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Segunda-feira, 18/2/2008 O enigma de Lindonéia Antônio do Amaral Rocha Rubens Gerchman (1942-2008), falecido em janeiro, vítima de um câncer raro de pulmão, um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros, deixa um importante legado, entre muitos outros trabalhos. Trata-se da enigmática obra intitulada A Bela Lindonéia ou A Gioconda do Subúrbio, de 1966, que pode ser assim descrita: o suporte é um espelho, no centro há o desenho de uma imagem feminina jovem, com marcas sombreadas, junto ao olho esquerdo, nariz e lábio inferior. Esse recurso da sombra pode ser simplesmente só a sombra, mas também sugere que tal pessoa possa ter sido agredida. Tal como alguém posando seriamente para uma fotografia 3x4, Lindonéia destila em seu olhar uma expressão de susto ou irritação. O desenho caricatural, de vertente serigráfica, e efeito pop nas cores alaranjado e preto, é emoldurado com motivos florais pintados no estilo rococó abrasileirado, kitsch, tal como os antigos entalhes nos vidros que cobriam os porta-retratos de casamentos de nossos avós. O espelho é montado num suporte de cartão(?) na medida de 60 x 60 cm, na mesma cor alaranjada, onde aparecem, como se fossem uma página de jornal sensacionalista, os títulos e legendas: "UM AMOR IMPOSSÍVEL". "A BELA LINDONÉIA DE 18 ANOS MORREU INSTANTANEAMENTE", fazendo uso dos registros textuais, tão ao gosto da pop art ― "antropofagiza" e vai além de Andy Warhol. Tanto a representação pictórica quanto o título justificam a hipótese de se tratar de um assassinato, de um acerto de contas amoroso; e são referências de um caso policial, da crua crônica policial brasileira. Por outro lado, o nome Gioconda é um claro contraponto caricato e irônico ao "sorriso" enigmático de Mona Lisa de Da Vinci. Mas, se ao invés de vítima, Lindonéia fosse ré? Certamente encimaria a obra os dizeres "Procurada", tão próxima está da técnica dos cartazes de "Wanted", difundida pelos westerns ou filmes de cowboy americanos. Naquele tempo, na era pré-industrial, esses cartazes eram reproduzidos com a tecnologia mais avançada que existia, as máquinas minervas, de impressão manual, e no seu tempo ― na era industrial ― o artista da pop art também fez uso dos cartazes, usando técnicas de reprodução de uma era pré-industrial e baixas tiragens numeradas. Vale lembrar, pouco tempo depois de Lindonéia vir a público, cartazes "Procura-se" começaram a "decorar" as paredes das cidades, em aeroportos, estações de trem, estações ferroviárias e halls de edifícios públicos. Esses cartazes produzidos pelo milionário aparato repressor da ditadura militar também fez uso de técnicas de reprodução da era pré-industrial, tal como os conhecidos "lambe-lambes". As fotos em clichês dos "terroristas políticos perigosos procurados" eram aquelas que menos os favoreciam esteticamente, figurando como "bandidos". E ainda havia a advertência: "Para a sua segurança, coopere, identificando-os ao órgão policial". O uso de uma técnica superada (impressão em máquinas gráficas manuais) gerava o sentido do rebaixamento. Seria uma maneira de rebaixar ainda mais o que já era perseguido, humilhado e enxovalhado? Mas, voltemos a Lindonéia. Instigante deve ser o efeito da apreciação da obra quando ela é vista (raramente, pois é de coleção particular) ao vivo numa parede de galeria. Ali a imagem do espectador é refletida no suporte espelhado e se funde com a figura feminina. Esse é mais um aspecto da estranheza desse trabalho de Gerchman, ausente quando se aprecia a imagem impressa em papel. Mas por que a importância de Lindonéia extrapolou o circuito das artes plásticas e se incorporou no imaginário da música brasileira? Consta que Nara Leão encomendou a Caetano e Gil uma canção inspirada nesta obra. O resultado é a conhecida composição em ritmo abolerado que Nara, de forma delicada, registrou em sua participação no disco seminal do movimento tropicalista, Tropicália ou Panis et Circensis (Philips, 1968). "Lindonéia" (ao lado de "Miserere Nobis", "Coração materno", "Panis et Circenses", "Parque industrial", "Geléia geral", "Baby", "Três caravelas", "Enquanto seu lobo não vem", "Mamãe coragem", "Batmakumba" e "Hino do Senhor do Bonfim") se soma ao conjunto do manifesto e não causa estranhamento ― nem pelo arranjo kitsch orquestral de Rogério Duprat ― tão colada está na proposta de miscelânea estética que era a Tropicália, que comemora 40 anos, mas ressalta o drama de Lindonéia, que é um pouco o drama de todos, vivendo no estado ditatorial daquele emblemático ano de 1968, quando a "velha ordem" foi contestada. A letra da canção "Lindonéia" é quase descritiva da representação e grande parte dos versos são sugeridos pela apreciação da obra, a começar pelo suporte. Está dito na primeira estrofe: "Na frente do espelho Sem que ninguém a visse Miss Linda, feia Lindonéia desaparecida" O nome Lindonéia remete a uma pessoa bonita, mas o registro cafona e popularesco do nome sugere também que ela seja um retrato da miscigenação brasileira. Na segunda estrofe: "Despedaçados Atropelados Cachorros mortos nas ruas Policiais vigiando O sol batendo nas frutas Sangrando" Define-se algo que está sugerido fora da imagem de Lindonéia, mas no clima do crime descrito no suporte alaranjado, como se fosse a primeira página de um jornal. E "policiais vigiando" é também a expressão escarrada da ditadura que se vivia naquele tempo. A terceira estrofe: "Lindonéia, cor parda Fruta na feira Lindonéia solteira Lindonéia, domingo Segunda-feira Lindonéia desaparecida Na igreja, no andor Lindonéia desaparecida Na preguiça, no progresso Lindonéia desaparecida Nas paradas de sucesso" Remete ao centro da representação e define a possível origem branco/mulata da personagem, no seu cotidiano de trabalhadora, talvez empregada doméstica, um tipo brasileiro, imigrante, despossuída e descreve retratos do cotidiano de Lindonéia, sua religiosidade, sua denguice, seu sonho de se aproximar do sucesso, de vencer na vida, entrecortado com a lembrança de que este não será um sonho com final feliz, pois Lindonéia está morta. É um retrato do alto e do baixo, do sublime e do cruel. A canção se encerra com: "No avesso do espelho Mas desaparecida Ela aparece na fotografia Do outro lado da vida Despedaçados, atropelados Cachorros mortos nas ruas Policiais vigiando O sol batendo nas frutas Sangrando" Aqui os versos remetem novamente para dentro da representação ao se referir ao espelho, mas ao outro lado do espelho, pois a retratada é uma mera fotografia de uma vida "do outro lado da vida", isto é, a morte; e mais uma vez lembra o universo de um cotidiano violento referido pela periferia do suporte. A repetição da segunda estrofe reitera o estado policial. No final de todas as estrofes, um refrão ― com a mesma função do coro na tragédia, como se fosse uma voz coletiva ― permite ao poeta o desfrute de assumir aquele sofrimento ao afirmar: "Oh, meu amor/ A solidão vai me matar de dor". Lindonéia (representação gráfica) e "Lindonéia" (música), ambas cumprem assim a função de dar sentido a uma realidade perversa, uma tragédia brasileira. Antônio do Amaral Rocha |
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