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Segunda-feira, 12/1/2009 A volta de Gombrowicz Flávio Moreira da Costa Uma outra possibilidade (mais pessoal) seria voltar no tempo, recuar mais de 30 anos e chegar à época da minha tradução (a primeira, pela Expressão e Cultura, de 1970, quando saíram também os contos bizarros de Bakakai; houve outra, da Nova Fronteira; esta agora é a terceira, embora não haja nenhum registro sobre isso nesta edição) de A Pornografia. Novo no ofício e na idade, cerquei-me de todos os cuidados: as traduções do romance para o inglês (não era boa), para o francês (boa) e para o espanhol (talvez a melhor, já que o próprio autor reviu a tradução). Li tudo o que encontrei de e sobre o autor ― nessas três línguas, já que não havia nada em português. E ainda ousei escrever um ensaio sobre ele para o Correio da Manhã da época (incluído no livro Os subúrbios da criação, de 1979), além da orelha, que aqui reproduzo, com mínimas alterações: "Quando a metáfora e a metafísica se encontram no acabamento tantas vezes incômodo de um ato de criação, o que se tem como resultado é uma literatura insólita. Nenhuma outra palavra melhor para qualificá-la. A pornografia é um livro insólito.// Não o leia, portanto. Não o leia, a menos que possa perceber que pornografia não é uma categoria externa ao homem, muito menos uma exibição pública de sexo. A pornografia ― propõe Gombrowicz ― somos nós. Ou são eles. A pornografia não é, daí a força de sua (não) existência. Pois talvez nós estejamos marcados, sobretudo por aquilo que não somos. E isso ― paradoxalmente, mas só na aparência ― marca o nosso próprio ser. // A vida é muito complicada para torná-la simples. A vida é muito simples para fazê-la complicada. Falo agora em "vida", depois de ter falado em "metáfora" e "metafísica". E não é à-toa: essas três categorias, ou melhores, esses três elementos reais ― metáfora, metafísica e vida ― servem para definir e explicar o que seja literatura (pornografia?) para esse polonês perverso (?), apátrida (o que é isso?) e genial (pelo menos, escritor de gênio). E não há censura possível de impedir sua existência: é tal a sutileza que não há nesse livro um palavrão sequer. As coisas acontecem debaixo do pano. Ou dentro da cabeça. // Gombrowicz é um homem de definições próprias. Defende a imaturidade contra adultos e maduros. O jovem é uma possibilidade selvagem de vida; o adulto é persona (máscara, representação, Forma). Os jovens são; os adultos estão. // Não cheguei a resumir o livro ― seria traí-lo. Esse romance não tem história, no sentido tradicional; seu grande personagem é a vida mental de um homem, um personagem chamado Gombrowicz. E o leitor não deve ter muita certeza de seus próprios (pré)conceitos; deve deixar-se levar pela trama diabólica (e quase que, no todo, subterrânea) do autor: pois, não tendo história, esse romance é uma das histórias eróticas mais estranhas que já foram escritas." Termina a orelha. Desculpe sua transcrição, e o tom grave do jovem autor que eu era. Compreenda-se: aos vinte e poucos anos, às vésperas de lançar meu O Desastronauta, tomei doses sucessivas do autor na veia. Se não tivesse partido para outra coisa, teria morrido de overdose. Restou o aprendizado e talvez uma marca (eu diria, indelével, ou imperceptível), de As armas e os barões até meu recente Alma-de-gato. Afinal, ninguém, ainda mais quando jovem, mergulha na obra de um autor como Gombrowicz impunemente. Essa minha volta há mais de trinta anos, sob o pretexto do relançamento de Pornografia (agora sem o artigo "a"), pela Companhia das Letras, não poderia ter o mesmo impacto em mim ― e talvez em outros leitores que se aventurarem agora em entrar na obra deste "argentino deformado pelos trópicos", como ele mesmo se definiu certa vez. Mas continua valendo, pelas pistas que o autor deixava já em seu primeiro romance, Ferdydurke: "Para comunicar-se com o exterior e, sobretudo, com os outros homens, o homem necessita da forma (e entendo por 'forma' todas as nossas possibilidades de manifestação, como a palavra, a idéia, os gestos, as decisões, atos etc.). Porém essa forma limita-o, deforma-o, viola-o. Expressando através de um ritual já estabelecido de atitudes e forma de ser, sempre falseando e sendo ator." Duas palavrinhas ― sobre o título e a tradução. Depois que deixamos de lado a percepção literal da palavra "pornografia" (bastaria desconfiar dos dicionários e desligar a televisão), vamos ver que o título é, na realidade, um achado: além de dar um novo significado à palavra (falei antes em "metáfora" e "metafísica", não falei?) ela ― ou ele, o título ― esconde e acolhe certo tom de perversão sexual de que o texto está impregnado. Já a tradução se inclui numa tendência atual (louvável, aliás) de se utilizar a língua original como ponto de partida. Mas se esquecem que tradução é, também, ou principalmente, ponto de chegada. A tradução em questão é correta, mas nem sempre consegue o nível de linguagem conquistado pelo autor ― e às vezes derrapa em opções vocabulares equivocadas. O verbo "adentrar", por exemplo, é usado umas cinco vezes nas primeiras páginas da narrativa ― logo esse "adentrar" folclórico dos nossos locutores esportivos. ("Pelé adentrou o gramado e...") Nada que um trabalho editorial não pudesse ter evitado. São detalhes que, longe de desclassificar a edição, não deveriam ― como não devem ― afastar o leitor atento que não se quer enganado por outro tipo de pornografia ― a dos cabeleireiros e livreiros de Cabul, caçadores de pipas e congêneres. É uma oportunidade de se entrar em contato com "um fenômeno que não era deste mundo. De outro. Do mundo humano." Ou seja, a boa, velha e resistente literatura. O último a chegar é mulher de padre. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, em 03 de janeiro de 2009. Para ir além Flávio Moreira da Costa |
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