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Segunda-feira, 4/1/2010 A prosa encantada de Rosa Emir Rodríguez Monegal Ainda que o Brasil ocupe praticamente a metade da América Latina, a literatura brasileira é quase desconhecida no resto do continente de língua espanhola. A aparente semelhança entre as línguas, cujo tronco comum é indiscutível, esconde uma dificuldade de leitura que acaba por desanimar os hispanofalantes. Nisso os brasileiros demonstram mais imaginação. Não é algo raro ver livros em espanhol nas melhores bibliotecas particulares do Brasil. De modo inverso, é quase um sinal de esnobismo encontrar um livro em português na biblioteca de um escritor hispanoamericano. A não ser que se trate de um lusitanista. Sendo assim, não é estranho que o descobrimento da obra ímpar de João Guimarães Rosa não tenha sido realizado por grandes editoras da América Espanhola, e sim pela Espanha. À publicação de Grande Sertão: Veredas em 1967, na magnífica tradução de Ángel Crespo, sucede agora a de Primeiras estórias, livro que por sua brevidade densa, por sua poesia, constitui a melhor introdução ao universo complexo do autor mineiro. Meu acesso ao mundo de Guimarães Rosa foi através deste mesmo Primeiras estórias, em sua edição brasileira de 1962. Os amigos, Walter e Virgínia Wey, facilitaram-me um exemplar da edição que acabava de ser publicada no Rio de Janeiro. Quando comecei a ler esses contos, me senti enredado pela peculiar atmosfera que o escritor criara, pela intensidade de suas imagens, pelo sabor único de suas palavras. Se infelizmente Guimarães Rosa ainda não é um escritor de fácil acesso aos hispanofalantes, é muito difícil que sua leitura não se converta, uma vez iniciada, em "vício", quando se vislumbra o mundo mágico que seus livros criam. É como Kafka ou Borges: basta uma única frase entrar em nosso sistema circulatório e já estamos perdidos: nada resta a fazer senão pedir mais e mais. O primeiro conto de Guimarães que eu havia lido era "La tercera margen del río". Essa história lograva, pelos meios mais simples e intensos, criar para o leitor a impossível promessa de seu título: uma terceira dimensão da realidade, a terceira margem se fazia patente, se encarnava na imaginação. De repente, me converti ao culto, então quase secreto na América Hispânica, de Guimarães Rosa. Não havia lido mais que aquele conto, quando tive a oportunidade de passar uma quinzena no Rio de Janeiro. Falo do inverno de 1963, estação que no Rio se distingue muito pouco de um verão uruguaio, úmido e algo triste. Na casa de Eva Pimentel Brandão, em sua bela e viva biblioteca, encontrei o anuário do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que me oferecia uns poucos dados oficiais sobre Guimarães Rosa. Era uma biografia do diplomata que terminava informando que ele ocupava o posto de Embaixador do Itamaraty, no Departamento de Demarcação de Fronteiras. Não havia uma só menção sobre sua carreira literária. O que me interessava era o escritor, mas estava disposto a correr o risco de deparar-me só com o Embaixador quando consegui que Afrânio Coutinho me levasse até o Palácio do Itamaraty numa dessas tardes em que a cidade arde. Coutinho fez as apresentações e se retirou. Senti-me perdido, mas aguentei firme. O escritório não podia ser mais burocrático, mas o homem alto e corpulento ― não gordo ― de cabelo grisalho cortado muito curto, de óculos e sorriso afável, gestos precisos e nítidos, me tranquilizou. Sua figura se recortava dentro de um fundo de velhos mapas, de fotografias amareladas pelo tempo, de gráficos persistentes e talvez inúteis. No meio dessa erosão, o homem estava vivo. Guimarães Rosa tinha do diplomata somente a postura exterior, a fina cortesia, uma subentendida reserva. Quando começa a falar, modulando com precisão cada sílaba e com voz firme, destacando certas palavras com um súbito piscar de olhos, descubro que estou diante do narrador. A voz que soa acariciando cada uma das sílabas é a voz que se escuta, quase inaudível, nas páginas de Primeiras estórias. Guimarães Rosa não perde tempo em coisas vagas: fala de sua arte e de seu ofício. Escreve muito, conta-me; logo deixa descansar o escrito e volta mais tarde a revisar, fazendo muitas correções, cortando sem piedade. Esse primeiro traço copioso de sua escritura tem como propósito ocupar o território, marcar os limites entre os quais o conto ou o romance se moverá. Enquanto o escultor falar, com precisão e sem pressa, penso que essa tarefa é também um serviço de demarcaçnao de fronteiras. Ao corrigir, ao rechaçar, ao omitir, Guimarães Rosa sofre as fúrias e as penas de todo criador apaixonado pelo que escreve. Para enganar o subconsciente, confessa, costuma dizer a si mesmo que esse material rechaçado não morrerá no cesto de papéis. Ao contrário, copia-o cuidadosamente em um caderno especial que ele intitula Rejecta: assim o destina a posteriores, talvez inexistentes, obras. Desse modo, o subconsciente cala e aceita. Quando reedita um livro, volta sobre cada palavra, cada vírgula, cada ritmo. Uma de suas coletâneas de contos, a primeira, que se intitula Sagarana, foi retocada infinitamente. A cada nova tiragem, Guimarães Rosa resolvia pôr todo o livro outra vez em processo de refeitura. Até que um dia percebeu que, se não parasse e decidisse que o escrito escrito está, ia passar a vida corrigindo o mesmo livro. Agora acha (com quase uma imperceptível nostalgia flaubertiana) que devia tomar um de seus contos, qualquer um, e seguir corrigindo-o até o fim de seus dias, como modelo e exemplo. O gabinete do filósofo Quando o visitei em 13 de julho de 1963, era impossível encontar no Rio um exemplar sequer de seus primeiros três títulos. Um livreiro, especialista em literatura brasileira e também editor, me disse que tinha mais de cem exemplares pedidos de Grande Sertão: Veredas. O próprio Guimarães Rosa se desculpa por não poder conseguir-me um e conta que, para poder enviar a novela aos editores europeus que se interessavam em lê-la, teve de saquear a biblioteca dos amigos. Para ilustrar melhor esse problema, levanta-se e apanha uma pasta na qual estão as cartas de seus editores estrangeiros. Esse gesto ― que poderia revelar uma vaidade superficial, quase infantil ― se desfaz diante da presença do grande senhor que se move pela sala, da delicada ironia que assoma em seus olhos e desse semissorriso onipresente em seus lábios. É uma ironia que ele faz recair impecavelmente sobre si mesmo. Penso em Cervantes e no encontro crepuscular do autor do Quixote com um admirador que se comove ao conhecê-lo; recordo-me das páginas em que ele mesmo narra, no prólogo de Persiles, esse encontro; evoco a dupla ou tripla instância dessa vaidade irônica. No grande romance do autor brasileiro encontrarei, mais tarde, rastros da mesma ironia; também nela se reconhece a grande tradição (cômica, paródica e também épica) do Quixote. Guimarães Rosa continua falando de seus livros. Fala com carinho, mas é um carinho temperado por bons modos e por uma convicção profunda de que o verdadeiro gozo de criar não está, jamais, no aplauso recebido, senão na própria ação de criar. Quando planeja um romance ou um relato curto, conta, começa sempre pela moldura, a paisagem, que, invariavelmente é a de sua Minas natal. Logo trabalha o argumento que lhe permitirá revelar aspectos psicológicos ou morais de seus personagens. Tudo isso é para ele só um aspecto, uma parte da criação, já que no centro de suas narrações busca sempre expressar algo ético, algo transcendente. Escrevendo e corrigindo, às vezes descobre um erro e, em vez de retocá-lo, resolve aproveitá-lo. Assim, por exemplo, em Grande Sertão: Veredas aparece uma pedra preciosa que muda várias vezes de nome: a primeira vez fala-se de um topázio que logo se converte em safira e quase de imediato perde o nome preciso e é só uma pedra valiosa que, antes de se concluir a narração, será uma ametista. Reler todo o livro para uniformizar o nome da pedra lhe pareceu tarefa estéril. Preferiu agregar umas linhas perto do final nas quais mas mesmas dúvidas e contradições sobre a mudança de nome serviriam para acentuar a caráter ambíguo do relato. Finalmente, essa pedra preciosa, com a qual o protagonista se sente tentado a presentear a mulher que ama, é símbolo de um coração dividido. "Deve-se trabalhar a favor das limitações", me diz Guimarães Rosa, com um sorriso no qual se reflete o seu sentido irônico e complexo da vida. É tarde quando saio de seu gabinete. O Palácio do Itamaraty, suas paredes rosadas e brancas se perfilam como um cenário italiano contra o violento azul do céu carioca, contra os morros violáceos que cobrem como luxuoso pano de fundo esse panorama alfo teatral. Nas ruas há gente que se dirige apressada às paredas de ônibus: são centenas, marcham em grupos, fazem filas com fatigada paciência. Faz um calor úmido de verão em pleno inverno do Hemisfério Sul. No gabinete de Demarcação de Fronteiras deixo esse senhor alto, de óculos, impecavelmente vestido com um terno azul petróleo com tênues riscas brancas, de gravata borboleta e ar fresco e repousado. No gabinete não faz calor, nada se agita, tudo está em seu devido lugar. Mas essa calma, essa serenidade estudada que aparenta Guimarães Rosa não é senão a máscara urbana, mais uma de suas criações profundas. Em seus livros se encontra a mesma vitalidade, o mesmo calor apaixonado, a mesma força obscura desta multidão que se ordena pressurosa em direção a seu destino. Penso que na serena dimensão de sua arte, Guimarães Rosa também expressa o mesmo espírito vital. Uma língua própria Esse encontro não fez mais que exacerbar meu apetite. Voltei a Montevidéu e insisti com os Wey até que se desprendessem de seu único e valiosíssimo exemplar de Grande Sertão: Veredas. Ao simplesmente abri-lo, descobri por que Guimarães Rosa era um autor ainda secreto. Li, voltei a ler e reli as três ou quatro primeiras páginas do romance. Não direi que não entendi nada, porque seria exagerar um pouco. Havia vivido muitos de meus melhores anos de infância e adolescência no Rio de Janeiro, havia estudado e empapado-me do português que se fala ali, esse saboroso "brasileiro". Mas o que eu havia aprendido e o que me permitia circular sem problemas pela literatura brasileira ou portuguesa, parecia nada frente a essas primeiras formidáveis páginas de Grande Sertão: Veredas. Porque Guimarães Rosa, como Joyce, como Valle Inclán, não só usava a língua comum; também abusava dela. Cada palavra, quase cada sílaba do romance havia sido submetida a um processo criador que obrigava o leitor a progredir, se é que havia progresso, a passo de lesma. Tardei um pouco em recuperar-me da humilhação de acreditar que havia perdido de todo uma das línguas de minha infância. Mas animou-me falar com Virgínia, que me tranquilizou: Guimarães Rosa era difícil também para o leitor brasileiro. Voltei ao livro, voltei às suas páginas, continuei lendo e vislumbrando coisas, completando outras com minha imaginação. Até que um dia (como acontece com uma língua que estamos começando a dominar) descobri que tudo era mais claro; me encontrei lendo o "brasileiro" de Guimarães Rosa, essa fala sua que ele soube criar dentro da rica língua geral do Brasil. Quase insensivelmente, haviam passado alguns anos. Eu tinha me encontrado com Guimarães Rosa na Europa e nos Estados Unidos, arrastados os dois por congressos literários, tangenciando-nos como trens que coincidem em alguma estação, ainda que viajem a destinos diferentes. Nesses encontros, tratava sempre ― o que não era difícil ― de fazê-lo falar de sua obra e de seu ofício. Certa vez, no salão ducal da prefeitura de Gênova (era janeiro de 1965), sentado numa grande poltrona incômoda, Guimarães Rosa me falou de Joyce e da influência que ele exercera sobre sua própria obra. Reconheceu então que tanto Ulisses quanto Finnegans Wake haviam sido um modelo, um paradigma ao que quis aproximar-se. Com respeito a William Faulkner, com o qual se costuma compará-lo, me manifestou uma aversão muito clara: rechaçava sua visão do mundo, sua crueldade algo sádica. Guimarães Rosa acredita no sobrenatural, mas crê em um mistério menos doloroso. Seu espírito religioso não espera só as sombras do mais além. Reconhece, por sua vez, sua predileção pelo Sartre dos relatos de Le mur, que leu com deslumbramento. Em outro encontro (junho de 1966, em Nova York), pedi-lhe que me falasse de Clarice Lispector. Respondeu-me, muito abertamente, que cada vez que lia um de seus romances aprendia novas palavras ou redescobria o uso das que já conhecia. Mas, ao mesmo tempo, reconheceu que não era muito receptivo a esse estilo encantatório da escritora brasileira. Era alheio a ele. Na mesma ocasião, falamos das traduções de seus próprios livros. Segundo me contou, somente a então recente tradução de Corpo de baile para o alemão, ou a anterior de Grande Sertão: Veredas, realizavam a tarefa, quase impossível, de ser ao mesmo tempo fiéis ao original e legíveis na língua a que se traduzia. As versões francesas relacionavam demasiado, segundo ele, as complexidades da dicção original. A norte-americana (realizada por James L. Taylor e Harriett de Onis) se lia muito mais facilmente que o original, o que para ele poderia ser considerado um elogio equívoco. Quanto às versões para o espanhol, Guimarães Rosa se declarou maravilhado com a que fizera Ángel Crespo de Grande Sertão: Veredas e acrescentou: "Devia havê-lo escrito em espanhol. É uma língua mais forte, mais adequada ao tema". Também aprovou com entusiasmo a versão feita por Virginia Wey de suas Primeiras estórias. Porém, digo eu, as mais logradas versões resultam ainda incapazes de dar em toda sua riqueza essa textura, ao mesmo tempo sutilíssima e brusca, que é a marca de seu estilo. Traduzir Guimarães Rosa é como traduzir Joyce: o seu é também um mundo estritamente verbal. O pormenor da ausência Todos esses encontros com Guimarães Rosa se realizam sob o signo de um coração fatigado. Ainda que ele me houvesse dito uma vez que estava doente, que não podia realizar nenhum esforço, que temia um segundo enfarto, eu o via tão sólido e claro, tão inteiro e lúcido, tão cordial, que sua apreensão me parecia fábula, um pouco de coqueteria, um temor excessivo. No mesmo ano em que o visitei no Rio pela primeira vez, havia sido eleito para ocupar a cadeira número dois da ABL. Uma obscura superstição, um pressentimento, o havia forçado a adiar, ano após ano, seu ingresso. Até que um dia decidiu fixar a data de 16 de novembro de 1967, dia em que seu predecessor, João Neves da Fontoura, cumpria oitenta anos, para assumir a vaga. Contam os amigos que Guimarães Rosa se havia preparado para esta cerimônia com a mesma minúcia que caracterizava cada um de seus atos. Dois dias antes da recepção solene, havia ido à Academia para estudar bem o terreno e averiguar até o último detalhe da cerimônia. Inclusive havia prevenido alguns amigos de que, se durante o longo discurso sentisse fraquejar o coração, faria um discreto sinal com a mão. No entanto, a cerimônia transcorreu muito bem. O coração resistiu ao duro transe e à emoção dos aplausos. Três dias mais tarde, no domingo, 19, ficou sozinho em casa enquanto sua mulher foi à missa. Estava em seu escritório falando ao telefone. Ao final das conversas, sentiu-se mal e ligou para a antiga secretária. Enquanto contava-lhe que temia uma crise de asma e pedia socorro, ficou mudo. Quando sua mulher chegou, já estava morto. No discurso que havia pronunciado três dias antes na Academia, há umas palavras que, sem dúvida, escreveu pensando em seu predecessor, mas que também deviam secretamente referir-se a ele mesmo: "De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro. (...) Mas o que é um pormenor de ausência. A gente morre é para provar que viveu. (...) As pessoas não morrem, ficam encantadas". Um homem como ele estará sempre encantado nas páginas perduráveis de seus romances. Nota do Editor Texto originalmente publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, em abril de 2009, e reproduzido aqui com autorização de seus editores. Emir Rodríguez Monegal (1921-1985), crítico literário e ensaísta uruguaio, escreveu, entre outros livros, Mário de Andrade/Borges: um diálogo dos anos 20 e Borges: uma poética da leitura. Leia também: "Guimarães Rosa: linguagem como invenção" e "Aracy Guimaraes Rosa". Emir Rodríguez Monegal |
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