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Segunda-feira, 7/5/2007 Aracy Guimaraes Rosa René Daniel Decol A companheira de João Guimarães Rosa no período mais criativo de sua vida foi também responsável pela salvação de centenas de vidas judaicas durante a Segunda Guerra Mundial. Burlando as leis do Estado Novo, ela conseguiu vistos para refugiados judeus, que assim puderam entrar no Brasil. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Com esta epígrafe, começa um dos maiores fenômenos da literatura mundial, Grande Sertão: Veredas, a obra-prima de João Guimarães Rosa. No entanto, ao se comemorar, no ano passado, os 50 anos da sua publicação, pouco se falou sobre esta mulher. Mas haveria motivos de sobra para manter viva a chama da memória de Aracy – ainda que ela não tivesse sido a companheira de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Dona Aracy, como é chamada, salvou judeus na Alemanha nazista, enfrentou as leis anti-semitas do Estado Novo, e ainda escondeu perseguidos políticos durante a ditadura militar brasileira. Enfrentou, portanto, nada menos do que três regimes autoritários, conhecidos por sua violência inclemente. Em Hamburgo, no final da década de 30, como funcionária do consulado brasileiro, ajudou refugiados judeus a saírem da Alemanha, conseguindo vistos para centenas de pessoas, apesar da lei que proibia a entrada de imigrantes judeus no Brasil. Por isso, ganhou homenagens nos Museus do Holocausto de Jerusalém e de Washington e é conhecida pela comunidade judaica de São Paulo como o “Anjo de Hamburgo”. Depois, já na década de 60, escondeu em seu apartamento de Copacabana o cantor e compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura militar, depois do AI-5. Bonita, culta e corajosa, não deve ter sido por acaso que chamou a atenção de Guimarães Rosa. Aracy tinha certamente algo de Hannah Arendt, a extraordinária filósofa judia alemã, autora de Origens do totalitarismo e A condição humana, e que fez da própria vida um ato de luta contra o totalitarismo. Praticava aquilo que os alemães chamam de "amizade combatente": atuava a favor do amigo, sem esperar que este lhe pedisse ajuda. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é a única mulher citada no Museu do Holocausto de Jerusalém como um dos 18 diplomatas (ou funcionários diplomáticos) que ajudaram a salvar vidas de judeus. É também o único nome de uma funcionária consular, e não de embaixador ou cônsul, o que só aumenta a dimensão do risco que correu: afinal, ela enfrentou o nazismo sem gozar das imunidades garantidas aos outros diplomatas homenageados, todos de escalões mais altos. “Aracy era a grande personagem da vida de Guimarães Rosa”, diz Neuma Cavalcante, que está escrevendo sua biografia, juntamente com Elza Mine, professora do departamento de Língua e Filologia Portuguesa da USP. O livro, que deve ser publicado no ano que vem, é baseado em recortes de jornais, anotações e, principalmente, a correspondência entre João e Aracy. A história do relacionamento entre Rosa e Aracy é digna de um filme. Estamos em 1934. Ele, já separado da primeira mulher, Lygia Cabral Penna, e descontente com a medicina, resolve prestar concurso para o Itamaraty. “Via na diplomacia um meio de conhecer o mundo, coisa que, como menino pobre, jamais poderia fazer”, conta Franklin de Oliveira, crítico literário e jornalista que se tornara grande amigo do escritor. Graças à sua vasta cultura geral e conhecimento de línguas é aprovado em segundo lugar no concurso, e nomeado cônsul adjunto em Hamburgo, cargo de grande importância, em uma cidade-porto que devido ao seu histórico papel como centro comercial internacional tem mais consulados do que qualquer outra no mundo, com exceção de Nova York. Chega em 1938, e conhece Aracy. Começa um relacionamento que duraria até o seu desaparecimento prematuro, em 1967. Juntos, viajaram pela Europa, passando pela Itália, França e Suíça. As impressões dessas viagens foram fonte de inspiração para livros como Grande Sertão: Veredas. “Por esses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem”, diz o jagunço Riobaldo, em cuja narrativa se estrutura o romance, em uma possível referência à companheira. Aracy de Carvalho Guimarães Rosa, nascida Moebius de Carvalho, filha de pai português e mãe alemã, casou-se jovem com Johan von Tess, também descendente de alemães, ainda nos anos 30. Mas o casamento durou apenas cinco anos, e terminou em “desquite amigável”, como se dizia na época. Já aí ela mostra sua personalidade: no Brasil fortemente machista da época, não era fácil para uma mulher separar-se do marido. Por isso, foi para a Alemanha com o único filho do primeiro casamento, Eduardo Tess, morar com uma tia. Falava bem alemão, inglês e francês, e conseguiu uma nomeação para o consulado brasileiro em Hamburgo. Entre outras atribuições, era encarregada da seção de vistos. Já com fama de escritor, e conhecido por sua imensa erudição e pelo conhecimento de mais de uma dezena de línguas, Guimarães Rosa chega a Hamburgo para dar início ao período mais importante da sua vida. Uma vez estabelecido como diplomata de carreira, ele tinha tempo para fazer o que mais gostava: ler, escrever, aprender idiomas, e conhecer o mundo. Já havia percorrido a cavalo o vasto sertão de Minas Gerais, trabalhando como médico. Mas agora começava a fase cosmopolita da sua carreira. Por coincidência, foi no mesmo ano em que entrou em vigor a tristemente célebre Circular Secreta 1.127, que restringia a entrada de judeus no Brasil. Getúlio Vargas, agora investido de plenos poderes com o Estado Novo, fora convencido pela propaganda nazista de que judeus eram perigosos. Eram comunistas – como Olga Benário Prestes, que ele entregou à Gestapo – ou capitalistas, que manipulavam o poder econômico mundial. Em todo caso, indesejáveis na formação da nação brasileira. Mas contrariando as ordens do Itamaraty, Aracy criou esquemas para burlar a atenção do cônsul geral, salvando assim a vida de centenas de judeus. “Minha mãe resolveu ignorar a circular que proibia a concessão de vistos a judeus, achou aquilo um absurdo, e por sua conta e risco continuou a preparar os processos, à revelia das ordens do Itamaraty e de seus superiores no consulado”, conta o filho Eduardo Tess, hoje um advogado em São Paulo. “Como ela despachava outras coisas com o cônsul geral, no meio dos papéis enfiava os vistos. Muitos judeus vinham de outras cidades; mas para que os seus passaportes pudessem ser processados em Hamburgo, tinham que provar que moravam na região. Ela conseguia os atestados, e quando entravam com os papéis, já tinham esta dificuldade resolvida”. Rosa sabia o que Aracy fazia, com grande risco. “Como cônsul adjunto, ele não era responsável pelos vistos, mas sabia o que minha mãe estava fazendo. E apoiava”, diz Eduardo. “Os vistos eram assinados pelo cônsul geral”, lembra. E por que ela não acatou as ordens de Getúlio, abandonando os judeus à própria sorte? “Porque não era justo”, ouvi dela uma única vez, em seu estilo reservado, como se arriscar a vida por gente que ela nem conhecia pessoalmente fosse uma atitude óbvia. Além de citada no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém, Aracy foi homenageada também com o nome de um bosque do Keren Kayemet nas cercanias da cidade sagrada. Ela mesma inaugurou a placa comemorativa com um discurso, em 1985, quando fez sua última viagem internacional. E é homenageada também no Museu do Holocausto, em Washington. Maria Margareth Bertel Levy, ou dona Margarida, como prefere ser chamada, e seu marido, o cirurgião-dentista Hugo Levy, já falecido, são alguns entre os judeus que Aracy ajudou a salvar. “Ela me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático”, lembra. Dona Margarida e seu marido, como muitos outros judeus que moravam em Hamburgo, subestimaram o perigo representado pela ascensão do nazismo. No Brasil, tornou-se amiga pessoal de Aracy. Guimarães Rosa chegou a ser denunciado por suas posições anti-nazistas. É o que descobriram recentemente pesquisadoras brasileiras que reviraram os arquivos da polícia alemã, em Berlim. Encontraram queixas então encaminhadas ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro, dando conta que o então cônsul adjunto Guimarães Rosa fizera declarações contrárias ao regime. Ainda assim, permaneceu em seu posto até agosto de 1942, quando submarinos alemães torpedeiam o navio brasileiro Baependi. No dia 31 de agosto o Brasil declara guerra à Alemanha. Diplomatas brasileiros, entre eles Guimarães Rosa e Aracy, ficaram sob custódia por mais de quatro meses em Baden-Baden, e finalmente são trocados por diplomatas alemães. Guimarães Rosa e Aracy embarcam para o Brasil, via Stuttgart, Madri e Lisboa. O casal instalou-se no Rio. Como não podem se unir legalmente – ainda não existe o divórcio no Brasil – casaram-se por procuração, no México, como era de praxe na época. Ele ainda ocuparia cargos diplomáticos de grande importância – foi nomeado, por exemplo, para a Conferência de Paz em Paris, e ganhou status de embaixador. Aracy abdicou da carreira diplomática e preferiu ficar ao lado do escritor. Rosa dedicava-se cada vez mais à literatura. Em 1946 publicou Sagarana. Em 1956, Corpo de Baile, e logo depois Grande Sertão: Veredas. Rosa foi traduzido e publicado na França, Itália, Estados Unidos, Canadá e Alemanha. Depois Polônia, Holanda, Tchecoslováquia. No apartamento com vista para o mar, em Copacabana, onde ele continuava retocando interminável e obsessivamente seus livros, e colecionando as edições internacionais que se avolumavam, o casal recebia a elite intelectual da época: o crítico Paulo Rónai (cuja família haviam ajudado a salvar da Hungria); o tradutor para o alemão Curt Meyer-Clason; o crítico Willi Bolle; seu editor americano e também amigo pessoal, Alfred Knopf; o tradutor para o espanhol Angel Crespo; o crítico francês Renard Perez; com o tradutor para o italiano, Edoardo Bizzarri, manteve riquíssima correspondência, publicada no Brasil e na Itália... Enfim, a lista é interminável. Domingo, 19 de novembro de 1967. Três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras, o que vinha adiando há anos devido ao receio de não resistir à emoção, Guimarães Rosa brincava com a neta favorita, Vera Tess, no seu escritório. Como fazia todo domingo, Vera saiu com a avó Aracy para ir à missa ao final da tarde, na igrejinha do Forte de Copacabana. “Na volta para casa, eu levava pipoca para ele”, lembra Vera, hoje uma psiquiatra em São Paulo, mãe de dois filhos, o primogênito chamado João. “Naquele domingo, ao entrar no escritório, encontrei-o parado em frente à escrivaninha. Soube depois: estava tendo o enfarte”, recorda. Aos 59 anos, no auge da carreira, quando sua criatividade parecia ter alçado um novo patamar, Guimarães Rosa morreu do coração, deixando o mundo literário atônito. “E ficamos sem saber se João existiu, de se pegar”, escreveu Carlos Drummond de Andrade em sua inesquecível elegia “Um chamado João”. Nos anos seguintes, Aracy recebeu dezenas de homenagens. Continuou a freqüentar e a receber os amigos do escritor, e a colecionar tudo o que era publicado sobre a obra do marido. “Até os anos 90 ela ainda estava muito ativa e cultivava o pessoal dos tempos do Itamaraty”, revela uma amiga. “Com o tempo, os amigos foram morrendo um a um. E Aracy foi se apagando.” Hoje, dona Aracy, aos 98 anos, vive em São Paulo, com o filho Eduardo e a nora Beatriz Tess. Por ironia do destino, quem tem tanto para contar, devido à idade avançada, pouco se recorda. Mas para o judaísmo, quem salva uma vida salva a humanidade, e por isso a chama da sua memória não pode ser jamais apagada. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na última edição da Revista 18. René Daniel Decol |
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