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Segunda-feira, 10/3/2008
Sobre Sherlock Holmes
Flávio Moreira da Costa

Houve uma época que algum inglês, possivelmente desocupado ou excêntrico, relacionou as três personalidades mais conhecidas do mundo: Papai Noel, Mickey Mouse e Sherlock Holmes. Não me perguntem qual o critério ou a finalidade da escolha, mas o curioso que se trata de duas personalidades ficcionais e uma do imaginário religioso-popular. Mesmo sem acreditar em Papai Noel, fica difícil não acreditar na vitalidade de Sherlock, um dos raros personagens da literatura que virou substantivo em vários idiomas ― como sinônimo de detetive.

Ele faz sucesso há pelo menos 120 anos, desde que seu primeiro romance, Um estudo em vermelho, foi publicado em 1887, depois ter seus originais recusados por três editoras, na maior "touca" editorial da História. De lá pra cá, já produziu um rio de dinheiro, em todos os países em que foi publicado. (O tal do inglês desocupado bem que poderia fazer esta conta.)

No Brasil também, pelo menos há uns 60 anos. Foram dezenas de editoras, centenas de edições, e cabe aqui destacar a antiga e hoje desativada Melhoramentos que, ainda nos anos 50, não se contentou em publicar só a série de romances e contos de Sherlock Holmes: editou também os romances históricos de Conan Doyle, como A campanha Branca e Sir Nigel, As aventuras... e As façanhas do brigadeiro Gerard (há um conto dele na recente antologia Os melhores contos que a História escreveu, Nova Fronteira), e volumes de contos de boxe, de piratas etc, livros que as editoras atuais esqueceram (outra "touca"?) e que os leitores costumam catar nos sebos.

Ao mesmo tempo, era bem verdade que Sherlock Holmes jogava por terra todas as criações do autor que não o tivessem como personagem. Até o dia em que o criador, exausto, resolveu matar a criatura. Conan Doyle justificou-se: "Tive uma tal overdose de Holmes que me sinto em relação a ele como em relação a um pâté de foie gras que certa vez comi demais. Tanto que até hoje sinto náuseas só de ouvir o nome.(...) Censuraram-me muito por ter dado cabo desse cavalheiro, mas sustento que não foi assassinato; foi um justificável suicídio em autodefesa, porque, se eu não o matasse, ele certamente teria me matado."

Matar um personagem é direito inalienável de qualquer autor, certo? Certo, mas a decisão do autor desafiaria até mesmo o rigor lógico-dedutivo do famoso detetive de Baker Street. A reação foi enorme e inesperada: milhares de cartas reclamaram e o editor do Strand Magazine (que publicava seus contos) teve de se explicar junto a seus acionistas, pois mais de vinte mil assinantes (quantas tiragens de livros isso não representaria?) cancelaram suas assinaturas em protesto. E Conan Doyle não teve outra saída: ressuscitou Sherlock Holmes. A criatura se impôs definitivamente sobre o criador. Sob aplausos da arquibancada.

Portanto, mais do que justificável o fato de que não faltem edições de Sherlock na praça, até hoje, sejam esparsas e incompletas, como em livros de bolso (L&PM), seja, de uns dois anos para cá, dos contos e romances completos de Sherlock Holmes, sempre em dobradinha com o tranqüilo Dr. Watson.

É o caso das edições quase ao mesmo tempo da Zahar e da Ediouro. Ambas, na realidade, têm cerca de dois anos: a da Ediouro nada mais é do que a reedição, em um só volume, da edição anterior, em três volumes. Já a Zahar vem publicando o Sherlock completo em seis volumes. O leitor, é claro, poderá optar por uma ou por outra, a seu critério, seja pelo tamanho, pela facilidade de leitura ou por outra razão qualquer. Eu me abstenho de escolha pessoal, mas é inevitável salientar alguns diferenciais objetivos.

A edição da Ediouro reaproveita traduções antigas, retocadas ou revisadas, traz o texto em duas colunas (à la Reader's Digest) e vai direto ao assunto, sem sequer uma nota situando autor e obra. Já os livros da Zahar, baseiam-se na edição crítica recente ― e notável ― de Leslie S. Klinger, cheia de ilustrações da época, notas explicativas e com uma introdução, se não definitiva, com certeza riquíssima, assinada pelo próprio Klinger. E novas traduções foram feitas ― a cargo de Maria Luiza X. de A. Borges. Apresenta-se como "edição definitiva". Está bem próximo disso.

Depois de um pequeno prefácio e de uma nota de John LeCarré, a introdução da edição da Zahar, "O mundo de Sherlock Holmes" estende-se por cerca de 40 páginas. Começa situando a "Era vitoriana", segue com "A vida registrada de Sherlock Holmes"; depois, "A vida registrada do Dr. Charles H. Watson"; em seguida "A vida pública de Sherlock Holmes e John H. Watson"; registra as "Imitações" e faz "Um estudo do cânone"; finalmente alinha "Os amigos de Sherlock Holmes". Depois é só (só?) ler os quatro romances e as dezenas de contos e retirar sua carteira de sherlockmaníaco e (numa visita ao Museu da Baker Street, em Londres) registrar seu diploma de PhD em Sherlocklogia.

A não ser que você não acredite em Papai Noel. Nem em Mickey Mouse. Nem em Sherlock Holmes. Neste caso, elementar, meu caro não-leitor: você não vai mesmo se interessar por este artigo, nem muito menos ter de optar por esta ou aquela edição. Mas reconheça que nosso personagem/personalidade é resistente a tudo e a todos ― inclusive a seu criador.

Não tem mistério. Mas vai entender.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 17 de fevereiro de 2008. Leia também "Em Londres, à caça do mito elementar".

Flávio Moreira da Costa
Rio de Janeiro, 10/3/2008

 

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