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Segunda-feira, 12/3/2007 Arquiteto de massas sonoras Luís Antônio Giron O compositor de vanguarda Iannis Xenakis morreu em 4 de março de 2001 sem que sua obra matemático-musical fosse compreendida. Aqui, um passeio através dela... A música sempre foi identificada à matemática. Até porque o pensador grego Pitágoras sistematizou ambas as disciplinas ao mesmo tempo ou, pelo menos, diz a tradição que isso foi assim, embora hoje existam fortes provas de que Pitágoras limitou-se a criar uma religião iniciática e nada tenha a ver com música e matemática. De qualquer modo, as noções de número e de nota nasceram juntas. A música chegou a fazer parte do quadrivium grego. Integrava, com a matemática, a física e a gramática, o sistema do conhecimento ocidental. Quem não soubesse contar, cantar, analisar e experimentar não atingia o status de bem educado. Com o tempo, a arte musical se desmembrou da ciência que a originou o sistema pitagórico e se tornou cada vez menos teórica. No século XX, o racionalismo formalista experimentou uma nova era. O dodecafonismo, o serialismo e a música eletro-acústica restituíram a credibilidade científica à música. É neste aspecto que a obra do compositor francês de ascendência grega Iannis Xenakis deve ser entendida. "Considero-me um grego clássico em pleno século XX", disse. Como um pensador helênico, Xenakis foi o compositor que mais se preocupou com a formalização da arte musical no século que passou. Produziu música extensivamente, mas a recepção desta foi quase nula em termos de entendimento. Suas composições foram acusadas de insensíveis. Por meio de declarações públicas e diversas obras teóricas, Xenakis tentou rebater a facilidade desse tipo de argumento, mostrando que sua inspiração era legítima e que ele ingressava na história da música para resolver a crise metodológica do serialismo (vide bula). Não conseguiu convencer o grande público e mesmo os meios acadêmicos não aderiram às idéias que formulou. Sua morte, aos 78 anos, em 4 de março de 2001 em seu apartamento em Paris, devido a uma parada cardíaca, reforçou o caráter secreto de um tipo de música que vincou o século XX. Passados tantos anos de seu desaparecimento, sua música não foi compreendida. Assim como o século XX, que acabou sem que as pessoas tivessem ouvido a música daquele século que se distancia de nós a passos largos. Xenakis reforçou o preconceito que muitos setores da cultura alimentam contra a chamada música de vanguarda. A "torre de marfim", onde se enfurnaram os compositores do século XX, causou a separação entre músico e público. "A serviço da música, como de toda atividade humana criadora, o pensamento científico e matemático deve se amalgamar diretamente com a intuição", escreveu no ensaio "Em direção a uma Metamúsica" ("Vers une Métamusique"), de 1967. Neste quadro, Xenakis ocupa o cômodo mais alto e inacessível da tal torre. Compreender a música (ou metamúsica) que deixou é, por isso, um desafio interessante. Será que ela se resume em puro número e não provoca nada além de interjeições teoréticas? O que permanece nela? Mesmo para um formalista, a vida pode explicar muita coisa. Xenakis foi um sujeito deslocado, tanto pela imigração quanto pelos ideais políticos. Nasceu em 29 de maio de 1922 em Braila, na Romênia. Desde cedo tomou contato com a música bizantina e com o folclore do Danúbio. A família regressou em 1932 para Atenas. Lá, Xenakis entrou para o curso de engenharia da escola politécnica. Paralelamente, tomou aulas de composição com o professor russo Aristotle Kondourov, com quem estudou as fugas de Johann Sebastian Bach. Começou a escrever canções baseadas nos poemas de Safo. Ainda encontrou tempo para cursar arquitetura. A invasão da Grécia pelas tropas do Eixo, durante a Segunda Guerra Mundial, fez com que os cursos e a inspiração se interrompessem. O jovem acadêmico se tornou secretário da Resistência, lutando pela libertação de seu país durante cinco anos. Em 1945, foi ferido a bala no rosto, perdendo a visão de um olho e recebendo uma cicatriz na face esquerda. Identificado pelo exército alemão como comunista, foi então condenado à morte, mas conseguiu escapar para os Estados Unidos. Em 1947, estabeleceu-se em Paris e adquiriu nacionalidade francesa. Seu primeiro emprego foi como engenheiro no escritório do arquiteto Le Corbusier. Passou logo a fazer projetos, como o do convento de La Tourettte e o estádio de Bagdá, no Iraque. Ganhava a vida como assistente de Le Corbusier. Gastava seu tempo livre com música, sua obsessão. Estudou com os compositores Arthur Honegger (1892-1955) e Darius Milhaud (1892-1974). Em seguida, matriculou-se no curso de Olivier Messiaen no Conservatório de Paris. Com quase 30 anos de idade, Xenakis se sentia inferiorizado por não ter conseguido adquirir conhecimento musical suficiente para compor e reger com desenvoltura. Mesmo assim, tocou suas composições para Messiaen, que, espantado como talento do compositor, aconselhou-o a não perder tempo com teoria musical, aproveitando matemática e arquitetura em sua música. "Permaneça ingênuo e livre", aconselhou Messiaen, também ele um fanático pela sistematização da música. O músico não seguiu a sugestão e, com mais finco ainda, estudou teoria musical, estocástica e lógica. O maestro Hermann Scherchen se encantou com as primeiras partituras do músico e o convidou para tomar parte em festivais de música, além de ter regido diversas premières de peças de Xenakis. A parceria com Scherchen durou de 1955 a 1966 e resultou, além de diversas obras orquestrais, artigos, publicados na revista Gravesaner Blätter. Scherchen regeu, entre outras, as peças Pithoprakta (1957), Achorripsis (1956) e Terretektorh (1966), todas para orquestra. Os artigos serviram como material para o livro Formalized Music, publicado em 1963. Sua realização mais importante na época, também regida por Scherchen (em Donaueschingen, em 16 de outubro de 1955), foi Metastaseis ("Transformações, em grego), para orquestra. Ali, estabelece o conceito de "composição sonora" a partir de massas sonoras ultracalculadas. Em vez de tirar a matéria da mente, Xenakis usou de métodos matemáticos para gerar notas. Valendo-se da teoria da relatividade de Einstein, inventou um espaço-tempo homogêneo, no qual o tempo não se distingue da altura. Definiu as estruturas mutantes como "arborescentes". Suas peças eram apresentadas sob condições as mais curiosas. Ora os músicos se dispersavam no espaço da execução, ora dialogavam com fitas magnéticas. Xenakis não ficou só na escritura e teorização. Entre 1955 e 1962, trabalhou no Groupe de Recherches Musicales (Grupo de Pesquisas Musicais), dirigido pelo compositor Pierre Schaeffer, mestre da música eletro-acústica. Outro fundador da música eletrônica, Edgard Varèse, gostou da música de Xenakis e tratou de divulgá-la. Com Varèse e Schaeffer, tornou-se pioneiro na composição puramente eletrônica. Em 1958, por exemplo, participou da Exposição Universal de Bruxelas, apresentando música para uma instalação projetada por Le Corbusier. Valeu-se do Pavilhão Philips, de Le Corbusier, em forma de serpentina para criar sons a partir do espaço arquitetônico. Assim, revolucionou a idéia do espaço em música. Mais de 2 milhões de pessoas visitaram aquela prévia de instalação (com som, vídeo e outros recursos visuais e sonoros). Le Corbusier reivindicou para si a autoria do evento, fato que magoou Xenakis. O rompimento se deu ainda em Bruxelas. O compositor partiu para ousadias ainda maiores. Em 1962, foi um dos primeiros compositores a usar um computador para criar música. À frente de um IBM 7090, Xenakis estudou a linguagem Fortran e elaborou a idéia de música estocástica. Na perseguição de uma estrutura sonora universal, que não dependesse de condicionantes culturais ou étnicas, Xenakis aplicou a teoria cinética dos gases à composição. Seu princípio estava em fornecer autonomia aos sons, encarados como massas. Elaborou densidades e nuvens de sons a partir de partículas sonoras calculadas de forma probabilística. Composições como Eonta (1964), para piano, e Nomoes Gamma (1968), para orquestra, envolviam cálculos precisos e quase nenhuma interferência sentimental na malha da composição. Desenvolveu um sistema de algoritmos, chamado de Síntese Dinâmica Estocástica. Lançou mão dele para criar um programa de computador (Gendyn, em 1991). Aos poucos, Xenakis superou o determinismo que se auto-impôs e relaxou no cálculo em nome de efeitos de massa sonora mais contrastantes. Nos anos 80, passou a escrever música baseada na imagem de véus sonoros com linhas melódicas extensas. Além do fluxo infinito do tempo, ele se valeu da idéia de turbulência e caos. A peça orquestral Ata (1987) expõe o tecido sinfônico a clusters e amálgamas impensáveis. O compositor apostou em tais complexidades nos quartetos de cordas Tetora (1990) e Ergma (1994). Sem se desvincular de suas origens, o músico escreveu para teatro e balé, buscando um público mais amplo. Em 1994, em Londres, apresentou a partitura orquestral Sea-Nymphs, a partir de fonemas retirados da peça A Tempestade, de Shakespeare. Uma das últimas obras que apresentou foi Zythos para grupo de percussão, executada pelo Kroumata Ensemble em Birmingham em 10 de abril de 1997. Nessas obras, apesar de jamais ter renunciado à estocástica, mostrou seus vínculos com a música grega: quartos-de-tom, glissandos, escalas não temporadas. No artigo "A Crise da Música Serial", de 1994, Xenakis tentou refutar a utilidade do método serial em nome de uma concepção científica. Neste artigo, observou: "A música é uma mensagem entre a natureza e o homem e entre os homens entre si. Deve ser capaz de falar com toda a gama humana de percepção e inteligência. Se ela não for estabelecida assim e em toda a sua extensão, a música atual corre o risco de se perder em um deserto de esterilidade". E para aqueles que identificam a inspiração de Xenakis a tal deserto, ele respondeu: "Em minha música vive toda a agonia de minha mocidade, da resistência, como também o mistério dos sons mortais das noites frias de dezembro de 44 em Atenas". Para ouvir esta arte de sons fundada na matemática, mas sangrada na existência, basta relaxar e deixar os sentidos fluírem. Os números de Xenakis contêm alta concentração de humanidade. E, afinal, música não deixa de ser matemática com sentimentos. Luís Antônio Giron |
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