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Segunda-feira, 19/2/2007
O pai e um violinista
Milton Hatoum


I

Há consolo no mundo que alivie a perda de um pai ou de uma mãe? No romance Paradiso, o escritor e poeta cubano José Lezama Lima diz que um ser humano só começa a envelhecer depois da morte de sua mãe. Freud atribui à morte do pai um dos grandes traumas para um(a) filho(a).

Quem já perdeu um pai sabe disso e sente essa ausência com pesar. Ausência é um vazio na vida. Aos poucos vem a lembrança de imagens e vozes que a língua portuguesa resume numa palavra intraduzível: saudade.

A amizade e a cumplicidade prevalecem sobre as discussões, discórdias e outras asperezas de uma relação às vezes complicada, mas sempre profunda. Às vezes você lamenta não ter conversado mais com o seu pai, não ter convivido mais tempo com ele. E essas lacunas se perdem para sempre. No outro lado do espelho não há mais nada, apenas silêncio e memórias.

II

Mas há também pais terríveis, opressores e tirânicos, e todos nós conhecemos alguns, na literatura e na vida. Carta ao pai, de Franz Kafka, é o exemplo mais cabal do pai castrador, que interfere nas relações amorosas e na profissão do filho. Um pai que não se conforma com um grão de felicidade do jovem Franz. A Carta é o inventário de uma vida infernal, na excelente tradução de Modesto Carone. Não se sabe – ninguém saberá – até que ponto o pai de Kafka invocado no livro é totalmente verdadeiro. Pode ser também uma construção ficcional. Ou uma mistura de ambas as coisas. Mas isso atenua o sofrimento do narrador? O leitor acredita na representação desse pai. Em cada página, o que prevalece é uma alternância de sofrimento e humilhação, imposta por um homem prepotente e autoritário.

III

Na minha juventude, conheci alguns pais demoníacos, que oprimiam seus filhos, pensando que os educavam. Na época em que estudava na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), o pai de um amigo me chamou para uma conversa formal.

O senhor pode adiantar o assunto?

Meu filho, respondeu.

Ele queria que eu convencesse o filho a abandonar a música para se tornar um grande arquiteto.

Argumentei que o meu amigo nunca ia ser arquiteto, nem grande nem pequeno. Ele tinha talento para música, ia abandonar a faculdade para ser violinista. Acrescentei que o meu caso era semelhante: eu estudava arquitetura para ter um diploma e, eventualmente, ganhar a vida como arquiteto.

Dois idiotas, você e meu filho, disse o pai. Vão morrer de fome.

Um artista da fome é o título de um outro grande relato de Kafka. Ainda vejo aquele pai enfurecido e atormentado que tentou por todos os meios sufocar o desejo e o talento de seu filho. Lembro que meu amigo rompeu com o seu pai e viajou para a Alemanha, onde tentou aprofundar seus estudos em música instrumental. Naquela época eu morava na França; quando soube que ele estava doente, fui visitá-lo. Para sobreviver, havia trabalhado com instalação hidráulica, pois era cobra nessa disciplina ministrada por um professor da Escola Politécnica que apavorava os estudantes da FAU.

Ganho dinheiro como operário, ele me disse. Mas tive que parar de trabalhar. Não tenho mais força...

E o teu pai, perguntei.

Não fala comigo há quatro anos.

Estava fraco e deprimido. Parecia a pessoa mais triste do mundo. Ele me deu a impressão de que não era um expatriado, e sim um exilado, um ser banido de seu país e de sua família. Falou no desejo de reconciliar-se com o pai e perguntou se eu poderia ajudá-lo.

Telefonei para São Paulo, ouvi um sermão e desliguei.

Meu amigo morreu ainda jovem, sem realizar o desejo de reconciliação com um homem que podia ser tudo, menos generoso.

IV

A vida é sempre mais complexa e imprevisível do que a literatura. O encontro aconteceu numa praça de São Paulo. Por ironia, eu passeava com o meu filho, que se afastou de mim e parou diante de um velho sentado num banco de madeira. Sozinho, entre uma estátua e um cachorro. Eu me aproximei e reconheci o pai do meu amigo. Já não era – nem podia ser – o homem intransigente e ríspido que eu tinha visto antes. Ele pôs a mão na cabeça da criança que o observava e demorou um ou dois minutos para reconhecer o pai do menino. Eu me lembrei da nossa conversa em algum dia de 1978. Quase ao mesmo tempo me lembrei do meu amigo, o violinista. Não sei o que aquele homem velho e abatido pensou enquanto me olhava. Nem soube decifrar no olhar o sentimento dele. Parecia um estranho.

De fato, éramos estranhos.

Fui embora de mãos dadas com a criança, pensando como a incompreensão ou a loucura de um pai pode abismar o destino de um filho.

Nunca mais voltei àquela praça.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Terra Magazine, em novembro de 2006.

Milton Hatoum
São Paulo, 19/2/2007

 

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