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Segunda-feira, 11/1/2010
De fato e ficção
Daniel Piza


Rational exploration of the
undersea: the contact
, de Philippe Ramette

No mundo inteiro, inclusive no Brasil, hoje são lidos mais livros de não-ficção do que de ficção. Ou seja, há mais exemplares e títulos de biografias, ensaios, reportagens, história, autoajuda, didáticos, científicos e outros do que de romances e contos. Mesmo com sucessos como os da série Crepúsculo, histórias românticas de vampiros adolescentes escritas por Stephenie Meyer, o predomínio já não é da novelística. Houve um tempo, como se sabe, em que a narrativa ficcional ocupava o centro da cultura, era a espinha e medula da troca de valores e costumes. No século XIX, por exemplo, o grande romance, que mesclava panorama histórico e análise psicológica, como em Tolstói, Balzac ou George Eliot, dava a medida de uma civilização. Hoje, não mais. Curiosamente, tal mudança não se restringe ao mundo literário. É claro que há mais filmes de ficção, por exemplo, mas o número de documentários no cinema e na TV só tem aumentado (e influenciado até mesmo filmes não documentais). Nas salas brasileiras, um quarto dos filmes em cartaz pertence ao gênero.

O que explica isso? Num arco de tempo mais curto, pode-se pensar que há relação com um mundo cada vez mais globalizado, de notícias que correm na velocidade da luz (ou das trevas), e fatos como os atentados de 11 de setembro de 2001 provocam nas pessoas uma necessidade de entender melhor a realidade que as afeta de modos tão imprevisíveis. Indo um pouco mais atrás, pode-se atribuir a perda de importância da ficção à explosão de outros meios e linguagens, à concorrência de formatos audiovisuais, internet, novas tecnologias etc., que, além de consumir tempo e dividir atenção, têm uma eloquência mais direta; não exigem o grau de concentração que os clássicos exigem. E, num recuo ainda maior, até a virada para o século XX, a ficção tem enfrentado também a ascensão de uma série de disciplinas antes vagas, sem método nem consistência, e que hoje usam e abusam de ferramentas como a estatística - a exemplo da sociologia, da psicologia e da economia.

Eu arrisco outra hipótese adicional, que tem a ver com os rumos tomados pela própria ficção. Talvez porque pressionados por essa multiplicação das fontes de conhecimento e entretenimento, os romances abandonaram parcialmente aquilo que mais os distinguia até a geração modernista de Proust, Mann, Joyce e Kafka: a força dos personagens. Pense em qualquer grande obra literária e pensará num (a) protagonista, não raro citado (a) já no título: Hamlet, Anna Karenina, Bovary, Fausto, Dom Quixote, Pai Goriot, Dom Casmurro... Mas depois dos anos 30 parece que a ficção optou pela metalinguagem, pelo chororô do autor, ou então pelas crônicas policiais ou fantásticas que são lidas para diversão no verão, quando queremos escapar da chatice da rotina. E ainda não querem perder a "briga" para as biografias de figuras históricas e complexas? Mesmo assim, confesso minha nostalgia pelos grandes romances, com seus personagens fortes e suas ambições estéticas. Romances medianos podem facilmente ser substituídos por histórias reais. Obras-primas, não.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista OceanAir, edição nš 13.

Daniel Piza
São Paulo, 11/1/2010

 

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