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Segunda-feira, 31/12/2007 A Brasilianização do Mundo Giuliano da Empoli Há dois anos, publiquei ― na Itália ― um livro cuja tese principal era de que o mundo estava em vias de se brasilianizar. O livro saiu, depois, na França e em outros lugares, mas nunca me questionei sobre sua publicação no Brasil. Reconheço, agora, que falar sobre brasilianização do mundo, na Itália ou na França, onde há uma concepção meio superficial e "clichê" sobre o Brasil, é fácil. Porém, falar da brasilianização do mundo no Brasil é mais difícil e produz em mim uma certa tensão... Mesmo assim, vou tentar. Vou tentar explicar o que eu entendo por brasilianização. É óbvio que não se trata de um fenômeno como a "americanização" do mundo, que foi resultado da influência direta dos Estados Unidos e da cultura americana sobre os demais países. Não afirmei que o resto do mundo olhe para o Brasil para imitá-lo (ainda que ocorram modismos, coisas que vêm do Brasil e têm certa capacidade epidêmica de se inserir na cultura pop global, por exemplo). Mas não se trata disso e, sim, de outro fenômeno: na minha opinião, o Brasil é uma excelente metáfora ― um espelho alegórico ― de muitas tendências visíveis, um pouco, em toda parte, e que são associadas à pós-modernidade. Essas tendências fazem parte da cultura brasileira, da sua sociedade, e ― cada vez mais ― se espalham um pouco por toda parte. Creio que é uma grande mudança; Cresci durante os anos 90. Parafraseando o prof. Michel Maffesoli ― na minha opinião ―, os anos 90 foram de uma grande impertinência. A impertinência é tudo que não é pertinente à realidade: são conceitos, explicações, teorias que se avançam e que não estão ligadas à realidade das coisas. A queda do muro de Berlim produziu, em todo o mundo, a impressão de que o futuro seria racional; era o fim das ideologias, o fim das nacionalidades ― uma nova racionalidade de mercado marcando o fim da história. Seria, também, o fim da geografia. Com os novos meios de comunicação conectando o mundo inteiro, os lugares seriam todos a mesma coisa, o mundo inteiro estaria incluído e tudo seria perfeitamente racional. Uma tensão progressiva da racionalidade iria dominar o futuro, consubstanciado no Vale do Silício... Contudo, essa retórica da impertinência ― ascendente ao longo dos anos 90 ― acabou se diluindo e chegou ao início da década de 2000 completamente desfeita. O acontecimento simbólico que marca isso é o nine-eleven ― 11 de setembro de 2001. Ali, acordamos em um mundo que não mais tinha a ver com aquela extensão progressiva da racionalidade. Sempre na minha opinião: trata-se de um mundo bem mais parecido com o Brasil do que com o Vale do Silício. Para mim, a brasilianização é uma espiral que tem dois pólos. Um deles é o pólo do carnaval. De acordo com o exposto aqui, pelo prof. Meffesoli ― a orgia e a democratização da orgia. Refiro-me à orgia no seu sentido latente de paixão, de sensibilidade, de irracional, de imagens que ocupam cada vez mais o centro das atenções. Ainda assim, trata-se de fenômeno recente. Vejamos, por exemplo, a dimensão do culto ao corpo. O Brasil tem sido a capital mundial da cirurgia plástica. Esse boom da cirurgia plástica é um fenômeno encarado com perplexidade no exterior ― na Europa e nos Estados Unidos. O sexo tem se tornado cada vez mais importante na vida social. A palavra fuck, por exemplo, foi impressa pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1962, no periódico The Village Voice. Hoje, se se contemplar a linguagem do debate púbico, na cultura americana, tudo está reduzido a sexo e corpo. O culto ao corpo, associado, aqui, ao carnaval ― aspecto que eu queria sublinhar ― está ligado à publicidade, ao narcisismo das massas e ao desejo de aparecer. O carnaval tem muito de representação, de encenação em si. Eu ouvia o prof. Juremir descrevendo os reality shows como o estado extremo da democracia: a democracia radical, em que os idiotas podem se tornar as estrelas. Claro, a real TV e o exibicionismo das massas são uma evolução do processo democrático. Denota uma participação crescente, um desejo de estar no centro das atenções. Não sou mais um voto ou participante ― a estrela sou eu. Mas creio que se trata mais de algo ligado a um processo da comunicação do que de democratização. Somos bombardeados por tantas informações, por tantas imagens e estímulos solicitando a nossa atenção, que desejamos ter a atenção voltada para nós. É uma overdose, tanto bombardeio de sinais, que as pessoas ficam fartas ― e decidem: agora é minha vez de chamar a atenção, sou eu que vou entrar em cena. As novas tecnologias são tecnologias do narcisismo. Está ao meu alcance me tornar um broadcaster. Se algo acontece na minha vida, uma idéia me ocorre, em vez de comunicá-la simplesmente a um amigo ou a qualquer outra pessoa, eu faço um e-mail e envio para todo mundo. Todas as pessoas que conheço serão informadas de tudo que faço, de tudo que ocorre na minha vida. O e-mail é produto da tecnologia do narcisismo, uma impressionante representação de si mesmo. Todos nós somos submergidos, todos os dias, por e-mails que não foram enviados para nós, mas sim para todo o mundo. Para fazer cinema, antes, era preciso uma tecnologia dispendiosa e complicada. Hoje todos nós podemos fazer cinema. Isso começa a causar impacto em todo o mundo da informação, não somente na área dos espetáculos. O mundo da informação está mudando de forma radical. Na televisão, há cada vez mais imagens provenientes da rua, ou de uma pessoa, que estava lá, com seu telefone celular, quando o acontecimento ocorreu, e imediatamente teve a possibilidade de capturar a sua imagem. Na Grã-Bretanha existe um programa que se chama I was there (Eu estava lá). Ele mostra filmes e imagens de pessoas que foram testemunhas, que estavam presentes na cena da ocorrência. A informação torna-se testemunho, de cada um de nós no centro das atenções. Não são mais personalidades ― ou grupos de elite ― que produzem as informações, mas cada um de nós. Ouvi um filósofo alemão utilizando, para essa nova situação, um termo que acho muito interessante (especialmente por eu ser de Roma, onde está o Coliseu): é a volta da arena. Podemos dizer que, durante 1.500 anos, a arena tinha praticamente desaparecido no mundo ocidental. Ela foi ressurgir no início do século XX, precisamente em 1907, em Londres, para os jogos olímpicos: o estádio de Shepherds Bush ― a primeira arena da modernidade, para pessoas. A partir daí, os estádios e as arenas recomeçaram a povoar o mundo, como lugares de orgia, de encontro, comunhão, onde se vibra junto com todos os outros, seja um jogo de futebol ou um espetáculo de rock. A arena é o símbolo de tudo isso. Em latim, o anfiteatro chamava-se spectacula, porque essa dimensão visual era muito marcada. Não se tratava da racionalidade dos conceitos, mas sim do impacto da imagem. Essa arena, hoje, não é mais apenas a arena dos estádios, mas passou a ser uma enorme arena virtual onde todos nós vibramos ― e os reality shows são paradigmas. American Idol, Big Brother são o paradigma da arena, o espetáculo da crueldade ― pois existe um marcado componente de crueldade nessas pessoas que são colocadas no centro da arena. Como nas arenas romanas, o lema é mors tua vita mea (sua morte é minha vida), pois só um poderá sobreviver no final. Podemos ver esses reality shows como o retorno dos gladiadores. O espetáculo da crueldade sempre existiu. Muitas arenas romanas funcionavam nos horários das refeições, como lugares onde, em vez de almoçar ou jantar, você ia para assistir aos combates, aos leões devorando os cristãos e tudo o mais que significava o poder e o prazer da crueldade. Hoje em dia, na hora da refeição, mais ou menos ― em torno das 8, 9 horas da noite ― em vez de dirigir-se ao circo romano, você liga a televisão e tem sua arena particular. O que muda? Maffesoli cita Norbert Elias, para quem o processo civilizatório separa as elites e é um processo de autocontrole; a sociedade cortês, a sociedade-da-corte. Para tornar-se importante e poderoso, dentro da sociedade cortês, você deve dissimular os seus instintos e ser o mais contido possível. Em termos psicanalíticos é o superego. Este era o modelo das cortes do século XVIII, que se expandiu e influenciou os demais estratos da sociedade. Assim, a burguesia tomou emprestado da nobreza esse tipo de modelo acentuado de autocontrole. A arena é o oposto. Na arena não há controle de nada. O sucesso nas sociedades de arena não deriva do superego ― ele provém do id, da capacidade de expressar os próprios instintos, de gritar, urrar, de se fazer ouvir, de se tornar o mais visível, emotivo e o mais barulhento que for possível. Este modelo, como foi o modelo da sociedade cortês do século XVIII, é um modelo social ― em que todo mundo quer se tornar. Uma pesquisa na Itália, entre jovens de 16 a 25 anos, sobre o que mais desejavam na vida revelou que queriam aparecer na televisão. Imagino que a mesma coisa poderia ser constatada no Brasil. Eis a nova elite: uma elite que se manifesta, que é barulhenta. Que poderiam também ser descritas como "elites publicitárias". As novas elites têm, por trás, interesses marcadamente comerciais e de marketing. As velhas elites não vendiam grande coisa. Por exemplo, a elite acadêmica ― o que faz um acadêmico? Pode vender alguns livros, mas não é um negócio de vulto. Mesmo as elites políticas, elas vendem o quê? Não muita coisa. Entretanto, você vende o que quiser, por meio das elites da arena: cosméticos, moda, tudo o que quiser. O processo comercial reforça essa tendência, pois há muitos investimentos para impulsionar essas elites. As elites do id ― as elites da arena ― dominam cada vez mais todos os setores, pois o seu mecanismo não se restringe ao show business, mas torna-se dominante em toda parte. Essas elites vendem muitíssimo vem, porque mudam constantemente, assumindo modelos, como Madonna ou David Beckham, uma cabeleira diferente, um look diferente. São, realmente, elites publicitárias. Hoje, existe até um Celebdaq ― o equivalente do índice Nasdaq para as celebridades, que é utilizado pelas grandes empresas americanas para decidir quais são as celebridades que as podem ajudar a vender mais. Uma variedade cada vez maior de celebridades está a serviço da venda de produtos; não só os artistas da televisão ou as grandes estrelas, mas o produtor, o cabeleireiro, o cozinheiro, o artista do make-up, todos a serviço também da alavancagem das vendas de produtos e serviços. Voltando ao carnaval ― depois deste parêntese sobre o tema da publicidade. Há outras coisas envolvidas no carnaval, além do exibicionismo. Por exemplo, uma característica brasileira que sempre fez parte da sua cultura: o sincretismo, a mestiçagem. É significativo que Gilberto Freyre tenha publicado o seu importante livro Casa Grande & Senzala em 1933, ano da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha; e também o ano em que a Europa mergulhava na triste tentativa de uma separação máxima (Maffesoli fala da modernidade como separação e da pós-modernidade como confluência). Enquanto nós, na Europa, ainda vivíamos uma dimensão de separação, aqui já ocorria uma dimensão sucessiva. Em relação à fé, às crenças ― nos Estados Unidos e na Europa ―, as tendências parecem diferentes, quando se olham as estatísticas: nos Estados Unidos ocorre um retorno à fé, enquanto a Europa é mais ateísta. Mas, ainda assim, nota-se uma tendência geral ao sincretismo, em toda parte. Nisso encontram-se Estados Unidos e Europa. Minha mulher é americana, foi batizada católica, mas acredita um pouco em astrologia, lê os filósofos orientais e tem um conjunto de crenças absolutamente sincrético. Nós, brasileiros e italianos, somos verdadeiramente católicos? Não seríamos os portadores da uma religião sincrética? Acredito mais nisso. E veja-se o que houve no campo da moda. Cada um de nós transmite sua identidade na maneira de se vestir. Até os anos 80, a moda era por tribos. Eu me vestia de uma certa maneira para reivindicar a minha identidade: yuppie, ou pós-punk etc. O fenômeno da moda nos anos 90 foi o cross-over, um pouco de tudo, que se combina e recombina. Não há mais tribos com modas separadas, tudo é cada vez mais convergente. Poderíamos continuar citando dezenas de outros exemplos. A convergência ocorre horizontalmente, mas também no alto e em baixo. Na música, no esporte, até na política. A sua Semana de Arte Moderna fez a grande revolução, voltando os olhares para a beleza do que está aqui, e não nos salões de Paris. Isso também se generalizou: a partir de Andy Warhol, o alto e o baixo já não têm nenhum sentido. Este seria o exemplo sincrético da brasilianização, que faz parte do pólo do carnaval. Mas há também um pólo trágico, de risco. O Brasil não entra em guerra há muito tempo, mas vocês vivem um conflito epidêmico permanente ― em que 50 mil pessoas morrem, por ano, de maneira violenta. Esse também é um novo paradigma que, a partir do dia 11 de setembro, torna-se cada vez mais e mais visível, e mais geral. A guerra, no mundo de hoje, não é mais de um exército contra outro, em que se combate, conquista, se perde um território ou uma fronteira. Ela é epidêmica. Já que a impertinência está na moda, tenta-se conduzir isso aos cânones tradicionais, por exemplo, invadindo o Iraque ― pois, dessa forma, isso é reportado dentro de um quadro mais compreensível de um exército que invade um país. É clássico ― é bastante claro. Mas é inteiramente impertinente, porque a guerra, hoje, não é mais isso e sim um fenômeno epidêmico; é o terrorismo. Não há mais exércitos. Em tese, cada um de nós pode estar na sua mira. A dimensão do terrorismo é a insegurança geral. Esta insegurança estendeu-se ao mundo do trabalho, pela diferença entre o setor formal, mais rígido, e o enorme setor informal, que não tem mais regras. Isso se generaliza. Goldbeck, sociólogo alemão, fez estudos a respeito da brasilianização do mercado de trabalho no Ocidente e na Europa. As cidades também. As cidades brasileiras, com seus condomínios fechados, o fim do espaço público, a separação cada vez mais nítida entre os territórios blindados, protegidos e os territórios dos guetos, enquanto os espaços públicos se retraem cada vez mais. Isso também está ocorrendo nas cidades americanas e européias, nos últimos 15 anos. Hoje, 30% das novas construções nos Estados Unidos são de condomínios fechados (gated communities) ― um fenômeno que não existia há 20 anos. Na Europa, onde essa separação urbana é menos acentuada, ainda assim, vejam o que ocorre em Paris: a periferia em chamas e um candidato à presidência que não pôde dar as caras nos subúrbios; territórios onde a força pública não entra mais. E surgem cada vez mais territórios protegidos, mais shoppings centers ou lugares como Paris Plage à beira do rio Sena, no verão, asséptico, guardado, protegido ― é a praia blindada e, na minha opinião, algo bem brasileiro. Ou, ainda, o papel da infância. Na Europa e nos Estados Unidos, não existem os problemas dramáticos do Brasil, em relação aos meninos de rua. Contudo, a condição da infância como um espaço protegido ― que prevalece durante todo o século XX (não como na Idade Média, em que as crianças eram expostas ao sexo, à violência) ―, um espaço separado para elas, também acabou. Acabou com o fim da "civilização tipográfica". Na medida em que o conhecimento se disseminava através da escrita ― dos livros e da escola ―, você podia proteger a infância. Primeiro, era necessário que elas aprendessem a ler, decifrar certos códigos; depois, gradualmente, a gente lhes ia revelando a verdade. Essa condição protegida da infância ocorreu na Europa, nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil entre as classes mais privilegiadas e existia até outro dia. Mas isso acabou. Hoje, com a difusão de imagens pela internet, nada mais está protegido. Crianças de 3 e 4 anos são expostas de imediato a todo tipo de violência, ao sexo e tudo mais que existe no mundo. Desafio qualquer pai a conseguir limitar um filho na internet. É, antes, o contrário ― os filhos é que nos poderiam censurar, se quisessem. E não há meio de parar isso. Assim, portanto, a brasilianização de que falo no meu livro, em que tento traçar um paralelo entre coisas que existem no Brasil, há algum tempo, e os fenômenos que se globalizam. Um outro elemento do pólo trágico é o fatalismo. Na religiosidade dos iorubas ― o componente africano majoritário na população brasileira ― existe um elemento de fatalismo, de predestinação, muito forte. E esse fatalismo é cada vez mais dominante por toda parte. Durante o século XX, pensamos ― com Marx e Freud ― que tudo podia ser feito, que o destino de um homem estava ligado à sua classe social, à sua educação, tudo isso. Hoje, predomina a genética. Dizem-nos que o destino de cada um de nós é, fundamentalmente, programado. Os geneticistas usam uma imagem interessante: cada um de nós é como um rolo de filme fotográfico não revelado. Obviamente, o modo como você irá revelá-lo, o modo de imprimi-lo, podem variar um pouco. Mas, no fundo, tudo está ali, programado. A comunidade científica mundial ― em grande maioria ― acredita que 80% de nós dependem do determinismo genético. Não disponho de dados para saber se isso é verdadeiro ou falso. Mas afirmo que, obviamente, isso altera a percepção que cada um de nós tem de seu destino. E o fatalismo é também a astrologia. De uma maneira menos científica e menos racional, olhamos, hoje, para as estrelas. Este grande retorno da astrologia também faz parte dessa atmosfera de fatalismo, que está em toda parte. Esses dois pólos ― o carnaval de um lado e os riscos do outro ― interagem e se reforçam mutuamente. É clássico. Historicamente, nas cidades européias, a Peste foi sempre uma ocasião para a orgia. Porque a Peste, é claro, a iminência da morte, leva a aproveitar o momento, o instante presente ao máximo possível ― carpe diem. Amanhã, poderemos estar mortos. Portanto, vamos viver o agora. Há uma descrição de Daniel Defoe ― o autor de Robinson Crusoé ― sobre a peste em Londres, no ano 1665, onde conta como, em uma casa, havia gente morrendo, enquanto, na casa do lado, desenrolavam-se orgias e bacanais. Nos Estados Unidos, houve essa polêmica sobre Anna Nicole, uma pin-up girl que se casou com um homem muito rico, que tinha 89 anos e morreu. Anna se tornou uma heroína da publicidade, da arena, mas também ficou doente e morreu. A mídia americana ficou em polvorosa: dedicaram ao acontecimento transmissões ao vivo na CNN, boletins urgentes, e por aí vai. Depois, houve uma questão sobre a herança, depois o noivo, enfim, vários episódios de uma história complicada e picante a que foi dada ampla cobertura. Passados alguns dias, os jornais mais sérios ― como o The New York Times ― começaram a questionar: é possível que um país como o nosso, que está em guerra no Iraque, enfrentando tantos problemas, internamente e em escala mundial, dedique tanto espaço a Anna Nicole Smith? A resposta, obviamente, é SIM. Essa é a conseqüência direta, é óbvio! Por estar em guerra, por ter a peste, é que se vai em busca da orgia. Todos vão querer se debruçar o máximo possível sobre o caso Anna Nicole Smith! Se entrarmos na dimensão política, o resultado dessa espiral do carnaval é conseqüência da evolução do político: de certo modo, poderíamos dizer que Clinton foi a face alegre da brasilianização, e Bush a sua face triste. Com Clinton eram os hambúrgueres, os escândalos sexuais, a ética cigana burguesa, tudo o que foi produzido pela cultura dos anos 60 e que o levou ao poder nos Estados Unidos: era a face alegre, o pólo do carnaval ― se preferirem ― da brasilianização. E o Bush, por sua vez, é o pólo trágico, a guerra, o terrorismo, a parte trágica. Na Itália, temos um personagem extraordinário, que consegue reunir em si próprio os dois pólos de maneira genial. Esse gênio é Silvio Berlusconi, na minha opinião, o primeiro homem político global puramente brasilianizado. Há muitas explicações simplistas para Berlusconi, sobretudo na França, onde ninguém o entendeu; diziam que se tratava de um manipulador, um homem que era proprietário de redes de TV, portanto influenciava todo mundo e ― graças à televisão ― tomou o poder. Só que não é tão simples. Se se observarem os dados eleitorais na Itália, Berlusconi venceu as eleições de 94 quando só tinha uma parte das televisões do seu lado. Depois de tornar-se primeiro-ministro é que adquiriu o controle dos meios de comunicação e da TV italiana. No entanto, em 1996 ele perde as eleições e também a televisão estatal. Quando retorna ao poder, em 2000, não mais detém o controle total da mídia, e ainda assim ganha as eleições. Ele ainda governa, tem o poder, tem o controle da mídia, mas, em 2006, perdeu as eleições. Seria redutivo dizer que, por causa da TV e fazendo manipulações aqui e ali, as coisas vão andar de algum modo. Berlusconi é mais do que isso: em primeiro lugar, é uma estrela, é o carnaval ideal. Como homem mais rico da Itália, é o consumidor ideal: possui sete villas, só na Sardenha, e desloca-se de uma para outra, em puro hedonismo. Todo italiano olha para Berlusconi e sonha ― porque ele compra tudo que quer, pode possuir tudo, até o futebol, pois é o dono do clube Milan. Não se trata mais de um homem político, mas tem toda a dimensão da arena; é uma estrela do carnaval, nada mais e nada menos. Assim mesmo, na sua plataforma política, vai insistir muito na insegurança (embora isso seja menos folclórico, menos interessante). Fala da luta contra o crime, do policiamento urbano, promove uma verdadeira psicose da insegurança, antes mesmo do dia 11 de setembro; após o 11 de setembro, torna-se aliado de Bush, é o homem que vai ao Iraque... Eis dois pólos ― o pólo do carnaval e o pólo da segurança (e, portanto, da insegurança), e eu, como homem político, lhes forneço uma solução para isso. Isso se generaliza. Sarkozy não é mais apenas um político francês ― mas a evolução disso. Ele não faz parte da clássica elite tecnocrática francesa, não cursou a ENA (Escola Nacional de Administração), nem nenhuma das faculdades de prestígio. É alguém que chega ao poder dizendo: eu não sou essa coisa que está aí. A velha elite racional ― da qual falávamos ― não tem nada a ver com Sarkozy. Sarkozy é a evolução sob forma de estrela. Continua a ser um político, mas conseguiu a sua transmutação em estrela. Ele tem mais amigos entre gente do show business do que outros políticos. Após as eleições, ele esteve a bordo do iate do seu amigo bilionário, Vincent Bolloré, e os jornais na França ficaram escandalizados. Não entenderam nada, porque o público ama essa qualidade das estrelas, ama os iates e as representações de tudo isso. Ao mesmo tempo, Sarkozy transita pelo pólo da segurança: tough against crime, tough against the causes of crime (foi o Blair quem lançou isso, mesmo sendo um homem de esquerda). É interessante observar essa clivagem, conferida dentro da mais pura brasilianização. Na verdade, não tenho nenhuma conclusão a oferecer. Gostaria de poder discutir mais um pouco as conseqüências publicitárias e comunicacionais de tudo isso. Como minha formação é mais política, vejo muito claramente as conseqüências políticas desses fenômenos todos... Nota do editor Texto adaptado da apresentação feira durante o Seminário Internacional sobre Publicidade e Pós-modernidade, na ESPM, em 2007 (originalmente publicado na Revista da ESPM, edição nš4, volume 14, ano 13, gentilmente cedido pelo autor). Giuliano da Empoli |
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