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Segunda-feira, 21/2/2011
Meu filho e minha mãe
Lélia Almeida

A relação entre a minha mãe e o meu filho, confesso, beira a indecência. Este vínculo que surgiu há doze anos, com o nascimento dele, se fortaleceu e hoje, virou isso, uma relação indecente. Ele nasceu enquanto eu fazia o curso de mestrado, uma mãe estressadíssima em meio a tese, mamadeiras, disciplinas e monografias quase sempre atrasadas e a torcida de muitas pessoas que diziam, você não vai conseguir conciliar as duas coisas.

E eu pensava, ele é muito pequeno pra ser tão poderoso, vou conseguir, sim. Mas, fundamentalmente consegui porque esta superavó esteve sempre ali, presente, incansável, com ele. Não era por mim e nem pelo mestrado, era por ele e por ela, que já começavam, desde então, esta relação incomum.

Quando decidi que ele iria para a creche, alguns dias por semana e somente meio turno, para que nós duas, mãe e avó, pudéssemos atender nossos trabalhos e vidas com mais mobilidade, ela cortou relações comigo para sempre e me disse que eu era um monstro.

Voltou dois dias depois, morta de saudades do neto e magoadíssima comigo, para sempre. No aniversário de dois anos, ela confeccionou uma roupa de Batmam para ele, indumentária esta que ele usou sistematicamente dos dois aos três anos, convencido da sua nova identidade, e quando ela ia levá-lo na creche, eles subiam no ônibus e ele dizia em tom autoritário, vamos batgirl, venha. E lá iam os dois, batmam neto e batgirl avó, em mais uma aventura.

Caxumba, catapora, dentes que nascem, dentes que caem, primeiras palavras, a testa aberta, pontos, ela firme, ele também, neste amor indecente, que se aprimora ano após a ano da existência dos dois.

Assim foram realizadas inúmeras viagens juntos, passeios, livros lidos, filmes vistos.

Foi ela quem o iniciou em filmes de adultos ainda em tenra idade quando o levou pra ver Independence Day, fascinada ela por aquela nave imensa que atravessava os céus e alimentava a nossa imaginação paranóide. Ele deixou para trás pra sempre as pequenas sereias, belas e feras, e entrou definitivamente no mundo das naves e viagens e do cinema.

Entre este ano e o ano passado mataram de uma sentada todos os Harry Potter e Senhor dos Anéis, filmes e livros, numa corrida de quem terminava primeiro para adiantar os episódios um ao outro.

Ouvem músicas juntos, se criticam, compram CDs e fazem o que avós e netos fazem há muitos séculos juntos, nada, se mimam e se adoram.

Ela, que foi uma mãe superdisciplinada virada em uma avó que levanta dos seus afazeres a qualquer hora do dia e da noite pra fazer de pipocas doces a batatas fritas.

Ele, aquele filho meio-disciplinado virado em sultão usufruindo dos mimos avoengos.

Eu, é claro, estou sumariamente excluída do romance e dos programas, aceita eventualmente pra não ficar chato. Porque afinal de contas a minha única função na vida foi essa e não outra: ser a filha dela e a mãe dele para que assim eles pudessem ser isso, a avó e neto amantíssimos. Isto feito, posso partir.

Mas é assim mesmo, quando ela está por perto, ele consegue brigar melhor comigo, e embora ela sempre concorde com ele, me defende também, como corresponde a uma mãe.

Vamos tecendo nossas vidas e nossos papéis, os que nos cabem na malha da ancestralidade. Eles, em idílio e festa, eu, encantada, de fora.

Porque mãe é extrato de tomate concentrado: escova os dentes, faz os temas, arruma o quarto, guri. E vó é extrato de tomate diluído e sem pressão, dá sabor à pizza, ao cachorro quente, à farra grossa.

Porque com esta avó tudo é bom, horas de temas escolares feitos em conjunto pelo telefone, ambos competindo e se exibindo de quem sabe mais, sabe melhor, descobre mais coisas.

E ela esclarece, é que eu trato o meu neto como gente, não como se fosse uma criança idiota. Ou, acontece que ele é especial, não adianta. E barbaridades como estas, por aí afora.

Sábado de noite depois do cinema, do McDonald's, do CD novo, etc., programas eventuais e saboreadíssimos pelo neto de avó professora. Na frente da TV, os dois cansados da tarde movimentada. Ela cochila com os óculos caídos no nariz e o jornal no colo, ele recostado nela e o gesto que denuncia o menino, o menino que ele ainda é, o menino que ele foi e cresceu ao pé da árvore sólida, sobranceira: belisca suavemente o cotovelo dela, a pele que sobra, enrugada, e adormece como quando era um pequeno batman.

Eu entendo o que ela diz, "neto é filho com açúcar" e aceito o papel que me cabe nesta relação indecente: elos de uma corrente, a mão dela enrugada e envelhecida, a minha mão entre as deles, a dele, firme e pequena ainda.

E o entendimento definitivo da eternidade, de que a gente não morre, de que a gente fica, se perpetua, que a imortalidade é isso: energia, calor, vínculo, amor.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Mujer de Palabras.

Lélia Almeida
Brasília, 21/2/2011

 

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