a gente tem a auto-estima muito alta. Por outro lado, eu lembro também quando era adolescente de ver em entrevista o Piazzola se queixando que era mais compreendido no Brasil que na Argentina. Outra coisa da gente aqui com música é não ter medo do diferente (tou falando do povo, não das gravadoras...).

E era raro ter notícia deles nos anos 60/70. Alguma Mafalda chegou depois na minha mão (foi assim que eu aprendi um pouquinho de espanhol), algum tango em algum restaurante regional ou boate ou rádio AM de madrugada. Tinha também um tal de Trio Galleta (eu tinha o compacto “I’m so happy”).

Mas, principalmente era o futebol que me dava uma idéia, mesmo sendo criança, do que fosse a arte argentina (é bom lembrar que eu nasci muito depois do velho tango, e ainda era muito novo e alheio pra entender – ou gastar um tempo com – aquelas pirações do Borges, do Cortázar). Tinha uns tantos jogadores argentinos aqui, sempre muito especiais, se movendo noutra velocidade, noutra língua, noutro pathos. É, pathos. Porque o futebol tem pathos, e o argentino traz ele à flor-da-pele. Eu via aqueles jogadores muito branquinhos (negritude zero na pele e no espírito…) sempre com a bola grudada no pé, pensando curvilíneo, chutando curvilíneo, olhando curvilíneo, um certo garbo, uma certa indisciplina (não aquela que é irmã da violência, mas aquela que é irmã da arte, que por sua vez é irmã da agressividade, não daquela que é irmã da violência, mas daquela que é irmã da inquietude, do tesão, da criatividade, do amor pelo diferente, da curiosidade), tipo: ganhar é bom, mas se divertir é melhor... E o Corinthians não contratava estrangeiros, então ver um argentino jogar se enchia mais ainda de mística, porque jogavam em times cujo pathos eu não dominava... E também aquela coisa guerreira. Na escola os professores começavam a ensinar a gente que aqui nunca teve muita revolução, quase sempre as coisas se resolviam no conchavo, no gabinete, no café-com-leite. E eles sempre lá, na Plaza de Mayo, batendo panela, ou no Maracanã, chutando sem dó a nossa canela.

E em comum, tanto futebol, tanta ditadura, e os Estados Unidos sempre em algum lugar da História da gente. Da cabeça da gente (pro bem e pro mal).

Bom, o fato é que a Argentina sumiu da minha cabeça, sumiu da minha frente por muitos anos, também não fui mais lá. Só aparecia de vez em quando, futebol, o Galvão Bueno metendo o pau neles, ou então no noticiário por causa de alguma megacrise econômica em que eles chegavam ao fundo de algum poço.

Até que começou a chegar filme argentino aqui. Pombas, que cinema bárbaro eles fazem... Filmes maravilhosos com orçamento baixo, histórias fortes, atores fabulosos com cara de gente comum, imagens simples e surpreendentes: soco no estômago. Que nem poesia. Alguns desses filmes que passaram por aqui nos últimos anos me fizeram respirar melhor, oxigenam, espantam. O tanto que o futebol deles é curvilíneo e negaceante e enreda a gente, o cinema é direto, latino, sangrento (não o sangrento que é irmão da violência, mas o sangrento que quer dizer sangue quente nas veias, o coração se expressando sem muita frescura). E esse cinema que chega (pelo menos pra mim) passa a sensação de um povo se revendo: tomou porrada, embarcou em muita onda, entrou pelo cano, que se autoa-nalisa com algum humor e crueza, catando caco, mostrando coragem.

Enfim, o argentino baixinho do Corinthians e os poucos filmes que chegam aqui me fizeram abrir o olho pra a poesia do vizinho. Uma civilização diferente da gente (e põe diferente nisso), mas no mesmíssimo barco que a gente (e põe mesmo barco nisso).

Em suma, a gente tem assunto que não acaba mais...

Post Scriptum 1
Sobre pathos argentino, confiram no SporTV, sexta de noitão, o programa do Maradona La Noche del 10. Sem julgamento, só confiram: pathos...

Post Scriptum 2
Um belo site sobre cinema argentino que eu encontrei tentando descobrir mais sobre os atores, filmes, diretores, confere: Cinenacional.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no site Gafieiras.

Mauricio Pereira
São Paulo, 5/6/2006

 

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