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Segunda-feira, 30/4/2007
Cronista puro-sangue
Humberto Werneck

Como ficcionista, Ivan Angelo está na praça já faz tempo, é conhecido e reconhecido há três décadas – pelo menos desde 1976, quando lançou A festa, um dos romances brasileiros mais importantes da segunda metade do século XX, traduzido na Europa e nos Estados Unidos. Ou até antes disso: o escritor mineiro era mais que uma boa promessa quando, aos 25 anos, publicou os sete contos que dividiram com duas novelas de Silviano Santiago as páginas de Duas faces, volume editado em Belo Horizonte em 1961. Escritas entre os vinte e os 23 anos de idade, aquelas sete histórias sinalizaram para a melhor crítica – a começar pela que lhes conferiu, em 1959, o então prestigioso Prêmio Cidade de Belo Horizonte – a chegada à cena, pela porta da província (mas não qualquer uma...), de um talento surpreendentemente maduro, nutrido na leitura não só dos clássicos como da mais interessante literatura de vanguarda de seu tempo.

O passo seguinte, mais ambicioso, seria A festa, que Ivan Angelo começou a escrever em 1963, mas que não tardou a interromper, desestimulado pelo clima repressivo que o golpe de 1964 fez baixar sobre o país. Só em 1973, ainda em plena ditadura militar, voltou a trabalhar no romance, alterando o plano inicial para fazer dele, além de obra de arte, um extraordinário documento sobre aquele sombrio capítulo da vida brasileira – sem confusão possível, é bom distinguir, com certa ficção escancaradamente política que por algum tempo andou provocando arrepios mais cívicos do que estéticos em leitores pouco exigentes.

A publicação de A festa, contemplado com o Prêmio Jabuti em 1976, veio fechar um longo parêntese em que, pelo menos para efeito externo, Ivan Angelo foi monogamicamente jornalista – primeiro em Belo Horizonte, depois em São Paulo, onde se fixou em 1965 para participar daquela que seria uma das experiências mais ricas e fecundas da moderna imprensa brasileira: o então revolucionário Jornal da Tarde, criador de escola tanto na feição gráfica como no apuro do texto. Convocado a desempenhar funções de comando, é pena que só de raro em raro ele tenha servido aos leitores, em matérias assinadas, a sua também refinada prosa jornalística.

Depois de A festa vieram as cinco novelas de A casa de vidro, escritas no espaço de um ano, publicadas no final de 1979 e traduzidas nos Estados Unidos. Veio também a experiência de escrever para a televisão, sob a forma de cinco roteiros para a série Plantão de Polícia, da Rede Globo, em 1981. Em A face horrível, de 1986, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Ivan Angelo reuniu cinco histórias recentes e, retocadas, as sete de Duas faces – uma das quais, “Dénouement”, foi retrabalhada a fundo, desdobrando-se num fascinante tríptico que se converteu, nas mãos de escritores, jornalistas e estudantes, em precioso material de aprendizado do bem escrever. A esta coletânea, reeditada em 2006, seguiram-se O ladrão de sonhos e outros contos (1995), Amor? (1995, Prêmio Jabuti de romance), Pode me beijar se quiser (1997, Prêmio APCA de romance juvenil), História em ão e inha (infantil, em versos, 1997), O vestido luminoso da princesa (infantil, 1998) e O comprador de aventuras e outras crônicas (2000).

Este último, numa edição da Ática que visava sobretudo o público estudantil, foi a primeira reunião em livro da produção menos conhecida de Ivan Angelo, a de cronista. Não se tratava, porém, de um estreante no gênero, com o qual, ao contrário, se familiarizou bem cedo, ainda em Belo Horizonte, escrevendo em jornais e na revista mensal Alterosa. Já em São Paulo, ele foi cronista bissexto até 1996, ano em que iniciou colaboração regular no jornal O Tempo, da capital mineira. É dessa fase a sua esplêndida série “Minha cidade centenária”, escrita por ocasião dos cem anos de fundação de Belo Horizonte, em 1997; são textos cujo interesse vai muito além da efeméride e dos limites regionais, como deixa claro a leitura de “Amores montanheses”.

O cronista Ivan Angelo ganhou audiência bem mais ampla em 1999, quando foi convidado para ocupar, a cada quinze dias, a última página da revista semanal Veja São Paulo. Não tardou a cativar os leitores da publicação, que se contam às centenas de milhares – mas faltava fazer chegar a muitos mais, para além da região metropolitana de São Paulo, onde circula o semanário, a prosa sedutora e substanciosa desse cronista puro-sangue.

Sim, puro-sangue. É conhecida a dificuldade em que mesmo os especialistas se enredam quando se trata de definir o que é crônica. Rubem Braga, inigualável no gênero, costumava brincar quando lhe faziam a pergunta: “Se não é aguda”, dizia, “é crônica”. Há mesmo quem duvide de que seja propriamente um gênero, preferindo vê-la como um híbrido subproduto do jornalismo e da literatura. Pouco importa. Basta-nos constatar que a crônica, chegada ao Brasil nas caravelas da cultura européia do século XIX, aqui se aclimatou admiravelmente – quem lembra é o crítico Antonio Candido –, a ponto de ganhar uma feição inconfundivelmente brasileira. Um pouco – para baixar (ou levantar) a bola – como o futebol, que nos trópicos veio a ganhar molejo bem diverso da rígida cintura britânica de quem o inventou.

Ainda com o nome de folhetim, e antes que as contingências da imprensa a fizessem encolher consideravelmente, para reduzir-se por fim a um palmo de prosa, a crônica teve no Brasil cultores de primeira linha, entre eles Machado de Assis, José de Alencar e João do Rio, potáveis até hoje. Mas só com Rubem Braga, a partir dos anos 1930, foi adquirir as características que fizeram dela um, sem trocadilho, gênero de primeira necessidade na mesa do leitor da revista e do jornal – e também do livro, com especial força a partir de 1960, quando a criação da Editora do Autor (da qual Rubem Braga era um dos donos) permitiu perenizar textos que, escritos para o dia, para a semana, no máximo para o mês, em princípio têm curtíssimo prazo de validade.

Além de Braga e de Fernando Sabino – seu sócio naquela empreitada e numa subseqüente, a Sabiá, que foi pelo mesmo caminho –, praticamente todos os cronistas graúdos da época foram então publicados em livro: Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Vinicius de Moraes, José Carlos Oliveira... E também Manuel Bandeira e Cecília Meireles, incluídos nos dois volumes da coletânea Quadrante, depois rebatizada Elenco de Cronistas Modernos, predecessora de outra série de grande êxito, a coleção Para Gostar de Ler, que a Editora Ática lançaria nos anos 1970. O objetivo expresso no título dessa coleção era, de resto, o mesmo dos lançamentos avulsos da Editora do Autor e da Sabiá, e não há erro em afirmar que, tanto num caso como no outro, ele foi amplamente alcançado: gerações sucessivas se formaram, e ainda se formam, na prazerosa leitura de textos que, segundo alguns, nem sequer constituiriam um gênero literário...

Acrescido de nomes como Nelson Rodrigues, Rachel de Queiroz e Antônio Maria, que na mesma época escreviam em revistas e jornais do Rio de Janeiro, o time acima escalado protagonizou o momento de ouro da crônica brasileira. Mais recentemente, a palavra passou a agasalhar também uma variedade de escritos de cunho mais jornalístico do que literário – o editorial, o comentário muito em cima do fato. Sem prejuízo da importância que tenham e do interesse que suscitem, talvez se devesse abrigá-los sob outros rótulos, reservando-se o termo crônica para designar uma produção ditada mais pela subjetividade do que pela objetividade jornalística; textos marcados pelo lirismo e pelo humor, quando não por ambos, muitas vezes sob a forma de histórias inspiradas em aparentes miudezas do cotidiano, ou de virtuais poemas em prosa – e sobretudo destilados com a mão leve que naquele momento afortunado fez o encanto do gênero e assegurou sua permanência.

Sem desfazer dos demais, aqui se está falando de cronistas puro-sangue – e não é outra a constelação em que gira o mineiro Ivan Angelo, capaz de falar ao leitor em variados registros. Como no caso de um Carlos Drummond de Andrade, de um Paulo Mendes Campos, a viagem que vai da primeira à última página do novo Melhores Crônicas de Ivan Angelo tornará difícil para o leitor a tarefa de decidir onde reside o principal talento do escritor – se na arte de narrar, sem uma palavra a mais nem a menos, uma história bem-humorada, como ele faz, por exemplo, em “A garota da capa”, “Homem ou mulher?”, “Segundas núpcias”, “Sucesso à brasileira” ou “A cobradora”, se na delicada composição de textos fundamente marcados pela poesia, de que “Assombrações”, “Amantes”, “Pasárgada” e “Receita de felicidade” são apenas quatro amostras entre muitas possíveis.

Cronista atento e sensível, há um Ivan Angelo cuja voz se faz mais grave (mas nunca grandiloqüente) para abordar mazelas que povoam o noticiário e que, de tanto se repetirem, acabam por anestesiar consciências – caso de “O país das balas perdidas”, “Turismo sexual”, “Encontro com a vítima” ou “Nós e nossa tragédia”. Há também o Ivan Angelo memorialista, dotado de grande poder de evocação e jamais lacrimoso, presente em textos como “Meio covarde”, “Meu tio jogador”, “Meus trens” “Maravilhas na tela” e “Três derrotas”, ao lado de outro que se detém, com precisão e graça, na observação de modismos, usos e costumes – aquele de “Beijos”, “Corpos desenhados” ou a surpreendente “Um toque sem classe”.

Já deliciosas no varejo do jornal e da revista, reunidas em livro as crônicas de Ivan Angelo ficam ainda melhores – umas trabalham pelas outras, todas ganham corpo, o conjunto compõe uma exata combinação de sabores. “O segredo da crônica é que ela atua como uma relação pessoal entre o narrador e o leitor”, disse certa vez o próprio Ivan, “como se fosse escrita só para esse leitor.” É com essa certeza que cada um de nós chegará à última linha do novo volume.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Prefácio a Melhores Crônicas de Ivan Angelo (Global, lançamento em maio de 2007)

Para ir além





Humberto Werneck
São Paulo, 30/4/2007

 

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