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Segunda-feira, 4/9/2006 Se for viajar de navio... Campos de Carvalho Se você pretende viajar de navio para a Europa, compre hoje mesmo sua passagem de avião e agarre-se a ela com unhas e dentes. O avião ainda é o meio de transporte mais rápido, sobretudo se está caindo — o que maior conforto oferece, sobretudo à família. Sempre me diziam: "Vá de navio: é uma viagem inesquecível." Que é inesquecível eu sei agora melhor do que eles, e não pretendo esquecer nunca mais. Por via das dúvidas trouxe comigo alguns souvenirs: cinzeiros, baralhos, caixas de fósforos, toalhas, guardanapos, colchas, lençóis, cobertores, travesseiros, tapetes, facas, colheres, garfos, xícaras, pratos, um espelho de toalete, uma mesinha de cabeceira, a dentadura do comandante — em troca naturalmente dos três quilos e meio que perdi na viagem e lá ficaram no navio, por culpa exclusiva do cozinheiro de bordo. Que o miserável era o pior cozinheiro da Europa e ali estava justamente porque não o deixavam pisar em terra, ficou definitivamente provado no último dia de viagem, quando o navio se pôs a desenvolver uma velocidade só comparável à do Nautilus, o que foi logo atribuído a completo estado de inanição dos passageiros. Ao cruzar o Equador ofereceram, como de hábito, uma lauta refeição aos sobreviventes, como se costuma fazer com condenados à morte na véspera da execução — o que de certa forma permitiu que, tão logo Portugal despontou na linha do horizonte, todos se precipitassem para a proa do navio aos gritos de TERRA! TERRA! Mas a viagem começa naturalmente com você procurando onde fica o seu camarote, e você leva exatamente a metade da viagem procurando onde fica o seu camarote: são sete andares com 70 escadas e mais de 700 corredores: todos rigorosamente iguais e dando para 7.000 portas cuja única diferença são pequenos números cabalísticos, quase invisíveis. Afinal, depois de tomarem você por um clandestino — pois só um louco ou um clandestino poderia dormir na mesa de bilhar com uma bola por travesseiro — levam-no numa padiola para onde exatamente está o seu camarote e que você descobre no dia seguinte ficar exatamente onde fica o rabo do navio. (Na agência de viagem garantiram que você teria uma vista magnífica, mas queriam evidentemente referir-se à sua vista propriamente dita, incluindo a pupila direita e a esquerda, o cristalino, a córnea, a retina, a íris, o diafragma, o nervo óptico, as pálpebras, sem falar do seu par de óculos.) O máximo que você consegue ver através da vigia, quando não está ninguém do outro lado vigiando você, é um pedaço da chaminé e dois escaleres suspensos no espaço, a lembrar que a qualquer momento o navio pode ir para o fundo, o que não deixa de ser uma lembrança altamente confortadora. Aliás, logo após a partida, submetem os passageiros a um exercício simulado de salvamento, com apito, sinos, silvos, correria, desmaios, salva-vidas e o resto, mas tudo tão perfeito e tão bem encenado que dois navios e três torpedos vieram imediatamente em nosso auxílio. A primeira noite que você passa na sua cabine — assim chamada apesar de você mal caber nela — já é uma outra história. Deitado no beliche, mesmo porque não poderia estar sentado ainda que quisesse, você aos poucos vai se dando conta de que todos os barulhos do navio resolveram vir passar a noite em sua companhia, desde o motor da hélice situado exatamente debaixo da sua bunda até o mais ínfimo ruído do copo batendo no espelho do banheiro. Todos os objetos em redor da sua cama, mais as paredes, o teto, o chão, a porta, a maçaneta, as lâmpadas, os cabides, o guarda-roupa, as cortinas, a tampa da privada, o papel higiênico, sem falar naturalmente dos fantasmas — tudo junto e uníssono forma uma grande orquestra sinfônica de guinchos, rangidos, sopros, assovios, pancadas, soluços, suspiros, gemidos, reco-reco, pandeiro, tamborim, cuíca, frigideira e berimbau, no pior estilo da mais moderna música concreta ou eletrônica. Por mais admirador que você seja do som universal e experimental, e apesar de o navio jogar mais do que bêbado em noite de terremoto, você acaba mesmo é pulando da cama e passando o resto da noite a imaginar um meio de voltar imediatamente para os braços de sua mãe, nem que seja a nado. Mas nem tudo, afinal de contas, é choro e ranger de dentes numa viagem transatlântica. Há sempre uma piscina ou outra para os que ainda acham pouco toda aquela imensidão de mar em torno durante sete dias e sete noites (eu, de minha parte, já no segundo dia recusava delicadamente água às refeições) — e há os sempre excelentes filmes das Andrew Sisters ou dos Ritz Brothers, projetados numa tela da mesma época naturalmente para emprestar maior autenticidade. Há sobretudo os divertidíssimos jogos de salão, como a víspora, a amarelinha, a cabra-cega, por exemplo, bem como movimentada e tradicional dança da quadrilha, assim chamada no caso por nela tomar parte toda a tripulação, o cozinheiro inclusive. Como todos os passageiros, a começar por você, já se acham condicionados dos pés à cabeça pelos esplêndidos programas de televisão dos respectivos países, a alegria se torna logo esfuziante e total — e depois de certo tempo é com uma ponta de orgulho que todos se põem a relinchar e a trotar como no ano 2000. O resto da viagem deixo-o por conta da sua própria imaginação — mesmo porque já é tempo de que se ponha um pouco de fantasia neste relato que, por excesso de meu amor à verdade, acabou saindo assim tão realista e tão fotográfico. Nota do Editor Agradecimentos ao prefaciador do livro Antonio Prata; à dona Lígia de Carvalho, viúva do escritor; e à Editora Record, que autorizaram a reprodução do texto, originalmente publicado em Cartas de viagem e outras crônicas, de Campos de Carvalho. Livro que integra a coleção Sabor Literário, da Editora José Olympio, lançada neste ano. Campos de Carvalho |
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