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Segunda-feira, 6/1/2003
Martins Pena: sonhando com o romance brasileiro
Luís Antônio Giron

O escritor fluminense Luís Carlos Martins Pena passou à literatura como um Molière autóctone, o criador da comédia de costumes em território verde-amarelo. Legou uma produção cômica de enorme aceitação, sobretudo em sua época. De suas vinte comédias, muitas pecam pela farsa desenfreada com o objetivo de deleitar o público. Não é para menos que peças como "O Juiz de Paz na Roça" (1842) ou "O Judas em Sábado de Aleluia" (representada em 1840, publicada em 1846) fizeram sucesso na década de 1840.

Martins Pena sonhava com facécias - conforme chamava os ditos e recursos cômicos de que lançava mão. Mantinha até um caderno com frases e epigramas espirituosos, seus e de autores famosos. Mas não se limitou ao gênio burlesco. Sua vida foi breve - morreu de aos 33 anos em Lisboa, em 7 de dezembro de 1848 - e a posteridade não se debruçou sobre os projetos que deixou incompletos e os contos que escreveu para jornais e revistas. Entre seus papéis, depositados desde o século XIX no setor de obras raras da Biblioteca Nacional, há diversos manuscritos e cópias dos artigos sobre ópera (para o "Jornal do Commercio") e menções aos contos lançados em jornais e revistas. Um deles se intitula "O Poder da Música", publicado nas páginas 62 a 65 do "Correio das Modas" em 23 de fevereiro de 1839.

"O Poder da Música" foi o terceiro dos quatro contos que o jovem autor publicou no semanário feminino, dedicado a mexericos da corte e folhetins teatrais e literários. Martins Pena começou a publicar ficção na revista "Gabinete de Leitura", com o conto "Um Episódio de 1831" (8/4/1838, assinado "L.C.M.P."). O primeiro texto para o "Correio das Modas" se intitulava "A Sorte Grande", estampado em 12 de janeiro de 1839. Seguiu-se, 15 dias depois, "Minhas Aventuras numa Viagem nos Ônibus". Depois de "O Poder da Música", saiu, em 13 de abril, "Uma Viagem na Barca a Vapor". Estes são os textos conhecidos que restam da produção ficcional do escritor, que se supõe vasta. O jornalista Barbosa Lima Sobrinho publicou três deles no volume "Os Precursores do Conto no Brasil" (Civilização Brasileira, 1960) . Ficaram de fora "A Sorte Grande" e "O Poder da Música", talvez por não fazerem parte do biotipo literário burlesco e trágico do escritor. Os contos sobre o ônibus e a barca são crônicas da vida cotidiana carioca no período regencial. Já "Um Episódio de 1831" não passa de uma cena sobre o impacto que uma intervenção militar causa em uma personagem, Mariquinhas, que enlouquece. "A Sorte Grande" narra um naufrágio, na tradição do romance heróico de Alexandre Dumas. Não se caracterizam, porém, como narrativas completas.

"O Poder da Música" é interessante por conter uma miniatura de romance típico brasileiro: o entrecho amoroso (Carlos e sua amada, Henriquetta), um personagem nacional - o rebelde fugitivo que luta pela Independência do Brasil, escondido pela heroína - e o esteticismo característico do tempo, a cargo, no texto, da música, cuja força é capaz de realizar amores impossíveis. O romance, como gênero, estava sendo engendrado pelos autores românticos locais, mas ainda não havia chegado a uma forma definitiva. Isto só aconteceria a partir de 1844, data da publicação de "A Moreninha", de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), para muitos o marco inicial do romance romântico no Brasil.

As peripécias de Carlos e Henriquetta não deixam de prefigurar "A Moreninha". Martins Pena estava disposto a inventar o gênero. Prova disso é que, entre os seus manuscritos na Biblioteca Nacional, restam 14 folhas de um plano e quatro capítulos de um romance histórico intitulado "O Rei do Amazonas". O texto, incompleto, não traz data. A história se passa no Grão Pará, Amazônia, no século XVII. "Começa a nossa história, famosa pelo muito sangue que derramou, exemplar para os que lerem a ver como conduzem ao precipício as imoderadas paixões", narra o texto. Quatro personagens - Dom Pedro, "soldado del Rei", está à frente de 700 homens, comandando uma bandeira rumo ao Eldorado, em busca de ouro e pedras preciosas. As quatro expedições anteriores haviam fracassado. Ao lado de Dom Pedro, estão sua esposa, Mariquinha, e os ajudantes Dom Fernando e Dom Lopes D'Aguiar, "homem de mão e condição, e tão firme em suas ações e obras como o era seu corpo". O problema é que Dom Lopes "ama a mulher que está no braço do outro" e trama a morte do chefe. Conversa com Dom Fernando: "É preciso que Dom Pedro morra pela nossa felicidade (...) Mais dia e menos dia chegaremos a Eldorado e..." O fato é que Dom Lopes assassina Dom Pedro, toma-lhe a viúva e se proclama Rei do Amazonas. No final, é esfaqueado por seus comandados.

O enredo se assemelha aos dos dramas do autor, gênero no qual não foi muito feliz, por parecerem mais libretos de ópera que dramas declamados. Deixou cinco prontos, organizados em edição crítica do Instituto Nacional do Livro por Darcy Damasceno, em 1956. A tragédia "Itaminda ou o Guerreiro de Tupã" (1846), nunca representada, se passa na Bahia, em 1550, com tema nacionalista.

Em relação ao esboço de romance e à peça, o traço distintivo de "O Poder da Música" está no intimismo e na narrativa menos objetiva. Trata-se de um quadro de costumes, sem humor de farsa. Henriquetta é a moça de olhos azuis, voz "qual um sabiá" e grande dom pianístico. Toca prelúdios tristes e, por ser brasileira, canta modinhas, gênero nacional por excelência.

A morte súbita do autor colaborou no atraso da consolidação da ficção romântica. Na embocadura melodramática e ingênua de "O Poder da Música", pulsam os sonhos desfeitos de um escritor que não chegou a cumprir sua missão. A frustração de Martins Pena caberia melhor num retrato trágico.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil, a 28 de abril de 2000.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 6/1/2003

 

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