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Segunda-feira, 20/11/2006
André Mehmari, um perfil
Daniel Piza


André Mehmari em clique de Gal Oppido

Faz quatro anos que André Mehmari se mudou para uma casa na Serra da Cantareira, num condomínio a 45 minutos do centro de São Paulo, em busca de silêncio para sua música. Já não dava para encontrar pausas nos ruídos de aviões e bares que cercavam seu apartamento em Moema. No trabalho de compor, arranjar e gravar melodias e harmonias, era cada vez mais difícil obter texturas, cuidar de minúcias, tocar várias vezes uma peça ou canção até encontrar suas sutilezas fundamentais. Era, em outras palavras, cada vez mais difícil para André Mehmari ser André Mehmari.

Não à toa, nestes últimos anos o músico nascido em 1977 em Niterói (RJ), onde ficou 6 meses antes de ser criado e educado em Ribeirão Preto (SP), conquistou independência em todos os sentidos. Sua agenda é a melhor tradução: no último fim de semana do mês passado ele e seu trio participaram do Tim Festival (sábado no Rio, na Marina da Glória; domingo em São Paulo, no Auditório do Ibirapuera) e neste mês ele teve uma série de eventos, como o lançamento do DVD com Ná Ozzetti e a estréia de composições para a Banda Sinfônica (o balé Atmosferas, com a companhia Cisne Negro), para o trio Opus Brasil (intituladas Choro Breve e Variações Villa-Lobos, sobre o tema da "Bachianas nº 7") e para a Orquestra de Câmara do Amazonas (Shostakovichiana).

Mehmari não veio para essa casa em busca de isolamento, pelo menos não no sentido romântico. Em estilo colonial ou “fazenda”, comprada do arquiteto que a construiu, ela tem pé direito alto, paredes de pedras e tijolos, vigas e forros de madeira – e esse conjunto de características significa uma excelente acústica. “É limpa e não é muito reverberante”, define Mehmari, apontando a seguir a ausência de paralelismos no ambiente, recortado por cômodos e um mezanino. No centro de tudo está o piano de cauda japonês, K. Kawai, o melhor que pôde comprar. Mehmari, que não esquece a sensação da primeira vez em que tocou no Steinway do Cultura Artística, em São Paulo, acha que faltam bons pianos nos teatros brasileiros e diz que boas acústicas, como a do Teatro São Pedro de Porto Alegre, também são raras.

Foi no Cultura Artística que Mehmari começou a ser conhecido em 1998, quando conquistou o prêmio Visa Eldorado sem nem ter completado 21 anos. No ano seguinte faria seu primeiro CD, Canto. Mas a relação dele com a música datava de muito tempo. Desde os 8 anos, quando decidiu estudar órgão eletrônico, instrumento então na moda, ele tocava todos os dias, muitas vezes ao lado da mãe, a acordeonista e cantora Cacilda Mehmari. Logo aprendeu outros instrumentos: piano, violão, viola, violino, flauta, clarinete – todos espalhados pelos ambientes da casa. Graças ao pai, comerciante de ferro, ganhou um estúdio só para seu aprendizado.

O menino prodígio, no entanto, nunca gostou muito do aspecto “atlético” da técnica – das extensas aulas, dos exercícios de escala, das repetições robóticas. Introspectivo, estudava sozinho e, aos 13 anos, chegou a criar um método pessoal para estudar piano a partir de peças de Béla Bartók. Na mesma idade, teve seu “estalo” – ao ouvir estalar o disco de vinil de Duke Ellington com Ella Fitzgerald. Mehmari, que até hoje conserva LPs de jazz, descobriu no gênero o que mais lhe interessa até hoje: o improviso. A combinação de espontaneidade com sofisticação o capturou. “Como uma esponja”, ele seguia tocando e ouvindo de tudo, mas agora com outro espírito. Também começou a compor; não tardou para que somasse 300 fitas K7 com obras suas.

Mesmo quando chegou à universidade, a USP, depois de se mudar para a capital, Mehmari não se interessou muito pela disciplina tradicional. Passava a maior parte do tempo na biblioteca consultando e emprestando partituras e gravações que examinava madrugada adentro na edícula onde morava na casa de parentes no bairro de Pinheiros. Pouco a pouco dominou o repertório de seus mestres eleitos: pianistas de jazz como Bill Evans e Keith Jarrett, mas também de música erudita como Maurizio Pollini e Alfred Brendel. Brahms se tornou seu ídolo maior – até o panteão ser dividido com Stravinsky – pelo retorno a Bach, ao nascimento do contraponto, à textura polifônica.

O compositor é que guiava o estudante: “As idéias musicais me pediam técnicas.” Ele reconhece ainda ter “lacunas” na formação técnica, mas não por acaso abre sorriso quando ouve falar da cena do documentário Nelson Freire, de João Moreira Salles, em que o grande pianista brasileiro “ídolo de todos nós” assiste a um vídeo do jazzista Erroll Garner tocando com um prazer que Freire diz invejar. “Sem espontaneidade, não acontece”, resume Mehmari. “Eu me divirto com rigor.” O rigor, o cuidado, o “polimento” – como nas numerosas caixinhas que coleciona em sua casa – vêm dos pianistas eruditos. Copiar Rubinstein executando as Baladas, opus 10 de Brahms foi a melhor universidade.

A MPB não era menos importante. Sua mãe, além de ter a voz parecida com a de Elis Regina, desde cedo o acostumara a ouvir Cartola, Tom Jobim, Chico Buarque (que considera subestimado como músico, em favor do letrista), Milton Nascimento, Edu Lobo – e seus primeiros duos de piano e voz foram com dona Cacilda. Cedo também descobriu Egberto Gismonti. Nos bares em que tocava na adolescência, como o Café com Jazz, em Ribeirão Preto, o repertório reunia Cole Porter, Gershwin e Ellington com MPB, o que se repetiria em São Paulo, na big band de Roberto Sion. Depois vieram as apresentações com Mônica Salmaso em bares como o extinto Supremo – do qual sente falta, devido à carência de lugares na cidade onde se possa tocar sem precisar disputar a atenção com barulhos de copos e risos. Tímido e convencional na aparência, Mehmari é o contrário do artista que faz “tipo”.

Em seguida, conheceu e trabalhou com maestros como Tuti Moreno e Gil Jardim, ganhou o Visa – mas ainda faltava algum tempo para atingir notas mais altas. Nesse período se sustentou fazendo trilhas de filmes publicitários, das quais cita a de um comercial do carro Mercedes Classe A. Ficou cada vez melhor nos arranjos, recusando sempre o excesso de “grooves”, de distorções eletrônicas que já estavam em voga. A partir de 2003, as coisas começaram a mudar. Mehmari gravou o belo CD Lachrimae, lançado no ano seguinte com distribuição pequena (Cavi Records), e colheu elogios dos entendidos. Ali já se encontra seu gosto pelo que chama de “arqueologia” da canção brasileira: ele escava artefatos de Caymmi, Jobim, Nelson Cavaquinho ou mesmo de compositores ativos como Guinga – e ele mesmo, autor de metade das 14 faixas do disco.

Em 2004 gravou seu terceiro disco autoral, Piano e Voz, com Ná Ozzetti, lançado no ano passado pela MCD, com bom retorno de crítica e público. As versões de "O Ciúme", de Caetano Veloso, "Rosa", de Pixinguinha, e "Felicidade", de Lupicínio Rodrigues, são achados reveladores e se casam muito bem com canções atuais, como sua própria "Eternamente", parceria com Rita Altério. O CD traz também releitura de "Because", de Lennon e McCartney – e os Beatles, por sinal, foram tema de outro CD seu, um dos projetos especiais que tem realizado.

Na apresentação do Tim Festival, o repertório seguiu essa linha, de “um tempo em que a MPB era realmente popular”, com Nelson Cavaquinho, Milton e Jobim. Tocou também três de sua autoria: "Eternamente", "Lachrimae" e "Veredas". (Este último título ecoa um de seus escritores prediletos, Guimarães Rosa; Mehmari leu Grande Sertão três vezes e batizou seu gato de Miguilim.) Diz que gosta de olhar para estilos como choro, valsinha e samba “não como objeto de museu”. Busca a origem de alguns no passado europeu justamente para acentuar, como Gismonti, os caminhos locais. Não sente a tradição “como peso”; à maneira de Stravinsky a respeito de sua Pulcinella cubista, declara ter “amor e não respeito” pela canção brasileira.

Ele também afirma que às vezes uma canção conhecida, um “standard”, é o que permite – como também demonstra Brad Mehldau, pianista de jazz de 36 anos que Mehmari admira por sua “inteligência” – levar a melodia para uma alta abstração, ainda que sem se afastar de sua essência, sem se entregar ao improviso narcisista. “Vou ao ponto zero da canção”, arremata. E isso pode ser que signifique recorrer a uma citação de Purcell no baixo de "Eu te Amo", de Buarque. Ou pensar em Beethoven diante dos “átomos musicais” de Caymmi.

Mas o cancionista não tomou lugar do jazzista e do erudito; todos convivem em Mehmari. Ele conta que as encomendas que têm recebido para grupos de câmara e orquestras – como a suíte apresentada no Festival de Inverno de Campos do Jordão e o quinteto para piano feito para o Quarteto de Cordas da cidade – são responsáveis por sua autonomia financeira. Admirador de Berio e Ligeti, mortos recentemente, Mehmari não vê fronteiras fechadas no condomínio da música. “Música não é apenas som, como pensam”, diz. “O som é o veículo dela. Música é distribuir o som no tempo. É parar o tempo.” Aqui em seu estúdio Monteverdi, na casa da Cantareira, ao lado do piano que contém “200 anos de informação musical”, ele pára.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na edição de 25 de outubro do "Caderno2", d'O Estado de S. Paulo.

Daniel Piza
São Paulo, 20/11/2006

 

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