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Segunda-feira, 2/4/2007 Caderno de caligrafia Paula Mastroberti Nas séries iniciais do colégio onde minha filha estuda, as crianças exercitam a caligrafia em pautas específicas, com intuito de tornar a letra mais legível e bonita. Ocorre que, numa dessas reuniões típicas de início de ano letivo, um pai toma a palavra e pergunta: "Por que eles têm que fazer isso ainda? Tudo o que a gente lê está em letra de forma. Até escrever a gente pouco escreve à mão. Por que utilizar a letra cursiva, se só se usa a letra de forma?" A pergunta agitou o ambiente. Uma educadora responde, usando o jargão pedagógico de costume: "elimina o garrancho... introduz o hábito da escrita... auxilia a desenvolver a coordenação motora fina..." Etc., etc. Penso eu: é verdade. Geralmente, quem desenha bem tem letra bonita (notem que eu disse bonita, e não legível). E a caligrafia desenvolve, sim, a coordenação motora fina, ou seja, disciplina a mão (o que nos pode ser útil em tantas outras circunstâncias ao sabor da fantasia). Por outro lado, também tem razão o pai provocador, ou não tem? Você aí, amigo das letras, leitor ou escrevedor: escreve como? Aonde? Confesso: só me tornei escritora por causa do computador. Sou péssima datilógrafa (uso apenas os dois dedos indicadores) e, toda vez que iniciava um texto à caneta em folhas pautadas, perdia a paciência e a concentração, e saía desenhando as personagens. Além disso, como boa filha dos anos sessenta, sou avessa à ditadura das pautas e linhas e saio escrevendo em todas as direções, em arabescos muito pouco inteligíveis (mas o efeito fica bonito, porque sou boa desenhista). Sei de inúmeros profissionais da escrita que preferem o lápis ao teclado, ou mesmo a velha máquina de escrever; mas conheço muito pouca gente que não passe seus recados via e-mail ou não seja obrigado a preencher formulários em anexos extensão ".doc" apenas teclando, assim como sei que não há monge hoje em dia com paciência pra quebrar o pulso desenhando caprichosamente letra por letra da Poética de Aristóteles. Por outro lado, que é bacana escrever à mão, lá isso é. Fazer estrelinhas nos pingos dos "is", que garota nunca fez? Coraçõezinhos no lugar dos "os"... As letras falam da personalidade de quem escreve. As assinaturas confessam coisas que só um bom grafologista imagina. Originais escritos à mão ou com anotações feitas pelo punho do autor são leiloados por fortunas, sem falar dos livros autografados. Eu gosto de registrar ocorrências particulares e pensamentos íntimos à mão, porque a grafia traduz minha emoção. Talvez tenhamos aqui um bom motivo para considerarmos a caligrafia uma habilidade que vale a pena desenvolver. Há uma antiga discussão sobre forma e conteúdo que se refere não só às artes visuais, mas também à literatura. Enquanto alguns pensadores ignoram a dependência do texto literário do seu suporte (os sinais gráficos que permitem acesso a sua leitura), outros (como alguns poetas, grafiteiros, pichadores e designers gráficos) entendem que a forma gráfica pode ser tão importante quanto a criação literária em si mesma. Como se fala muito pouco de poesia em nossas terras – digestivas ou não –, vou deixar essa discussão pra lá (por enquanto). Mas não custa nada, de vez em quando, parar para refletir sobre de que maneira o jeito e as técnicas de escrita e impressão podem interferir no processo criativo de quem escreve e no processo cognitivo de quem lê. De qualquer modo – sim, canetas e lápis: infelizmente, mesmo contra o meu compulsivo desejo de colecioná-los, sou obrigada a declarar que vocês estão ameaçados de extinção. Tenho até uma mesa eletrônica para desenho; posso simular giz, grafite ou nanquim, a meu gosto, sem que se perceba a diferença. O engraçado é que adoro produzir textos manuscritos a partir dela... Nota do Editor Paula Mastroberti é artista plástica e assina o artesite que leva seu nome. Paula Mastroberti |
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