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Segunda-feira, 22/2/2010 Reconhecimento Ruy Espinheira Filho So happy together, de Elena Feliciano Desculpe-me por não ter reconhecido você. Isto é o que eu penso agora, não disse nada na hora. Ou seja: à sua pergunta, só respondi não estar reconhecendo você. Com ao menos trinta quilos e quarenta anos a mais, era de se esperar que eu reconhecesse você? Quando você me falou, não vi você em você. Vi uma vasta senhora a me fitar e sorrir e pronunciar meu nome. Mas quando você lembrou um tempo, um lugar, um nome, foi que percebi haver algo um tanto familiar lá no fundo de você. Bem lá no fundo, uma sombra, uma nuvem de você. Aí, respondi que sim, é claro, por certo estava reconhecendo você! E recordei mesmo um pouco, o que já foi muita coisa, pois muito pouco você (vá desculpando a franqueza...) chamou a minha atenção naqueles tempos dourados de tantas moças tão lindas, tantos amores dispersos, tantas ilusões infindas, bebedeiras e maus versos... Desculpe, mas foi assim. A vida nem é da gente, como ensinou Diadorim... Mas veja se tem sentido eu ficar me desculpando! Não tem nenhum. O que eu sei é que você está ótima! Uns muitos quilos a mais, com mais décadas por cima, porém com disposição, formosas cores nas faces e memória milagrosa, capaz de desentranhar do meu fantasma de hoje aquele antigo rapaz. Tão antigo que é difícil para mim reconhecê-lo em mim, este destroçado campo de perdas e danos. Cada vez mais me parece que foi só conto de fadas, nunca tive dezoito anos... Mas deixemos dessas coisas, pois que é certo: um dia vivemos certa idade fabulosa. E até bem mais de uma idade, porque, no quebrar dos anos, quando menos esperamos vêm quebrar-se, às vezes, ondas das marés da mocidade... A senhora... Não: você. Você, aquela menina... Era mais jovem que eu ― e mais jovem continua: pois se lembrou de mim e eu não reconheci você. Só me resta agradecer-lhe ter despertado num homem, com uma simples pergunta, a emoção adormecida de uma vida em outra vida. Só me resta agradecer o presente dado a mim por você, naquele instante; história que ora me ocorre contar resumida assim: você me reconheceu; não reconheci você; e quando, depois de um tanto, eu reconheci você, reconheci a mim mesmo ao reconhecer você. E, reencontrado, já sei como não mais me perder: que se algum dia de mim começar a me esquecer, é só fazer, na memória, você me reconhecer... Nota do Editor Poema gentilmente cedido pelo autor. Integra o livro Sob o céu de Samarcanda (Bertrand Brasil, 2009, 240 págs.). Ruy Espinheira Filho é autor de, entre outros, De paixões e de vampiros e Elegia de agosto e outros poemas. Para ir além Ruy Espinheira Filho |
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