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Segunda-feira, 24/5/2010 O estranho caso do Wiki-Machado Sérgio Rodrigues ― "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria." Sugestões, pessoal? ― Hm. ― Hmm. ― Bom, de saída eu vejo um problema: o que é legado? ― Herança. Legado é sinônimo de herança. ― Então por que não ser inclusivo e escrever logo herança, cazzo? Legado é tão elitista. ― Acho que funciona: "... a herança da nossa miséria". ― Apoiado, mas essa miséria também é de um negativismo que vou te contar... E logo na última frase do livro! ― Hmmm. ― Hmmmm. ― Uma péssima última impressão, eu acho. ― Entendi seu ponto. Talvez "a herança de nossas modestas aquisições" fique maneiro. Porque combina com o personagem, que é um cara assim meio fracassado, mas não puxa tanto pra baixo. ― E no fundo diz a mesma coisa. ― Beleza. ― O que mais? ― Olha, eu ainda não tinha falado nada, mas pra mim esse negócio de não ter filhos e anunciar isso cheio de orgulho é que é mó deprê. Muito leitor ou leitora que seja pai ou mãe vai se sentir agredido ou agredida. ― É. ― Que tal isso? "Não tive, infelizmente, a oportunidade de ter filhos..." ― Epa, mas aí seria uma agressão aos leitores e leitoras que optaram por não ter filhos! ― Tá, a gente tira o "infelizmente". ― Hmmmmm. ― Hmmmmmm. ― Como tá ficando esse troço? ― "Não tive a oportunidade de ter filhos, não transmiti a nenhuma criatura a herança de nossas modestas aquisições." ― "Mas estou pensando em adotar um." ― O quê? ― Uma sugestão. Assim o livro termina pra cima, aponta pro futuro. E ainda rola uma consciência social. ― "Mas estou pensando em adotar um." Cara, você é bom! Todo mundo concorda? ― Acho legal, mas olha, sem querer ser estraga-prazeres: o sujeito não tá morto? ― O autor? Claro, achei que essa parte já estivesse clara pra todos nós. O autor morreu, por isso estamos aqui. ― Não, quero dizer o narrador. O narrador morreu, como vai adotar uma criança? ― Caramba, é mesmo. Que saco. ― Hmmmmmmm. ― Hmmmmmmmm. ― Hmmmmmmmmm. ― Quer saber? Esse fecho não tá rolando. Tem coisas que não dá pra consertar. E se a gente simplesmente cortar isso, der um sumiço no filho, na herança e na porra toda? ― Issa! ― Gênio! ― Já é! Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Parte integrante do livro Sobrescritos (Arquipélago Editorial, 2010, 152 págs.), de Sérgio Rodrigues. Para ir além Sérgio Rodrigues |
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