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Segunda-feira, 31/8/2009
O pingente que deu certo
Sérgio Augusto

Foi o maior fenômeno editorial da imprensa brasileira. E não adianta discutir. O Cruzeiro? Tinha atrás de si uma poderosa empresa jornalística, os Diários Associados de Assis Chateaubriand. Veja? Ora, veja. Com a editora Abril bancando a aventura, modéstia à parte, até eu. Atrás de O Pasquim, só havia um punhado de porras-loucas.

Assumidamente nanico, moleque, paroquial e abusado, nasceu sob a suspeita de que duraria pouco tempo; menos até que os oito números da Pif-Paf, criada em 1964 por Millôr Fernandes e inviabilizada pela censura dos milicos que naquele ano haviam assumido o poder. Mas durou, afinal, 1072 números ― o equivalente a 22 anos de vida.

As suspeitas iniciais tinham sua razão de ser. Onde já se viu um jornal sem patrão, onde todos os colaboradores podiam escrever o que bem entendessem e como bem entendessem? Pois a velha utopia de dez em cada dez jornalistas revelou-se, mais do que factível, um sucesso ― fulminante e retumbante. A tal ponto que o cético Millôr, que no primeiro número previra menos de três meses de vida para o solerte hebdomadário, admitiu, já no quarto número, que se equivocara.

Claro que se tivesse surgido na Mooca, nem com a Abril de arrimo, o Pasquim (que, de uma hora pra outra, abriu mão do artigo definido) não teria dado certo. Não bastasse ser carioca, o Pasquim era uma cria ipanemense. "É Ipanema engarrafada", proclamou um diplomata brasileiro (não foi o Vinicius, não) ― isso numa época em que Ipanema, já internacionalmente famosa por obra de Tom & Vinicius, orgulhava-se de ser o bairro mais moderno, cosmopolita, liberado e charmoso do Brasil, o nosso Greenwich Village, a nossa Rive Gauche, um Xangri-lá à beira-mar, plantado para onde os olhares do resto do país, morrendo de inveja, convergiam.

(Curiosamente, só na metade de sua trajetória o Pasquim se instalaria em seu "bairro natal", num solar normando fake, bem no cocuruto da ladeira Saint Roman. Sua primeira redação foi na rua do Resende, no centro da cidade, numa sala da Distribuidora Imprensa, 50% dona do negócio; a segunda no Flamengo, na rua Clarisse Índio do Brasil, 32; a terceira no Jardim Botânico. Até em Copacabana a redação operou por um curto e ingrato período.)

Foi, sem dúvida, um risco; quase uma bravata. Entre setembro de 1968, quando a ideia do jornal não era mais que um brilho nos olhos de Jaguar e Tarso de Castro, e 26 de junho de 1969, quando o primeiro número chegou às bancas, os generais haviam "legalizado" a ditadura com o AI-5 e a censura apertara as cravelhas nas redações menos dóceis ao novo regime. O Pasquim não pagou barato pela audácia de nascer já do contra (sobretudo contra as babaquices da classe média) e "livre como um táxi", "equilibrado como um pingente", incômodo como "um folião num velório". E ainda que nos primeiros tempos fosse mais folgazão, gozador, festivo (a expressão "esquerda festiva" foi inventada por um de seus colaboradores, Carlos Leonam) e atento a questões de comportamento, aos poucos deixou-se contaminar pelo inevitável: a indignação política. Sem, contudo, abrir mão do velho preceito de Horácio (reciclado por Jean de Santeuil): o riso é a melhor arma contra todas as imposturas.

Em seus primeiros números, tratou muito de futebol, amenidades, música (naquela base que o Sérgio Cabral apreciava: samba & chorinho), cinema, teatro, do sucesso de Glauber Rocha no Festival da Cannes, do direito de as mulheres tomarem cafezinho no balcão sem ser molestadas (uma das bandeiras de Martha Alencar, a primeira diva da redação). O mercurial Tarso de Castro, dínamo do veículo, debochava de tudo, gozava amigos e desafetos, fazia o humor mais petulante e agressivo do grupo ― e também, que pena, o mais perecível. Luís Carlos Maciel encontrou de cara o seu nicho: a contracultura. Salvo engano, foi ele quem inventou (ou pelo menos popularizou) expressões condenadas à imortalidade como "barato", "curtir", "sarro" (no sentido de gozação), que ao lado de outras gírias, ressuscitadas ("balaco", "balacobaco"), liberadas ("bicha") ou eufemísticas ("duca", "paca", "mifu", "sifu", "nusfu"), fizeram o jornal cair na boca do povo e nos verbetes do Aurélio.

Ao núcleo fundador agregaram-se, paulatinamente, três cabeças privilegiadas: Henfil (que entrou no número 2), Paulo Francis (que debutou no número 6, com um texto sobre o Marquês de Sade) e Ivan Lessa (que vivia em Londres e só estreou no número 27). Entre os astros convidados, a fina flor da intelectualidade e da boemia carioca:

Vinicius de Moraes, Otto Maria Carpeaux, Ferreira Gullar, Glauber, Chico Buarque (autoexilado em Roma), Caetano Veloso (idem em Londres), Chico Anísio, Jô Soares, Marcos Vasconcellos, Flávio Rangel, Fernando Sabino, Antonio Callado, Sérgio Noronha, Daniel Más (o enfant terrible do colunismo social), Telmo Martino, Luís Fernando Verissimo, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca, Ruy Castro, Fausto Wolff, Reynaldo Jardim, Newton Carlos, Luís Garcia (fugaz correspondente em Nova York), Angelo de Aquino, Alfredo Grieco. Sem contar os bambas de fora mesmo, do hemisfério norte, como Jules Feiffer, James Thurber, André François, Wolinski, Copi, Tomi Ungerer, o português Santos Fernando etc.

Quando o jornal estourou ("De tanto ver triunfar as nulidades, o Pasquim acabou dando certo", proclamava um de seus dísticos semanais), quem mais se surpreendeu com aquele imprevisto foram os seus próprios redatores e cartunistas. Mas já que os deuses, para frustração dos milicos, pareciam estar do lado da gente, o jeito foi relaxar e aproveitar o sucesso até a última gota de uísque e o último rabo-de-saia.

Tamanho era o prestígio do jornaleco, que se desse na telha de seus editores imprimir uma edição toda em latim ou grego, a vendagem seria a mesma e não faltaria quem achasse a ideia "duca" (ou seja, do cacete). Isso nunca aconteceu, mas é fato comprovado que um dia, com a página do Tarso em branco e seu deadline vencido, Jaguar fez valer sua autoridade e sua porra-louquice, enchendo todo o espaço com a palavra "blablablá", mantendo a assinatura do Tarso, que afinal levou a fama pela original ideia. Os leitores acharam o máximo, inventivo, o escambau ― especialmente aqueles que entenderam a brincadeira como uma dissimulada cutucada na Censura, não pelo que de fato era: um inconsequente sarro dadaísta.

O leitor padrão do jornal (70% do total) tinha entre 18 e 30 anos, o filé mignon do mercado. Em circunstâncias normais, vendendo (já no número 16) 80 mil exemplares e aumentando a tiragem, em dez semanas, para 200 mil, em sete meses teria se transformado numa mina de ouro. Mas, apesar de todos esses números, os anunciantes fugiam do jornal, a maioria por medo de uma prensa do governo, que muitos deles, aliás, levaram. A ditadura e seus apóstolos não achavam a menor graça no Pasquim e tentaram, por todos os meios, destruí-lo. Para eles, "aquilo" era um antro de comunistas, bêbados, pervertidos e drogados, empenhados em difundir ideologias exóticas e subversivas, desencaminhar a juventude e destruir a família brasileira. Um "panfleto fescenino", na ranzinza avaliação do dr. Gustavo Corção, colunista de O Globo e um dos judas favoritos da turma, ao lado de David Nasser, Roberto Campos e Nelson Rodrigues.

No fundo, o Pasquim não passava de um hebdô anarquista, misto de Harakiri e Village Voice. E, acima de tudo, anárquico ― em todas as suas instâncias, inclusive na vigilância aos que administravam a empresa, uma sucessão inesgotável de larápios e aldrabões. Enquanto estes agiam (demais ou de menos), a redação e agregados curtiam e regiam a boemia ipanemense, de preferência no Flag e no Antonio's, que, aliás, ficavam, respectivamente, em Copacabana e no Leblon.

Muitas outras gerações de jornalistas boêmios animaram o Rio, mas nenhuma delas pôde dar-se ao luxo de estender suas farras ao trabalho na redação como a turma do Pasquim. Suas reuniões de pauta, quando havia, eram uma festa ― ou, melhor, uma esbórnia. Ainda mais zoneadas eram as entrevistas, sempre coletivas e regadas a Buchanan's, e cujo inusitado clima de descontração outros tentaram em vão imitar. Várias fizeram história, como as de Leila Diniz, Madame Satã e a líder feminista Betty Friedan, que, diga-se, quase saiu no pau com o Millôr.

Cabia tudo no Pasquim. Até artigos sérios. Os de Paulo Francis só eram sérios nos temas, na aparência, e às vezes nem isso. Francis foi um dos fenômenos mais intrigantes do jornal: um intelectual cujo rompimento com a sisudez e a linguagem engomada do jornalismo político e cultural abriu-lhe as portas para a popularidade. Algumas expressões de sua autoria, como "raciocinando em bloco" e "inserido no contexto", sempre destacadas e gozadas pelo Jaguar, acabaram virando bordões do Chacrinha.

Outro fenômeno foi Ivan Lessa, cuja frenética inventividade invadia quase todas as páginas do jornal, a começar pela seção de cartas dos leitores, que a partir de uma época passou a responder, oculto pelo pseudônimo de Edélsio Tavares, um consumado cafajeste que tratava os leitores aos pontapés. Os iniciados e os masoquistas adoravam. Não menos agressiva e desbocada era dona Edelmar Barbosa (outra invenção de Ivan), que de gravador em punho fazia entrevistas imaginárias com personalidades internacionais.

Na contracapa Ivan também era absoluto, ora com suas fotonovelas debochadas e surrealistas, volta e meia estreladas por gente famosa (até Fernanda Montenegro protagonizou uma), ora com a coluna "Gip-Gip, Nheco-Nheco" (nome extraído de uma estrofe de "Trepa no Coqueiro"), um mosaico de desaforismos de fazer Groucho Marx e o Barão de Itararé babarem de inveja: "No Brasil morre-se muito de médico"; "Num país onde o futuro a Deus pertence, os agnósticos perguntam: 'E o passado? Quem vai se responsabilizar por ele?"; "Todo homem tem o sagrado direito de ser imbecil por conta própria"; "O brasileiro é um povo com os pés no chão ― e as mãos também"; "Todos os editoriais da imprensa brasileira têm dois dedos de testa e são escritos numa escola militar do Panamá". Um deles ("A cada 15 anos os brasileiros esquecem o que aconteceu nos últimos 15 anos") até virou epígrafe de um filme.

(Que ninguém estranhe a ausência de Edélsio, dona Edelmar e do Gip-Gip neste volume, pois ele cobre somente os primeiros 150 números do Pasquim e essas invenções geniais do Ivan só surgiram depois.)

Millôr gosta de dizer que nenhum humorista atira para matar. Os milicos da ditadura, incrédulos e paranoicos, não foram nessa e vigiaram com crescente rigor as gracinhas do jornal. Seu 39º número chegou às bancas, em março de 1970, com o seguinte aviso: "Este número foi submetido à censura e liberado." Com vários cortes. Mas disso o leitor não podia ser informado. Na capa, Sig fantasiado de Estátua da Liberdade, suando de medo e empunhando, à guisa de tocha, um Pasquim em chamas. Dias antes, uma bomba fora colocada na sede do jornal, na Clarisse Índio do Brasil, que só não explodiu por incompetência dos terroristas, gente da própria polícia.

Como se vê, a censura prévia não liberava o jornal de outros tipos de agressão. Algumas edições, não obstante "aprovadas" e "liberadas", foram inopinadamente recolhidas nas bancas por ordem de alguma "autoridade" que não se dera por satisfeita com os cortes executados por D. Marina, nosso primeiro Catão de saias. Primeiro e último. Depois dela, só deu gorila, com e sem pijama.

D. Marina trabalhava dentro da redação, modus operandi promíscuo e contraproducente para qualquer censor razoavelmente civilizado. Cordial, D. Marina acabou ficando amiga da patota do jornal e, como era chegada a uma birita, entre um gole e outro, aprovava muita coisa que não devia. Caiu em desgraça ao deixar passar um cartum, bolado por Ziraldo e feito em cima do famoso quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, com D. Pedro I gritando "Eu quero é mocotó!", em vez de "Independência ou Morte!". No lugar dela entrou o general da reserva Juarez Paes Pinto, até então mais famoso por ser o pai de Helô Pinheiro (née Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto), a "Garota de Ipanema". Depois que o general foi derrubado por aprovar uma entrevista com uma antropóloga americana, que afirmava haver racismo no Brasil, sim senhor, o jornal passou a ser censurado em Brasília, no próprio covil da repressão, o Centro de Informações do Exército, por canetas Pilot anônimas, implacáveis e vingativas. E assim foi até 1975, quando a censura acabou.

Minha relação com o Pasquim começou na tribuna de imprensa do Maracanã, por volta de agosto de 1969. O jornal tinha poucas semanas de vida e de sua equipe original eu só não conhecia o Claudius, o Tarso e o Prósperi. Embora fosse amigo de Jaguar, Millôr, Ziraldo, Fortuna e conhecesse, ainda que mal, o Francis, quem me convidou "para escrever qualquer coisa" foi Sérgio Cabral, no intervalo de um Botafogo x Vasco. A primeira coisa acabou sendo um artigo, pretensamente engraçado, sobre a atriz Sharon Tate, que dois anos antes de ser assassinada por Charles Manson tivera o prazer de passar dez dias tomando banho de piscina comigo num cruzeiro entre Acapulco e Los Angeles.

(Não, não, desculpe, foi o contrário: eu é que tivera o prazer de passar dez dias tomando banho de piscina com ela, a bordo de um daqueles navios celebrizados pela telessérie Love Boat. Tenho fotos para provar.)

Acho que agradei ― ao Pasquim, bem entendido ― mas só voltei a ser convidado a colaborar quando a maior parte da redação foi curtir férias compulsórias no xadrez da Vila Militar e o jornal passou a ser feito por um mutirão de jornalistas, com Millôr, Henfil, Martha e Miguel Paiva na retaguarda.

No dia 1º de novembro de 1970, com o número 72 já na gráfica, Cabral e Fortuna estavam em Campos, no interior do Estado do Rio, quando foram avisados de que Ziraldo, Francis, Maciel, o fotógrafo Paulo Garcez (em plena lua-de-mel!) e Haroldo Zager Tinoco (na época, boy do jornal) haviam sido presos. Fortuna foi agregado ao grupo ao chegar de volta ao Rio, no dia 3. Na companhia de Jaguar, Cabral foi à polícia para depor e tentar libertar os companheiros. De lá saíram para juntar-se aos amigos nas celas da Vila Militar, para onde Tarso também foi levado. As duas semanas de prisão, inicialmente previstas, acabaram esticadas para dois meses. Por que motivo foram presos? Nunca souberam.

Do número 74 ao 80, o Pasquim se transfigurou. Para todos os efeitos, baixara um surto de gripe na redação, atingindo nove integrantes da patota. A metafórica gripe foi a maneira cifrada que Martha, Millôr e Henfil encontraram para informar aos leitores o que acontecera. Com a patota em liberdade e de volta à redação, ganhei um novo padrinho, Francis, e uma atribuição: produzir textos sobre cinema que fugissem ao ramerrão da grande imprensa. Por osmose, acabei caindo na galhofa. E quando me dei conta, já me tornara um arremedo de humorista, afeiçoado a paródias.

Entrei efetivamente para o jornal com o Tarso na porta de saída, em pé de guerra com Millôr e outros membros da equipe. Pouco depois, Paulo Francis mandou-se para Nova York. Pressionado pela Censura, cada vez mais perseguido por terroristas de direita (daí o slogan "Um jornal mais verde de susto que de esperança"), boicotado pelas agências de publicidade e imerso em dívidas, o Pasquim viu-se num beco sem saída e obrigado a experimentar novas formas de sobrevivência. Em janeiro de 1972, pressionado por Ziraldo e Jaguar, assumi a editoria geral. Por sorte, Ivan Lessa, em Londres havia quatro anos, estava voltando para o Brasil. Com Ivan na redação e Millôr empossado, meses depois, na direção do jornal, uma nova fase teve início.

Foi nesse período que surgiram algumas das seções e brincadeiras pelas quais até hoje o Pasquim costuma ser lembrado. Àquela altura, além de editar as dicas, ajudava Ivan a zorrar o jornal, cobrindo-o de minúsculos e zombeteiros grafites, perpetrados com a pena e o nanquim do Jaguar, e a produzir uma coluna de notas ("Os do Pasquim...") sobre filmes, livros, programas de TV e eventos culturais, sem assinatura e inspirada na seção "Talk of the Town" da revista The New Yorker, quando anonimamente redigida pelo inigualável E.B. White.

Na página mais nobre, a 3, Millôr inaugurou uma coluna fixa de notas sobre os mais variados assuntos, cujo título, "Isto É Isto", era uma homenagem a Shakespeare (ou, então, ao Lorenz Hart de The Lady is a Tramp). Sempre encimada por um pensamento alheio (ou pensamentão, como dizia Millôr), só baixou de qualidade nas três semanas em que foi escrita por mim. É nisso que dá permitir que o Millôr tire férias. Não satisfeito em deixar seus leitores na orfandade, ao voltar das férias, o mestre de todos nós sugeriu que eu assumisse de vez aquele espaço. E foi assim que, em abril de 1975, "Isto É Isto" transformou-se em "É Isso Aí", implicante página de tópicos basicamente sobre política e crítica ao comportamento da grande imprensa, que me deu muito trabalho, prazer, leitores e dissabores.

De todo modo, não obstante, apesar dos pesares, foi muito bom enquanto durou. Para mim durou até setembro de 1979. Se pudesse, começaria tudo outra vez. Mesmo sem saber se uma farsa, quando se repete, vira história.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no primeiro volume da antoogia do Pasquim.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 31/8/2009

 

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