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Segunda-feira, 30/11/2009
Conversas com Woody Allen
Ricardo Besen

O problema central que Woody Allen vem enfrentando ao longo de toda sua carreira é que as pessoas acham que ele é a pessoa que está na tela, e tudo se confunde. Essa afirmação é de Eric Lax, jornalista que o vem entrevistando regularmente desde 1971, e que reuniu, em volume recém-lançado, trechos das melhores entrevistas realizadas com o cineasta até 2006. O livro propõe-se a responder à seguinte pergunta: se Allen não é aquele que está na tela, então quem ele é?

Os capítulos são organizados em torno de temas principais, que abordam múltiplas facetas relacionadas à criação e à produção cinematográfica. Allen detalha o processo de elaboração de seus filmes, seu uso da fotografia, suas influências, sua relação com Nova York. No campo pessoal, a experiência de ter um filho, sua relação com o pai, a infância no Brooklyn. Porém, aquelas questões polêmicas sobre suas relações pessoais que causaram tanto impacto há alguns anos, especialmente a de sua relação com a atriz Mia Farrow e sua filha adotiva, Soon-Yi, estão ausentes do livro.

Na verdade, o foco central do livro é o processo criativo de Allen, que começou como uma espécie de fábrica de piadas: o cineasta começou sua carreira escrevendo 50 delas por dia, para ganhar US$ 20, nos anos 1950.

Já em 1973, esta "indústria" passa a mostrar uma sofisticação maior: Allen, já com alguns filmes no curriculum, afirma que a piada é o gancho para as cenas de seus filmes: "uma história maluca dá mais vontade de rir; uma história real é menos engraçada", diz. Na verdade, ao longo de sua carreira, Allen pende entre essas duas tendências. O ideal, para ele, é usar a piada como veículo para apresentar o perfil psicológico do personagem, o que é bem mais difícil. Já em 1974, diz que não pretende mais fazer o que o público espera (a "comédia maluca"), mas aquilo que lhe agrada (o "filme sério"). Lax trata da transição de seus "filmes engraçados", como Bananas (1971), que é uma sequência de gags, passando por O Dorminhoco (1973), uma "história maluca", para Annie Hall (1977), uma "história real".

Em 2005, em outro estágio de sua trajetória, Allen diz que a escrita de uma comédia lhe flui facilmente, mas que se sente inseguro com o texto dramático. Ainda assim, considera-se um "comediante menor". Diz-se consciente de suas limitações como ator e surpreso em ver que as plateias gostem de vê-lo atuando. Prefere fazer filmes sérios, em que não atue. Considera O escorpião de Jade seu pior filme ― ele foi o ator principal ― e Ponto Final o seu melhor drama, no qual consegue expressar alguns pontos de sua filosofia pessoal, sobre a moral num universo sem Deus. Ele revela que havia pressões no inicio de sua carreira para que fizesse comédias. Para muitos críticos (e mesmo amigos), Annie Hall foi um terrível erro ― para Allen, foi após este filme que ele sentiu ser um diretor capaz. Com o sucesso financeiro de Ponto Final, diz que os possíveis investidores não saem mais correndo quando ele resolve fazer um filme sério.

A escrita é, para ele, um trabalho metódico; cria formas de "extraí-la". Para combater eventuais crises de ideias, guarda piadas numa sacola. Considera o chuveiro (chega a tomar banhos extras) e os elevadores (em prédios de mais de três andares) bons locais de trabalho. Funciona por instinto, mas quando tem que decidir entre duas ideias, há sempre uma agonia, trazida pelo sentimento de perda: a ideia não usada é sempre a melhor... Para Allen, o texto é fundamental para o sucesso de um filme. Mas admite que "é difícil escrever uma coisa entre uma hora e meia e duas horas de duração que seja interessante, original, convincente e comovente".

Outro tema recorrente nas entrevistas é o suposto caráter autobiográfico de seus filmes que, apesar da afirmativa de Lax, nem sempre está ausente. Allen desistiu de negar, por exemplo, que Memórias ou Desconstruindo Harry sejam sobre sua vida. Ainda assim, ele comenta: "as pessoas pensam que a pessoa ficcional que criei sou eu. Não sou. Acontece que ela anda como eu e se veste como eu...". E explica que as poucas experiências próprias usadas em seus filmes não expressam seus verdadeiros sentimentos, mas vão para onde a piada é mais forte. Todas as confusões, segundo o cineasta, decorrem do fato de que seus filmes são muito "autoexpressivos", e que isso é erroneamente tomado por autobiografia. Quase tudo é inventado, mas a "serviço dos meus sentimentos sobre a falta de sentido da vida".

O judaísmo jamais é um tema explícito, mas aspectos filosóficos importantes para Allen aparecem com destaque, como o universo sem Deus, a vida sem sentido. "Se você admite a terrível verdade da existência humana e escolhe ser um ser humano decente diante dela, em vez de mentir para si mesmo que vai haver alguma recompensa ou algum castigo celestial, isso me parece mais nobre". É interessante saber que entre as leituras de Allen, em 1988, estava uma edição de bolso do Concílio Vaticano II, de 1965, que, entre outras decisões, repudiou o conceito de culpa coletiva dos judeus pela morte de Cristo. Leitura surpreendente para um ateu declarado.

Allen se mostra sinceramente modesto, muitas vezes lacônico, quase sempre coerente. Em 1973, diz que gostaria de fazer filmes comercialmente aceitáveis: "não há razão para que sejam obras de arte". Em 2000, afirma que não se vê como um artista e que nunca fez um grande filme. Segundo ele, só há uma razão para não tê-lo feito: ele mesmo, pois "não tem visão em profundidade para fazer isso". É apenas um cineasta "viciado em trabalho". Isso não o impede de se esquecer e se desinteressar de seus filmes: "Quando escrevo um roteiro, para mim acabou. É uma pena precisar ir e fazer o filme". Por paradoxal que pareça, ele também se considera preguiçoso: "não quero trabalhar até altas horas. Quero voltar para casa (...), ver os meus filhos... Nessas circunstâncias, faço o melhor filme que posso. Às vezes tenho sorte, e o filme sai bom". Revela também que raramente fala com os atores, e não os ensaia, porque "enche". Além disso, como ator cômico, não gosta de fazer a cena até precisar fazê-la.

Em 2000, diz que parou de ler críticas, porque "é uma perda de tempo, não ajuda em nada. (...) Não conseguiria mudar meu estilo, mesmo que quisesse". Afirma não saber quem é seu público, nem como explicar sua longevidade artística. Ele admite que perdeu parte do público, que se sentiu incomodado pelo rumo tomado na carreira após Interiores e Memórias. Já em 2005, diz que entende a crítica aos artistas, em geral: "o artista está sempre na mira (...). Se você não é bem-sucedido ou não agrada, [o público] tem o direito de te execrar, e você não tem o direito de esperar ser nada além de um objeto de desprezo. Te pagam para acertar o gol, e não para acertar a bola neles".

Nota ainda uma mudança no interesse do público: "as gerações mais novas (..) não são letradas em cinema, não conhecem os grandes filmes. Não estou fazendo nenhum juízo de valor; apenas são diferentes da minha. O cinema de que eles gostam não me interessa". E arremata: "Faz anos que parei de conferir se o público gosta de meus filmes, não porque eu seja indiferente ou arrogante, mas porque aprendi tristemente que a aprovação dele não afeta a minha mortalidade. Nenhum sucesso consegue aliviar a minha melancolia genética (...). Os prêmios são feitos para juntar poeira; eles não mudam a sua vida, não afetam a sua saúde de forma positiva, nem a sua longevidade ou a sua felicidade emocional, não resolvem os verdadeiros problemas (...). Nós todos sofremos impotentemente com a condição humana, mesmo se temos sucesso".

O trabalho é uma de suas estratégias (a clarineta é outra) para controlar sua "depressão de baixa intensidade". Allen faz um filme por ano. A disciplina é sua arma para combater a "horrenda melancolia da realidade".

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na Revista 18, edição de outubro de 2009.

Para ir além





Ricardo Besen
São Paulo, 30/11/2009

 

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