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Segunda-feira, 28/10/2002 Matisse e Picasso, lado a lado Alberto Beuttenmüller Tao Te King: (...) significado e palavra se harmonizam, mutuamente; diante e detrás se seguem, mutuamente; é a lei da natureza. Por isso, o sábio permanece na não-ação, pratica o ensinamento sem palavras. Lao Tse O Grand Palais de Paris expõe - até o dia 6 de janeiro de 2003 - o diálogo pictórico entre dois artistas geniais do século XX, diálogo silencioso e provocativo entre o francês Henry Matisse (1869-1954) e o espanhol Pablo Picasso (1881-1973), dois pintores que tinham só um ponto em comum: amavam Paul Cézanne (1839-1906). Matisse e Picasso conheceram-se através de Gertrude Stein, em 1906, talvez um pouco mais tarde. Observaram-se, estranharam-se, dialogaram de perto e de longe, detestaram-se e respeitaram-se até a morte. Em 1906, Matisse era o reconhecido chefe dos Fauves. Picasso era ainda um novato, mas já fazia críticas ácidas, após chegar a Paris, em 1904. Os dois artistas foram rivais, odiando-se e amando-se a um só tempo. Possuíam temperamentos diametralmente opostos, como Apolo e Dionísio. Foi o encontro do sábio Matisse com o camaleão Picasso, do intelectual Matisse ante o impulsivo Picasso, do burguês conservador Matisse contra o boêmio sensual Picasso. Apesar disso, nasceu entre os dois artistas uma fraterna rivalidade. Houve disputas amigáveis e visitas mútuas aos ateliês, daí a mostra no Grand Palais estar atraindo grande público, depois de ter sido exibida na Tate Gallery de Londres. Se ao leitor tivesse a oportunidade de ver a mostra inglesa, perceberia que a exposição inglesa foi mais didática do que a mostra francesa. A curadora francesa Isabelle Monod-Fontaine explica: Uma exposição como esta, que pretende reproduzir um diálogo entre os dois pintores, deve ter por objetivo afiar o olhar do visitante sobre ambos os artistas. O espectador é convidado a discernir as identidades de cada um incentivar o exercício do olhar. Há, é claro, um certo confronto aqui, mas procuramos, sobretudo, incentivar o exercício do olhar, contrapondo obras aparentemente diversas em uma mesma parede. Seguindo esta lógica, pareceu-nos inoportuno discursar por meio de muitos textos nas paredes. Ao contrário, quisemos fazer o espectador trabalhar. Sei, não. Não se deve partir de pré-conceitos. Como afiar o olho de um observador que ignora a disputa havida entre os dois pintores? Como fazer trabalhar o fruidor que entra na exposição desarmado de informações? Pelo menos o inglês desinformado, que esteve na Tate Gallery, recebeu um pequeno fascículo gratuito, junto com o seu bilhete. Não cairei nesse erro. Em 1905, no Salão de Outono, em Paris, pintores jovens ocupavam uma sala. Eram eles: Henry Matisse, Raoul Dufy, Albert Marquet e Maurice Vlaminck. Havia na sala uma pequena estátua de Cupido ou Eros, esculpida em estilo florentino, uma contrafação de Donatello. Ao comentar o Salão de Outono, um crítico disse que Donatello se encontrava em uma verdadeira cage aux fauves (jaula de feras selvagens). Isso porque os jovens pintores usavam cores violentas, sempre em tons puros, sem misturas ou nuanças. Eram vermelhos, azuis, verdes e amarelos estridentes, de doer nos olhos. A denominação pegou, fez sucesso, universalizou-se e passou a designar os jovens atrevidos no uso das cores. Nascia o Fauvisme ou Fovismo, influenciado por Gauguin e Van Gogh. Por isso, quando Picasso conheceu Matisse na casa da escritora norte-americana Gertrude e do colecionador Leo Stein, Matisse estava na plenitude do sucesso como Fauve, e Picasso estava às vésperas de realizar seu primeiro grande feito, o Cubismo, com o famoso quadro Les Demoiselles D'Avignon, que não eram senhoritas, mas prostitutas, e não eram de Avignon, interior da França, mas de Avignon, um bairro onde ficava o bordel. Há um verdadeiro desafio de temas na mostra: de um lado a Lição de Piano, de Matisse; e de outro, os Três Músicos, de Picasso. Este disse certa vez que jamais alguém observou tão bem a pintura de Matisse, como eu; e ele a minha. Mais que exposição, trata-se de um confronto entre dois gênios pintores do século XX, um ensaio pictórico, em que ambos se provocam, mutuamente. O que há na verdade é uma luta surda entre os dois pintores para tentar provar o que é mais importante na pintura: a cor (Matisse) ou a forma (Picasso). Aliás, Picasso estilhaçou a forma, quando quase a destruiu, no Cubismo Analítico, afastando-se da idéia de Cézanne que era, justamente, tornar o objeto na pintura mais nítido, nitidez esta perdida quando os impressionistas usaram a luz fugaz da natureza em suas telas, fazendo com que suas obras ficassem quase abstratas. Além disso, o Cubismo analítico foi monocromático, Picasso só usava tons cinzas; Braque apenas tons terras. O Cubismo Sintético foi à volta a Cézanne e à sua tese: "com o cone, a esfera e o cilindro posso recriar a natureza". O Cubismo nasceu em 1907-8 com As Senhoritas de Avignon, embora haja divergências. Há quem diga que Picasso se apossou da descoberta de Georges Braque (1882-1963) e que este teria sido o verdadeiro descobridor do Cubismo. Muitos exegetas dos dois artistas faziam comparações sem fim da rivalidade, esquecendo-se da amizade que fruía entre ambos e que os dois cultivavam; de suas disputas amigáveis, das visitas mútuas em seus ateliês, das obras que trocaram em 1907, troca que demonstra cada vez mais as diferenças de temperamentos: o Retrato de Marguerite, de Matisse, versus a Moringa, xícara e limão, de Picasso. A relação de fraterna rivalidade insere-se em outra mostra, a do Kimbell Art Museum, em Forth Worth, Texas, que sintetizou os resultados da pesquisa do historiador da Arte Yves-Alain Bois, a quem todos devem, notadamente os curadores da mostra do Grande Palais. O resultado desta mostra é a celebração da alegria da criação e da vida, com obras de grande valor e importância, ao mesmo tempo em que discutível, pelas aproximações e ausências de comparações, ao longo de seu percurso. E para ilustrar, ao mesmo tempo, a alegria que emana dessa mostra discutível, basta o exemplo do confronto na mesma sala de A Lição de Piano e A Dança, de Matisse, contra Os três músicos e A Dança, de Picasso. - Jamais alguém olhou tão bem para a pintura de Matisse, como eu; e ninguém olhou para a minha pintura melhor do que ele - enfatizou Picasso. Este comentário de Picasso por si só já daria ensejo ao confronto, ora realizado. No entanto, esse tipo de exercício do olhar apresenta dificuldades. O que será olhar bem para um quadro de um pintor? Olhar o quê? Olhar para o quê? Um pintor tem um olho treinado para olhar os problemas essenciais da pintura: linha, cor, densidade, textura etc, mas isso interessa ao público? Picasso e Matisse miravam os quadros de Cézanne e entravam em êxtase, enquanto toda a Paris ria, porque Cézanne passava por cima das regras, às quais o olhar do espectador já se acostumara. A perspectiva de Cézanne derruía o olhar do fruidor, notadamente o observador que olhasse mediante as regras neoclássicas. O nosso Volpi, quase analfabeto tinha um olho inteligente, por isso chegou a ser eleito o melhor pintor brasileiro. Ele sabia olhar e perceber o que na obra dos outros lhe interessava. De volta ao confronto entre Matisse e Picasso, seria bom lembrar que os grandes pintores não param de copiar uns aos outros. Picasso foi mestre nessa antropofagia, por sua destreza em deglutir, digerir e regurgitar quadros de seus colegas do passado. Às vezes, ele o fazia décadas depois, como parece que ele fez com Braque. Picasso plagiava até a si mesmo, mas com grande talento, sem dúvida. O confronto entre Matisse e Picasso é uma idéia e tanto; falta saber que quadros melhor se adaptariam à confrontação. Este é o cerne da questão. Por isso, toda essa questão não é para leigos, mas para quem possui o olhar que sabe. - Picasso quebra as formas, enquanto eu sou o servente delas - disse Matisse. - Eu acrescento, subtraio, desloco, enquanto Matisse deixa o traço vir naturalmente e a se compor sozinho e, assim, refazer o modelo - responde Picasso. Essas frases estão nas paredes da exposição, em tons marrons, e servem para chamar a atenção do visitante para o confronto ali existente. As frases ressaltam os diferentes modos de cada um dos pintores resolver os problemas de espaço, cor, linhas, além das relações que existem, quando o pintor tenta representar a realidade à sua maneira. Este problema da representação do mundo físico é o cerne da questão, depende do psicofísico de cada qual. O percurso da exposição é quase todo cronológico, mas há exceções, e, ao mesmo tempo, é temático: naturezas mortas, retratos, nus. Os desenhos talvez sejam o ponto alto desta luta entre os dois gigantes da pintura do século XX. Estes conjuntos de desenhos estão em cada andar da exposição. Lembram-nos que, antigamente, atrás de um bom pintor havia sempre um ótimo desenhista. Muitas dessas demonstrações são forçadas, mas valem, apesar de que algumas delas são aberrações da curadoria. Tais confrontações são perdoadas, uma vez que a intenção de fazer da fraterna rivalidade entre os dois pintores trouxe obras pouco vistas em uma mostra, como é o caso do Retrato de Madame Matisse, 1913, obra que vale ser vista e que veio do Museu de São Petersburgo. Cronologia de encontros e desencontros * Inverno de 1906 - encontro de Matisse com Picasso na casa de Leo e Gertrude Stein. * Outono de 1907 - Matisse oferece o seu Retrato de Marguerite a Picasso; em troca este lhe dá o seu quadro Moringa, Xícara e Limão. * 1907-1914 - Matisse se mantém nas próprias pesquisas com as cores, afastado do Cubismo de Picasso. * Janeiro de 1918 -primeira mostra conjunta Matisse-Picasso, na Galeria de Paul Guillaume. * Janeiro de 1920 - O Balé Russo apresenta no mesmo espetáculo El Sombrero de Três Picos, de Manuel De Falla, com cenários e costumes de Picasso, e O Canto do Rouxinol, de Stravinsky, com cenários e costumes de Matisse. * 1920-1937 - Matisse mora em Nice; Picasso em Paris. Eles se encontram muito raramente, mesmo quando expõem na mesma galeria. Suas glórias crescem nos Estados Unidos e na Europa. * 1937 - durante o verão eles se visitam mutuamente. * Dezembro de 1945 - Expõem juntos no Victoria and Albert Museum, Londres. * 1947-1949 - Picasso mora em Golfe Juan, mas logo se muda para Vallauris, enquanto Matisse instala-se em Vence, duas cidades do sul da França muito próximas, o que permite encontros freqüentes entre os dois pintores. * 3 de novembro de 1954 - Matisse morre. Nota do Editor Texto inédito, especialmente redigido pelo autor, para o Digestivo Cultural. Alberto Beuttenmüller é poeta, jornalista e crítico de arte (membro da AICA). Alberto Beuttenmüller |
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