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Segunda-feira, 21/8/2006 Páginas e mais páginas da vida Sérgio Augusto Novela de televisão é assim: começa com uma hora de atraso (faz tempo que a das oito só entra no ar às 21h) e o fio de sua meada está sempre disponível. A perda de alguns capítulos não afeta o seu acompanhamento, pois o domínio da “ars embromatoria” é um dos requisitos básicos do telenovelismo. E se a embromação não der conta do recado, ainda restam as sinopses disponíveis em jornais e na internet, de tal modo aperfeiçoadas que agora não só podemos saber tudo o que aconteceu nos capítulos perdidos mas também o que está por vir. Em Páginas da Vida, a novela das oito, Nanda (Fernanda Vasconcellos) teve um casal de gêmeos e morreu de parto. O filho (Fernando) nasceu “normal” e foi aceito pela avó, Marta (Lilia Cabral), que rejeitou a neta (Clara) com Síndrome de Dow, adotada por Helena (Regina Duarte), que, por sua vez, cairá nos braços de um médico infectologista recém-chegado da África (Marcos Paulo). Para os braços do viúvo Tide (Tarcísio Meira) é reservada uma artista plástica, interpretada por Sonia Braga. Silvio, o marido milico de Olivia encarnado por Edson Celulari, larga sua insaciável mulherzinha e “sai do armário”. O que acontece com a fogosa Carmen (Natália do Vale), nem o autor da novela, Manoel Carlos, sabe ao certo, mas eu adoraria que lhe coubesse um destaque compatível com o show que a bela e talentosa Natália vem dando desde o primeiro capítulo. Novela de televisão é assim: você fica longe delas anos a fio e, quando retoma contato, verifica que nenhuma evolução sofreram. Talvez seja demais pedir que elas evoluam, mas algumas, ainda que pequenas, mudanças em suas convenções narrativas já seriam um alívio. Menos previsíveis e mais impermeáveis a clichês, na certa ampliariam o seu espectro de telespectadores cativos. Mas como burlar as convenções de um gênero que deu (e continua dando) certo? Cadê disposição (ou coragem) para banir de vez com todos aqueles longos, langorosos e enfadonhos flashbacks, aquelas encheções de lingüiça, geralmente embaladas por musaks melosas e mais freqüentes ainda nos dias de baixa audiência, como sábados e feriados? Disposição até pode haver, por parte de um e outro autor, mas não lhes cabe impor limites à caitituagem dos temas musicais acertada com a Som Livre, que monopoliza o negócio das trilhas sonoras globais. Nesse pormenor, a liberdade do autor se restringe à escolha do repertório. E não são todos os novelistas que a ela têm direito. Manoel Carlos tem e dela costuma fazer bom uso. Todas as noites, Páginas da Vida já entra no ar fazendo 1 x 0, ao som de uma obra-prima, senão a obra-prima, de Tom Jobim, “Wave”, e um sortimento de imagens da zona sul do Rio que chegam a doer de tão bonitas. Manoel Carlos é um novelista singular. E não apenas por ser o mais francamente feminista da TV e por ter feito do Leblon o que Woody Allen fez de Manhattan: o seu “locus dramaticus” predileto. Sua fixação no nome Helena e seu xodó pelas atrizes Regina Duarte (já em sua quarta Helena) e Natália do Vale (encarnando mais uma mulher com fogo no rabo) pouco o distinguiriam, já que fixações, predileções e uma stock company de atores quase todos os novelistas da Globo têm. Mas sente-se, aqui e ali, que ele é mais letrado e piedoso (no sentido de ter mais compaixão pelos personagens) e bem menos suscetível ao facilitário maniqueísta que seus colegas de ofício. Seus personagens “negativos” não chegam a ser vilões genuínos, nem seus supostos anjos usam asas. Há um quê de bufônico nos primeiros, que lhes ameniza a vileza e os humaniza – sendo Marta e os cúpidos genros de Tide os exemplos mais ilustrativos dessa visão complacente do mundinho de invejas, injustiças e desleal concorrência em que vivemos. E o que o humor não abranda, a psicologia tenta justificar: Ana (Deborah Evelyn) e Sandra (Danielle Winits) são duas mulheres espiritualmente danificadas por frustrações com as quais não aprenderam a lidar. No caso de Ana, o sonho de uma carreira de bailarina, que ela transferiu para a filha, sem lhe medir as danosas conseqüências. No caso de Sandra, um Complexo de Cinderela que, se o autor ceder ao lugar-comum, será superado nos capítulos finais, embora Sandra não mereça tamanha colher-de-chá (e muito menos a turbinada e canastrona Danielle Winits). Conseguirá Maneco transgredir os chavões da espécie, as telenovelices de sempre? Difícil. O folhetim televisivo tem regras intocáveis, tabus dramatúrgicos e narrativos que, se profanados, também provocam erupções vulcânicas e furacões, não em ilhas dos mares do Sul, mas no ibope e na cúpula global. Daí as repetições e desdobramentos de situações e personagens ou “reencarnações”, para usar a expressão preferida por Jotabê Medeiros numa esclarecedora reportagem sobre a mesmice das novelas, publicada no caderno “TV&Lazer” de alguns domingos atrás. Se até em formas mais nobres de dramaturgia, como o cinema e o teatro, quase nada se perde, quase tudo se transforma, nas telenovelas, vassalas irrestritas dos índices de audiência e do merchandising, a reciclagem à Lavoisier tornou-se uma rotina compulsória. Até agora, a única novidade de Páginas da Vida revelou-se um tremendo bumerangue. Em seu afã realista, que a meu ver não combina com o estilo derramado do diretor Jayme Monjardim, Manoel Carlos inventou de reforçar cada capítulo com uma página da vida de “mulheres do povo”, apêndice mais redundante e populista do que propriamente enriquecedor, e que se revelou contraproducente antes mesmo de ir ao ar o polêmico depoimento daquela mulher de 68 anos que teve o primeiro orgasmo aos 45. Três dias antes, a audiência caíra 13,6% na hora do depoimento. A força da família, e não o sexo, é ou procura ser o grande tema de Páginas da Vida. A ênfase desmedida e, portanto, apelativa ao sexo (Olívia, a personagem de Ana Paula Arósio, parece uma gata no cio), deve ser, a meu ver, tributada à direção. Como é sabido, com o tempo, o “merchandising social” de Manoel Carlos começará a roer as páginas da vida como as traças, pelas beiradas. Problemas de alcoolismo (aos do Bira, o marido corneado de Carmen, se somam os do desencantado médico encarnado por Marcos Paulo), bulimia (a trágica conseqüência da repressiva educação imposta por Ana a Giselle) e a Síndrome de Down devem tornar-se mais relevantes e presentes que o furor uterino de Olívia, Sandra e Carmen. Se mal dosada, essa preponderância pode tornar a novela edificante, logo, um porre. Portanto, o mais difícil, para Maneco, ainda está por vir. Se Monjardim não contiver sua tendência a sublinhar o insublinhável e persistir em deixar sem freio suas atrizes mais exibicionistas e careteiras (Ana Paula, Danielle; Fernanda Vasconcellos morreu mas volta em flashbacks), o suflê desanda de vez. Mas há descompassos que só Manoel Carlos pode resolver. Por exemplo, reelaborar alguns personagens, para evitar que as personagens femininas continuem, em sua maioria, chatas e repressoras, e seus respectivos maridos, amantes, namorados ou pretendentes um bando de panacas e cretinos. Do contrário, Páginas da Vida terá de mudar seu título para Vida Apertada ou Pafúncio e Marocas. Suflê. Não mais do que isso é uma telenovela. Com ocasionais surtos de utilidade pública, é verdade, mas basicamente um suflê. Uns sobem mais do que outros; muitos acabam murchando. Bang-Bang, por exemplo, saiu do forno com a espessura de um brownie. Tentou ser diferente (mas desde Matar ou Correr e Pistoleiro Bossa-Nova que chanchadas ambientadas no velho Oeste não são novidades por estas bandas) e, por absoluta inépcia coletiva, foi um fiasco dos mais constrangedores da Globo, a ponto de afetar a audiência do Jornal Nacional. Transcender as limitações da novela não está ao alcance dos teledramaturgos em atividade, não porque lhes faltem a chispa e a imaginação necessárias, mas porque o peso do veículo e seus quase pétreos compromissos com a publicidade e a preguiça mental de sua clientela não lhes permitem vôos sequer medianamente ambiciosos. Avanços, só tecnológicos. Ainda não tomei coragem de verificar o quanto do talento de Bosco Brasil, autor de Novas Diretrizes em Tempo de Paz, uma das peças brasileiras mais brilhantes das últimas décadas, logrou interferir na telenovela Bicho do Mato, que entrou no ar na Record. O que Luiz Carlos Merten escreveu sobre os primeiros capítulos, no “TV&Lazer” de outra semana, não me animou. Não sei até quando terei ânimo para acompanhar, noite sim, noite não, as estripulias de Páginas da Vida. Se não me trai a memória, a última novela a que fui fiel do princípio ao fim (ou quase isso) foi Dancing Days. Acho que já dedico muito tempo a alguns seriados americanos (C.S.I., Law and Order S.V.U., House, Crossing Jordan, Monk), escapismo que não considero desperdício, pois realmente me divertem, relaxam e ensinam mais coisas (biologia, medicina legal, anatomia, direito, nanotecnologia e até espertos truques de roteiro) do que a maioria dos filmes produzidos por Hollywood. Detalhes fundamentais: duram apenas 44 minutos, contam uma história completa e, como cada episódio é repetido pelo menos três vezes na semana, nem a horários rígidos eles nos escravizam. Outro detalhe fundamental: seus produtores andam preocupados em aprimorar seus atrativos, melhorar-lhes o nível, torná-los mais criativos, inteligentes, com intrigas mais complicadas, cheias de personagens interagindo como num filme de Robert Altman. Se isso não é ir contra o ramerrão televisivo e a modorrenta sensibilidade das massas, podem me chamar de George Kaplan. A NBC prepara Kidnapped, em torno do seqüestro do filho adolescente de um casal rico de Manhattan, sem tentar “humanizar” a alta burguesia nova-iorquina. Em Vanished, a mulher de um senador desaparece e... (só a Fox sabe do resto). Nove pessoas que nunca se viram antes são interligadas para sempre por um rapto – eis o plot de The Nine, produção da ABC. Outros estranhos conectados pelo acaso em Nova York são os protagonistas de Six Degrees, também da ABC. Com Smith, a CBS entra na concorrência, oferecendo um festival de falcatruas em todos os cantos dos EUA, cometidas por um seleto grupo de gênios do crime. “Um intricado suspense pós-apocalíptico” é como a CBS descreve Jericho, telessérie naturalmente inspirada nas bíblicas muralhas de Jericó. A que se deve essa guinada pró-qualidade? Segundo consta, a pressões da internet. Cobranças nesse sentido têm congestionado a blogosfera. Sítios e mais sítios dedicados ao culto e à discussão de teledramas proliferam na grande infovia, como spams do bem. Quem sabe nossos novelistas não teriam um futuro mais promissor se as emissoras daqui deixassem de confiar única e cegamente nos índices de audiência e na bajulação das revistas e portais de fuxicos. Nota do Editor Texto gentilmente cedido (e atualizado) pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno2", de O Estado de S. Paulo, em julho de 2006. Sérgio Augusto |
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