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Segunda-feira, 20/10/2008
O belo e o escalafobético
Miguel do Rosário

Escrever sobre arte é como escrever sobre Deus. Quanto mais pesquisamos o assunto, mais profundamente sentimos seu mistério. E talvez a arte deva mesmo seu sentido ao que existe de misterioso, de infinito, de inatingível em nossa cultura e em nossa história. Mas enfim, qual o critério para se afirmar que tal obra é bela e outra não? Para Kant, que inaugurou a filosofia estética moderna, o belo na arte é o que nos proporciona prazer. Não o prazer vulgar das sensações físicas, como o deleite de se beber um vinho famoso. Tampouco o prazer de realizar ou ver realizada uma ação moralmente boa. A sensação estética causa uma espécie distinta de prazer, mais espiritual, mais profunda, que agita nosso entendimento e nossa imaginação. Durante a contemplação da obra, estas duas faculdades do conhecimento brincam, jogam e dançam. Utilizando a metáfora preferida de Kandinsky, a arte não seria útil nem agradável, mas teria o poder de tocar um piano existente em nosso espírito, fazendo-o emitir uma melodia suave ou brutal, amorosa ou sombria, gerando um prazer incomparável. A pior violência infligida pelo capitalismo aos trabalhadores, dizia Marx, é a falta de dinheiro, tempo e educação necessários para se maravilhar e se transformar diante de um quadro de Leonardo ou uma sinfonia de Beethoven.

Entretanto, fala-se em crise da arte. De fato, diante da imensa gama de instalações escalafobéticas, experimentações multimídia e bizarrices conceituais, que desde algum tempo invadiram nossos museus e galerias, lastreadas no discurso de que a arte tradicional estaria ultrapassada, o público se depara, enfastiado, com obras que não lhe despertam nenhum prazer, não estimulam a imaginação e nem atiçam a inteligência. Entre um bocejo e outro, lê explicações acadêmicas, em linguagem metafísica, sobre a suposta qualidade revolucionária daqueles trabalhos. Enfim, o espectador vai para casa certo de que é um ignorante incorrigível e decidido a não pisar novamente numa galeria de arte. E os aspirantes a críticos de arte resolvem seguir ― antes tarde do que nunca ― uma carreira menos intangível.

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Antes de continuar, cumpre ressalvar duas exceções relevantes da arte conceitual brasileira, por sinal seus pioneiros no país: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Os inesquecíveis parangolés seguramente estarão para sempre inscritos nos anais de nossa história de arte. Mas, conforme muito bem argumenta o crítico Rodrigo Naves, em artigo recente, houve uma supervalorização destes dois artistas em detrimento de figuras mais expressivas de nossa modesta porém singela história de arte. Curadores internacionais, sobretudo americanos e europeus, interessados em divulgar as obras conceituais de seus próprios países, pescaram no terceiro mundo os representantes do mesmo estilo. Fazendo isso, acabaram perturbando a evolução singular de nossas artes, com uma desvalorização injusta de grandes nomes como Iberê Camargo, Oswaldo Goeldi e Flávio Shiró. Desvalorização, naturalmente, não entre os amantes das artes, mas nos circuitos oficiais de divulgação cultural, que passaram a cortejar seguidores de Oiticica nem sempre ― ou quase nunca ― à altura do mestre.

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Nos últimos anos, as grandes exposições internacionais vêm encorajando um determinado tipo de arte extremamente duvidosa, apresentando como obra um bando de peladões em fila, além de outras dezenas de obras-evento que, embora inegavelmente exóticas, esgotaram seu efeito estético sobre o público. Urinóis e rodas de bicicleta não causam mais nenhum espanto. A ousadia de Duchamp (1908―1968) foi importante para libertar a arte de todas as amarras, mas agora esta mesma liberdade deve ser usada com responsabilidade, técnica e objetivo estético. A perplexidade das pessoas diante de formas vazias de expressão é confundida com estranhamento por críticos dóceis, ideólogos fervorosos das teses fragmentadas e fragmentantes do pós-modernismo. Mas no fundo grande parte destas obras causam somente náusea e tédio. Então, os artistas conceituais, desesperados com o enfado crescente do público, apelam para as soluções mais patéticas, como o caso daquele que se mutilou diante dos visitantes de uma exposição. O estranhamento provocado por uma obra não é dissociado da sensação de prazer que sentimos diante do enigmático. As figuras humanas distorcidas de Francis Bacon (1909―1992) continuam a nos causar uma espécie de repulsa, mas não deixam de acender nossa imaginação e entendimento, fazendo-nos refletir sobre a condição humana e despertando um intenso prazer estético. Mesmo as pinturas de Basquiat (1960―1988), que nos assustam num primeiro momento, acabam por fazer vibrar nossas cordas íntimas, deixando em festa o espírito que consegue captar, no meio daquelas formas extravagantes, a poesia intensa e trágica deste nova-iorquino rebelde. Uma instalação escalafobética, como aquelas de Bispo do Rosário, pode eventualmente ser genial, mas isso só ocorre porque consegue causar forte prazer estético no espectador.

A discussão sobre a validade de uma obra de arte nos remete novamente à tese kantiana, que aponta outro fator determinante na identificação do belo na arte: a universalidade. A beleza na obra não é uma questão de gosto individual do espectador. Quer dizer, uma pintura de Delacroix não é bela porque tu ou eles determinaram, mas sim porque todos gostamos dela, sentimos prazer com ela. Esta universalidade é obrigatória, pois sem ela simplesmente não existiria arte; e significa que a beleza artística é guardiã de arcanos poderosos que afetam a todos os membros de nossa civilização. Afeta de maneira estética, quer dizer, através do prazer estético, que tem o poder de atingir tanto nossa consciência mais superficial como as camadas mais ocultas de nosso inconsciente.

Esta comunicabilidade universal, fator necessário da boa arte, nos conduz aos pioneiros da arte moderna, que realizaram ao final do século XIX uma verdadeira revolução estética, ao resgatar a poesia épica dos grandes mestres renascentistas e ao mesmo tempo conquistar um público mais amplo, através da expressão, sob uma linguagem atualizada, das angústias e anseios de liberdade dos novos tempos. E, de fato, após uma primeira fase de perplexidade e mesmo hostilidade (Cézanne foi chamado de louco, tarado, que pintava sob o efeito de delirius tremendus), os modernos conseguiram multiplicar de maneira extraordinária o público amantes das artes. Não fosse esta preocupação de tocar ao coração das pessoas, de um Degas, Gauguin e Van Gogh, talvez a arte moderna não se difundisse de maneira tão avassaladora pelos quatro cantos do mundo, rompendo todo elitismo e atingindo, com sua mensagem carregada de humanismo, todas as classes sociais.

Vale lembrar um artigo de Baudelaire, publicado num jornal parisiense, por ocasião da morte de Delacroix, em que ele relata que um dia viu o grande pintor romântico a passear no Louvre, em companhia de sua velha criada, explicando-lhe os mistérios da escultura assíria. Filho de um ministro da revolução francesa, Delacroix cultivou em toda a sua vida esta paixão pelo homem e seu destino, esta esperança ardente na possibilidade de libertação através do conhecimento e da arte. Da mesma forma, algumas décadas depois, Picasso irá resgatar este mesmo humanismo irredutível, sob uma forma mais objetiva e racional, interferindo conscientemente no curso da história. Não custa recordar de Guernica, pintada em 1937, que foi uma resposta calculada e contundente ao massacre de civis por aviadores alemães, que a pedido de Franco bombardearam a pequena cidade espanhola insurgente.

Falando em humanismo, vale citar este movimento formidável, o expressionismo alemão, fundado por jovens inspirados na revolução cromática de Van Gogh e no existencialismo sombrio e desesperado de Munch. A Alemanha do início do século XX ― unificada sob a mão-de-ferro de Bismarck e realizada enfim sua própria revolução burguesa ― emergia como uma grande potência econômica e cultural. As obras de Kant, Hegel e Marx incendiavam os círculos intelectuais, gerando correntes variadas de pensamento e instilando na sociedade a ânsia por reformas que minorassem a miséria de grande parte da população. Os expressionistas refletiam esta inquietação. O advento da Primeira Guerra Mundial, que põe a nu os conflitos de classe, irá intensificar ainda mais a verve revolucionária de pintores como Kirchnner, Otto Dix e Max Beckman. Alguns anos depois, serão banidos e execrados pelos nazistas, que irão lhes atribuir a excêntrica qualificação de arte degenerada. Há uma curiosa anedota contada por aquele que foi um de nossos maiores críticos de arte, Mario Pedrosa, em que ele relata uma conversa com Georgio Morandi, em Bolonha. O grande pintor de naturezas mortas lembra que, em 1942, no auge da glória do III Reich, Hitler e Mussolini inauguraram pessoalmente uma exposição fascista em Roma, apoiada e divulgada pela mídia oficial e incensada pelos críticos. Morandi decide, junto com um amigo, ir à capital conhecer os novos artistas que tanto agradavam Il Ducce. Ao ver as pinturas retratando mancebos de raça pura saudando seus líderes, matronas heróicas e exércitos em armas, faz uma observação visionária a seu companheiro: "Com esta pintura, acho que vamos perder a guerra".

Voltando a nossas plagas tropicais, vale a pena sair dos círculos convencionais e andar um pouco pela periferia cultural de nossas grandes cidades, para notar que amadurece nas sombras uma nova geração de artistas plásticos, vacinados contra este vanguardismo importado e conscientes de seu papel num país como o Brasil, dilacerado por agudas mazelas sociais. Isso não significa que sacrificam sua arte em prol de um panfletarismo vulgar. Muito pelo contrário. Os artistas que os neo-liberais anos 90 relegaram aos subterrâneos desenvolveram uma linguagem vigorosa, original e ferozmente moderna. Alguns se apoderaram inclusive de técnicas contemporâneas, como colagens e reciclagem de objetos cotidianos, sem esquecer a tradição e a lição dos grandes mestres do passado.

Existem diferenças fundamentais entre os falsos e os legítimos artistas, que podem ser avaliadas pela técnica apurada, resultado de longos e exaustivos exercícios, pela força expressiva, sofisticada sem ser hermética e, sobretudo, por esta beleza misteriosa e profunda que só as grandes obras possuem. Beleza esta que nos paralisa e nos transforma, interferindo em maior ou menor grau em nossa cultura. O urinol de Duchamp pode ter sido muito importante para a história da arte, mas não quero crer que valeu mais que o David de Michelangelo.

Pode-se admitir que não existe, necessariamente, relação entre arte e a luta de classes, mas ninguém pode negar que as obras realmente belas são históricas e marcam as épocas. Se são históricas, estão inseridas, de maneira participante, neste magma eternamente em transformação a que chamamos vida. Participando da vida, muitas vezes decisivamente, as obras são também políticas, visto que influenciam no rumo histórico trilhado pelo homem.

Finalizando, os argumentos expostos até aqui têm um objetivo claro: é chegado o momento de pararmos de falar em fim da arte. O patrimônio artístico é peça fundamental no desenvolvimento cultural e político de um povo, e em sua projeção para o resto do mundo. É tempo de inaugurarmos uma nova crítica, mais poética e mais apaixonada, sem deixar de ser esclarecida e ponderada. Menos acadêmica e técnica, mas respeitando a tradição bibliográfica. Enfim, a arte pode ser misteriosa, mas o prazer estético, que sentimos em sua apreciação, é real e palpável e, através dele, pode-se avaliar com alguma objetividade o valor da obra. Com uma crítica corajosa, moderna e afirmativa, talvez consigamos mudar as políticas públicas, que relegam ao limbo e à pobreza os melhores talentos. E contribuir para que haja uma renovação saudável dos critérios de seleção vigentes em nossos espaços culturais.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no Oleo do Diabo, blog de Miguel do Rosário. Leia também: "A arte contemporânea refém da insensatez".

Miguel do Rosário
Rio de Janeiro, 20/10/2008

 

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