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Segunda-feira, 22/4/2002 O frenesi do furo Sérgio Augusto O filho de um amigo, estudante de Comunicação, escolheu como tema para seu trabalho de fim de curso os cadernos de cultura e variedades dos quatro principais jornais brasileiros. Como fora motivado por um texto, bastante crítico, que dediquei ao assunto, não se deu por satisfeito em apenas me ouvir, para considerações complementares e aprofundamento de alguns tópicos; também me pediu que lhe sugerisse um título para a dissertação. Saiu de chofre: "Leu um, leu todos." Ele gostou, mas logo disse que não o usaria para não ser justo com o "Caderno 2" do Estado de S. Paulo, que ele, com razão, considera um caso à parte, de longe, o melhor de sua espécie, o único da imprensa diária que, a seu ver, acredita na "força do texto" e investe na "inteligência do leitor", não receia deixar em segundo plano o jornalismo de agenda (ou seja, aquele cujas pautas são ditadas por eventos e lançamentos do dia ou da semana) e não se entregou, como os demais, "ao frenesi do furo". Por coincidência, naquele mesmo dia, os principais segundos cadernos haviam dedicado suas capas (ou primeiras páginas) ao musical Cambaio, de Chico Buarque e Edu Lobo. Não ao espetáculo pronto, mas ao início dos ensaios. E pensei comigo: puxa, o jornalismo de agenda está se aperfeiçoando; já nem espera mais pelo produto acabado. Claro que a pauta era tão válida e promissora quanto seria uma reportagem sobre o primeiro dia de filmagem da nova obra de Walter Salles ou o primeiro ensaio da mais nova encenação de Antunes Filho. O que me incomodou não foi o assunto em si, mas, como de hábito, sua evidente manipulação por gente estranha ao ofício. Uma coisa é um repórter tomar conhecimento de que Chico e Edu começarão a gravar um disco no dia seguinte e articular uma cobertura daquele encontro musical; outra é essa pauta chegar empacotada às redações por agentes e promoters. A diferença entre as duas é a mesma que existe entre jornalismo e marketing, canais há muito indistintos nestas paragens. Bem, eu talvez esteja sendo um tanto ou quanto purista, um saudosista dos tempos em que cada segundo caderno tinha uma boa margem de pautas exclusivas e os melhores da espécie sabiam manter a indústria cultural no seu devido lugar. Mas como não sentir saudade de quando os jornais prezavam a diferença e desprezavam pautas exógenas? No começo dos anos 60, o "Segundo Caderno" do Correio da Manhã (que aos domingos se chamava "Quarto Caderno") não era um fac-símile do "Caderno B" do Jornal do Brasil, e vice-versa. Nem tudo que estreava ou era lançado no mercado merecia nos dois mais influentes diários cariocas (O Globo, naquela época, não contava) as extensas, e quase sempre laudatórias, reportagens a que hoje qualquer bobagem tem direito. A palavra hype, se já existia, circulava apenas na redação do Variety. Quando fui editor do "Segundo Caderno" do Correio da Manhã, cansei de relegar a notas ou minúsculas reportagens o que aos críticos de minha equipe ou a mim parecia pouco relevante, descartável, indigno, pois, de ocupar espaço de um bom feature sobre assunto mais interessante, embora não necessariamente atual. Se o feature fosse bom, inteligente, bem escrito, ainda que sobre o sexo dos anjos, que se danasse a "atualidade". Tive provas palpáveis dessa diferença quando, meses atrás, remexendo em papéis velhos, encontrei vários "Segundos Cadernos" e "Cadernos B" de 30 e 40 anos atrás, alguns com a mesma data, mas tão diferentes entre si no que diz respeito a pautas que até pareciam circular em cidades ou países diferentes. A imaginação ainda estava no poder. E a liberdade de criar também. Na tarde de 14 de janeiro de 1965, por exemplo, estava eu dando tratos à bola sobre o que publicar na capa do caderno do dia seguinte, quando chegou à minha mesa uma coleção de seis esplêndidas fotos de leões numa savana africana. No dia seguinte, saímos com uma página bonita graficamente, com cinco fotos de leões, acompanhadas de um texto sobre a presença do rei dos animais na literatura, nas artes etc. e um título que hoje seria ainda mais ousado porque quase ninguém mais sabe latim: "Leo, Leonis, Leoni, Leonem, Leo, Leone", disposto na página verticalmente, é claro. Fez o maior sucesso, e ninguém me cobrou por que não dera na primeira página a estréia, digamos, de um show de Helena de Lima, que eu achava um porre, ou uma reportagem sobre o imerecido sucesso que a versão brasileira do musical da Broadway Como vencer na vida sem fazer força estava fazendo. Quem hoje puser os olhos nessa página há de pensar que vivíamos, então, sob a mais férrea censura, que os leões substituíam alguma reportagem previamente vetada pela Censura militar. Em 1965, os militares ainda não haviam instalado censores nas redações, mas já trabalhávamos sob outro tipo de pressão: a pressão da agenda, do mercado e da caitituagem. Os leões foram um involuntário protesto contra a pasmaceira editorial, contra a censura do previsível. Hoje um editor de segundo caderno não conseguiria fazer algo similar, sobretudo porque não desfruta da mesma autonomia de seus antepassados, que operavam com extrema liberdade de ação, mesmo se muito jovens e pouco experientes como eu era em agosto de 1965. Sua sugestão de pauta seria brecada na reunião com os demais editores e o editor-chefe, se é que até ao komintern do jornal chegaria depois de submetida à apreciação de seus subalternos. Não saberia precisar, exatamente, quando tudo mudou nem quem teve a idéia de equalizar todas as seções do jornal, submetendo-as a um mesmo conjunto de regras, necessidades e urgências, que terminou por inibir a criatividade dos cadernos dedicados à cultura e exigir deles obrigações antes exclusivas das editorias de cidade, política, economia e esporte. Mas se alguém me dissesse que foi na Folha de S. Paulo que essa "revolução" começou, uns 15 anos atrás, não me seria fácil desmenti-lo. Conferir à cultura o mesmo status jornalístico da política e da economia foi, sem dúvida, um avanço, mas algumas deformações ocorreram, ao longo do processo, nenhuma tão lamentável quanto o desatinado culto ao furo, à primeira mão, à exclusividade, que na maioria dos segundos cadernos vicejou. Os editores de cultura e amenidades não se preocupam mais em dar bem um assunto em seus cadernos; sua única e obsessiva preocupação é dar antes o que quer que seja, é "furar o concorrente", como se um novo livro de Rubem Fonseca ou um novo disco de Caetano fosse uma novidade tão importante para a vida da população quanto a notícia de mais um plano econômico do governo ou a descoberta de uma falcatrua no sistema bancário. Resultado: os editores e seus subordinados trabalham num clima de permanente paranóia, receosos de serem furados pelos concorrentes. Preferem sair na frente com uma reportagem eventualmente feita nas coxas a esperar mais 24 horas para produzir uma matéria mais completa e bem escrita – e com isso todos perdem, especialmente o leitor. Esse novo modus operandi foi o grilhão que faltava para escravizar a imprensa à indústria cultural, e fazer desta ou de seus intermediários os virtuais editores dos segundos cadernos, na medida em que são eles (editores de livros, produtores de discos e shows etc.) que, com a desculpa de que não querem privilegiar este ou aquele veículo, determinam em que dia tal e qual espetáculo ou artefato cultural deve ser coberto ou resenhado na mídia impressa. Já ouvi um promoter ter o descaramento de argumentar que essa démarche é "mais democrática", pois atenderia a todos os veículos indistintamente. Todos, vírgula. Só os chamados quatro grandes jornais do eixo Rio-São Paulo costumam se beneficiar dos pacotes das editoras e gravadoras. Várias vezes O Dia, cuja tiragem é não sei quantas vezes maior que a do Jornal do Brasil, teve de se desdobrar para obter as provas de um candidato a best-seller no mesmo dia em que elas chegaram, empacotadinhas, às redações da Folha, do Estadão, do Globo e do Jornal do Brasil. Esse controle sobre a mídia seria um eterno maná para a indústria cultural, não tivessem os jornais desenvolvido o perverso hábito da retaliação, cujos maiores prejudicados são justamente os escritores e artistas em geral. Explico: se, graças ao empenho de algum de seus comandados, o jornal X consegue publicar a resenha de um livro ou uma reportagem sobre determinado evento na frente do jornal Y, este, enciumado, ferido na sua soberba, irá fatalmente boicotar o livro e o evento em suas páginas. Na melhor das hipóteses, não dará a nenhum dos dois o destaque que mereciam, relegando-os a um canto do caderno. Na pior das hipóteses, simplesmente ignorará sua existência, não lhes concedendo uma linha sequer. Isso acontece com enorme freqüência e não configura apenas uma sacanagem com o leitor e com os criadores envolvidos, mas também um suicídio editorial, na medida em que expõe o editor a dois tipos de acusação: ou bem ele deu mostras de insensibilidade e incompetência ou comportou-se de forma aética e antijornalística. Se isso é ser moderno, tragam-me de volta a calandra. Post Scriptum Cumpro o agradável dever de informar que foi ao ler este texto que Caetano Veloso iniciou sua cruzada contra o culto ao exclusivismo e outros deletérios hábitos jornalísticos acima denunciados, posta em prática no lançamento do CD Noites do Norte, nos primeiros meses de 2001. Nota do Editor Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Bravo!, em outubro de 2000. Para ir além Sérgio Augusto |
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